terça-feira, 13 de outubro de 2015

à criança que me foi

"A criança compreende intuitivamente que,
embora essas histórias sejam irreais,
elas não são falsas ..."
Bruno Bettelheim – Os usos do encantamento
 

Sinto muito não estar ai para um monte de coisas. Sinto muito mesmo. Disseram-me que não se começa um agradecimento com desculpas. Mas sou assim, começo por onde é o contrário e isso me apraz. Igualzinho como te aprazia mil dias atrás dizer que amavas o que era impossível de amar – como a vontade dos outros de crescer e mudar. E isso que passo a alinhar, realmente é a gratidão que sinto e pura certeza de que me entendes. Eu que te se sou depois de nossas infâncias agradeço imensamente tua vinda antecipada para andar meus passos, para chorar de tristeza quando acabava o natal ou quando nós partimos para viver vidas distantes um ao lado do outro. Agradeço que não me abandones agora, pois mais do que sempre preciso saber, com certeza fulminante, que não estou sozinho no mundo que não estou sozinho em mim mesmo. A ti que me foste dedico meus beijos mais emotivos, minha lágrima mais demorada e as respostas de tudo quanto não me deram. Peço-te: fica! Fica para sempre. Fica nesse ir e vir de anos e aparências com os quais me renovas e feres às vezes, pois nem sempre estás pronta para ser afável ou quietinha e denuncias minha imaturidade cruciante com bater de pernas e vícios sem fim. Chora comigo essa manhã que ainda descende das manhãs pertencidas, no quintal da Alcindo, nos braços de Dadá. Devora como ao pão rasgado da merenda esse meu medo de morrer só e não saber se inventei direito a minha máquina de defender o peito contra o mundo. Sou eu pedindo. Como rezando ao santo anjo do senhor. Que aprendi para enfeitar o sorriso dela e permitir que eu fosse menos estranho, menos por fora do que se acreditava naquela casa. Estás sempre comigo. Calçando as plumas da felicidade ou o vidro estilhaçado da tristeza. Foste por ai, ao dobro de lugares que te permitiram e soubeste sempre voltar e contar como foi, mesmo quando ninguém queria ouvir. Essa tua liberdade me enleva e fulmina ao mesmo tempo. E agora que a Terra parece ter parado um instante, depois das estações invernais da desistência, eu te preciso mais uma vez e talvez mais do que nunca. Importa saberes que não desisti, mas quase esqueço o rumo por causa do peso desmedido sobre meus ombros. A bagagem crua que arrasto desde sempre. Mais uma vez: perdoa-me por não estar ai em tantas ocasiões. A verdade é que crescer é mais inútil do que eu já sabia, mas não posso voltar. Então, por causa dessa tua compaixão infinita, abre a janela da tua casa e me espera. Salto pra dentro do teu esconderijo e serei o que quiseres. Mesmo que seja o bandido dos teus jogos, o prisioneiro de tuas sentenças, mesmo que queiras um irmão com quem crescer e dialogar. Parece que agora é que finalmente estou pronto. Que as palavras soaram para além de seus enigmas. E eu espero sinceramente. Espero não ser tarde demais. J.M.N.

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