quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Micro-romance XIV (ou “Nós vamos matar um cara”)


A porta abre e ela se apresenta. Sua presença é logo motivo de euforia. Corpos se debatem. Tem umas proporções destacas passos resolvidos e boca de carne farta. Manda um bom dia demasiado feminino para o conjunto. Todos a escutam atentamente. Mas há dessincronia entre intenção e gestos. Parece querer muito mais do que ser capaz de realizar. O plano exposto é seguido por uma risada geral e abafada. Ela se invoca. E saca suas armas. Todos armados e apontando canos nervosos uns para os outros. A situação fica muito tensa. Alguém vem por trás dela e dá-lhe um beijo. Ela sucumbe. Fazia tempo não era beijada daquele jeito. Depois da cena, todos quietos se reúnem novamente e ela volta a dizer que é plano de uma morte só. Os detalhes ficam bem mais claros. Profits e outros dividendos chegam atrativos. Os homens e outras mulheres já incluídas na turma aceitam de maneira diferente sua proposta. Então haverá apenas uma morte. E ela dará o tiro fatal. Sua especialidade de anos e anos. Apontar, controlar a respiração e disparar – o estampido, o milésimo de segundo antes do fim. Ela conseguia se lembrar da última morte com certa alegria. Naquela oportunidade, havia apenas dado a ordem e as coordenadas para o tiro. Seguiu falando. Tudo acertado, dia e hora marcados nos relógios. Todos esperam. Depois da morte daquele idiota, fortuna e fama os aguardavam. Mas tudo continua silencioso e calmo e, em cima da hora, nada explode, ninguém houve o tiro-aviso ser disparado. Os olhos dela cheios de lágrimas escorrem. Arma na mão, ela se deixa levar pela lembrança. Pensa no beijo. Quase o revive. E então, solta pelo rádio: Abortar! Abortar! Já era tarde demais. Alguém morreria naquele dia. Cada um seguiu sua rota de fuga. Dias depois se reencontraram para acertar as contas. Afinal, houve investimentos e o breve posicionamento de intenções, às vezes é suficiente para gerar dívidas de vida inteira. Ou simplesmente dívidas de vida. Mais tarde, em terreno ermo, quando olhava diretamente o breu dos canos de seus assassinos, lembrava-se com mais vivacidade do beijo. Quase se urina. O beijo que há muito ela esperava. Depois o negro. Aquele era serviço para quem não pensava demais, concluiu. Morreu em nome do que vivera uma única vez, depois de tanto tempo. J.M.N.

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