Aqui sempre falta algo. Espelho empoeirado da condição humana, essa cidade. Não sei quanto tempo é necessário no inferno pra te esquecer.
Aqui quando chove tudo pára.
Gosto mais quando chove à noite. A companhia elétrica não faz seu trabalho e a chuva engole a luz da cidade. Nessas noites de chuva e escuridão sempre lembro a textura que a tua pele tem no frio e de como é renovador percorrer com as mãos o caminho que começa nas tuas coxas e vai até teus seios.
Certa tarde, embalado pelo lamento sempiterno de uma máquina de costura na vizinhança, fui alinhavando os estilhaços dessa história. Coisas que deixei de aprender contigo. Falar com as mãos, dobrar lençóis, acolher tempestades. Um pouco de ti que faltou em mim. O gosto por música atonal, um pouco de aversão à raça humana, o emergir da cólera e do desprezo nos momentos oportunos. Um pouco de mim que faltou em ti.
Como estava te dizendo, sempre falta algo. Falta a tua solicitude, mas sei que em quatro meses já não trocarei o teu nome com o da minha mãe. Do teu seio não jorrará literatura, música estranha ou ardências vespertinas, tenho certeza. O teu rosto alongado não vai mais pairar sobre o meu sono desenhando um gigantesco “sim” num céu de constelações vazias. Chegarei à cura enfim, quando não mais precisar do teu exaspero e da nossa concórdia.
Resolvi deixar a nossa casa, porque via que o teu lugar na cama não esfriava. O teu cio impregnou nas cortinas e nem as 10 águas postas na lua cheia não foram capazes de eliminá-lo. Me cerquei então de músicos ciganos e de falsas ironias a teu respeito. O caminho me abandonou aqui. Meus calcanhares não se dão à poeira. Os olhos dos passantes se enchem de estranheza quando me olham debruçado sobre o balcão da locadora que abri. Não entendem meu sotaque, mas se assombram ao perceberem o quanto a minha imagem se dilui na prateleira de VHS’s amarelados. Sabem que histórias de abandono criam belos fantasmas.
Um comentário:
Muito envolvente! Parabéns, o blog esta maravilhoso.
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