Dor, companheira de horas últimas. Amiga pra depois do fim. Quantas vezes já andei levado pela tua mão aflita até os confins escondidos no apego e na entrega? Se achegue sem perguntar o que ocorreu. Vai sentando nesse sofá antigo que meu pai deixou. Sabes que foi morte ou abandono, algo assim - a lentidão dos passos dessa contradança na qual costumo enroscar minhas pernas em noites com copos e desabafos. O que ocorre é que a tua companhia é a única que me deixa só. Que o teu amparo me deixa à mercê. Que a tua misericórdia me condena. Que quando me reconcilio contigo me aparto do mundo. Mas que quando estou contigo me assemelho mais a mim. Dor, assim te nomeio, e não sofrimento, pois esse foi causado, e tu, dor, chegas sempre depois das tormentas e acorda meu corpo e me crispa com um assopro e me sacode com um gesto e me manda: vai escrever. Não, dessa vez não te prives dos acentos e dos hiatos, faz o teu trabalho. Faz-me acreditar que o esquecimento existe e que um dia chegarei a ele como um pajé diante de uma árvore desconhecida. Faz a raiva suturar os meus cortes. Só não me tires a capacidade de amar, pois sem ela não há manhãs e minhas pernas se descoordenam. Sem ela, eu e tu não tomaremos esse café tão longo enquanto me mostras as tuas quinquilharias de crescer. Sei, não há razão no pedido, mas fica. Pois não tenho mais o que comentar do jornal, e nem culpas pra confessar. Estou fronteiriço. Limítrofe. Nessas horas, costumas me levar pro meu continente e me mostrar um rio próximo de onde nasci. Já te agradeço a paciência com os meus cubos mágicos, com meus esconjuros, todos esses reinícios. Já estou à espera da hora singular em que me mostrarás, sádica e orgulhosa, como me devolvestes as minhas faltas, e assim retornei inteiriço.WDC
Um comentário:
Muito bonito....
Kelly
Postar um comentário