O tiro veio não se sabe de onde, mas lhe acabou a vida no
mesmo instante em que o estampido embaralhou a gente que lhe arremedava os
gritos de ordem no centro da praça. Fim. A cara da revolução estava morta. As
pessoas ao redor corriam sem paradeiro, entretanto, estranhamente, em silêncio
depois de uns breves minutos. Tudo cheirava a pólvora e desespero. E, quem
sabe, a certezas. A revolução de tenra idade acabou às vinte e duas horas de um
dia chuvoso, com a morte por assassinato de Cardinas Alverde, o romântico que
inspirado por canções, panfletos e pelo manual do guerrilheiro urbano de
Marighela, sacudiu o pequeníssimo município do Grão, anos atrás. Eu era apenas
uma criança. Certamente não o vi cair, não estava nos protestos que ele
comandou e não conheço a cidade inflamada e vicejante que era transitada por
artistas, intelectuais e pessoas de aqui e acolá que adoravam vir ao Grão ver o
rio e as mangueiras, assim como saber as novidades da vanguarda revolucionária multiplicadas
no coração da floresta. Cresci com essa história contada às vezes com glórias,
às vezes com ódio, mas sempre com boas doses de lirismo e até saudade. O que
ficou de Alverde? Um misto de sentimento de liberdade e coragem – entrementes a
sensação de que a coragem sem um plano cheira mais à inconsequência, um viço de
anos bons e vida farta além da certeza estranha de que nada dura e a
relatividade é mesmo um conceito muito mais próximo de nós do que sequer
supomos. Hoje as coisas andam por si mesmas. Não há mais estado de exceção,
apesar de achar que as exceções que o estado abriu, tornaram-no mesmo o monstro
do iluminismo e mais o palhaço dos programas infantis de uma infância já quase
esquecida. A liberdade é proclamada em camisas estampadas com frases feitas e ícones
do agora mercantilismo revolucionário. Nenhuma rima sobre Cardinas e seus
seguidores, nenhuma música de protesto sobre seu suposto legado. Ninguém fala
mais de sua morte. Ao pó voltou. Aliás, ninguém fala nada as mortes diárias de
inocentes na guerra não declarada de uma cidade no fim do mundo, no limite de
seu tempo. E todas as vezes que eu passo pela Praça da República, lugar da
revolução e da morte do herói me vem potente o sopro da sabedoria dos tempos...
O herói foi aquele que não teve tempo de
correr. O que mais teria feito aquele revolucionário se tivesse corrido? E
morto, de que nos serve a figura do herói? J.M.N.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Notas sobre um certo tipo de amor I
O amor me beijou e teve desde muito
cedo. Não ficou em tantas ocasiões. Não me deixou em tantas outras. Como um
suor, uma carcaça, acomodou-se sobre a pele e ora regula e tempera, ora me pesa
e impede os passos. Olho-o como fosse o ponto fino no fundo de binóculo ao
contrário. Que de tão perto, mais parece um ponto cardinal na distância do
horizonte. O amor sabe a gerânios. E sabe igualmente a espinhos sobre minha
pele. Perfaz minhas saudades, atina minhas faltas. Encobre minhas distâncias e
ao mesmo tempo as denuncia. O amor tem a chave para minha tristeza e a ama com
a febre de um primeiro. Deixa marcas, mete facas e transmuta felicidade em
espera, beleza em traste. O amor que me acolhe é completo. Como os deuses
pagãos de antigamente. Cuja bondade tanto ampliava quanto mordia. E aos
mortais, feridos, esperando ir, só restava amar.
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