terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Enfeite

Antes que venha o sonho mais uma vez confundir minha vigília. Antes que a carta de amor que escrevo nasça ridícula, antes mesmo de o sabor do beijo se formar como a poeira do esquecimento sobre meus livros, eu te chamo para viver num retrato. No centro de uma parede branca em minha casa. Rodeada de um nada concreto, um mero apoio ao telhado, muralha de sentimentos, continente em limite. Tua foto, imagem única na sala de estar. Convido-te a servir de enfeite, de ponto de referência para os imprecisos que eu vier a usar, duto por onde passarão minhas linhas escapando da realidade e fora mesmo de lugar. Antes que tu, como tema, torne a vencer minhas conquistas e se espalhar nas chagas de tanta vida, quero que chegues ao espaço que nunca ocupei em teus dias, mirante suspenso em meio às coisas comuns de uma casa simples, cuja maior aspiração era servir de espaço, lugar que nos contivesse – fosse aqui ou noutro lugar. Olho teus olhos capturados no clique e vejo quase tudo o que me falta – tua presença, teu sorriso se espalhando em teu rosto, aquela blusa que compramos numa viagem e, claro, teu silêncio de fotografia. Como se tudo do que fosses capaz enquanto andávamos fosse a estática dura, as cores baças de uma foto já sem história, artefato de medir o tempo irreal do que senti e fui. Pendurada num único parafuso, como ancorada na parede branca sem nada mais que suportar. J.M.N.

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