Hoje acordei às duas. No meio da noite. No meio do nada que
sabes vir com a solidão noturna. Acordei com a sensação de que tinha ido
embora. Não morrido, simplesmente ido. E estava numa cama vazia, num hotel
barato talvez. Longe, muito longe do que hoje é a minha vida. E lá, nesse
tempo-espaço alhures te encontrei. Queria conversar. Saber se estavas bem antes
mesmo de te contar que eu não estou. Queria começar as nossas falas, ao menos
uma vez. A luz da lua saboreava meu peito. Via meus batimentos sob o lençol,
peito desmedido. Não podia me mexer. Essa sensação de distância e quase segurança
esfumou-se de pronto com os tiques do relógio soando cíclicos ao meu redor. O
tempo medido me apavora. O medo aumentou quando pensei em tudo o que teria de
fazer pela manhã, no trabalho. Já não sei como são os dias sem metas, planos e
organogramas. Trabalho numa fábrica no fim do meu próprio mundo. Ontem ouvi uma
amiga muito querida dizer que eu era um talento perdido fora da academia e isso
doeu muito mais do que o pré-infarto de janeiro. Freud, Poulantzas, Pound, Marx
e todos os grandes me dão uma saudade imensa. Veja só! Saudade dos mortos...
Não é bem isso. Saudade de substâncias que não acabem numa máquina extrusora
qualquer (aliás, extrusão é o processo de saída forçada, expulsão que um
produto sofre na linha de produção). Ridículos esses termos átonos e suas definições
de engenharia, métricas e modelos cuja estética encarcera a mente, os dias, o
resultado de qualquer trabalho. E ai me deu vontade de chorar. Digo chorar
mesmo, como quem foi abandonado no mar. Isso tudo no meio da noite, quando tudo
é pior e mais medonho. Quando toda a esperança seca entre o desejo de dormir e
o possível esquecimento que virá com amarelo do sol. E não dormi mais. Pelo
menos consegui me mexer. Tomei água e esperei o despertador fazer seu trabalho
repetitivo. Às cinco e vinte da manhã levantei e o peso de não me ter parece
que ganhou coragem. Subiu-me até as faces e quando me olhei para os cuidados
matinais tive um pouco de vergonha. Quem sou não sei mais. Talvez o Chaplin de
tempos modernos apertando parafusos alheios, talvez o boi na fila do abate. Um
urro, uma lágrima tardia numa manhã em que a vontade de correr o mundo domina
até mesmo a simples decisão de vestir minhas calças. E tinha esse sentimento de
que não estava mais aqui, como te disse no início, entrementes preso ao fato de
estar. E coloquei as roupas, triste e envergonhado por constatar que estava
indo no mesmo rumo. Fazendo a mesma estúpida coisa de todas as últimas
novecentas e tantas manhãs. Pensando em voltar a dormir por puro enfado ou
atirar nos transeuntes que perguntam se ando feliz. Ponho a chave no tambor da
fechadura. O clique é como uma arma engatilhando e quando saio de casa uma luz
me cega. Nenhum corredor à frente. Não enxergo os elevadores de todo dia em
frente à minha porta. O chão some e eu caio num vazio sem fim. De novo o susto.
Minha apneia noturna me chama à vida. Estranho isso de reviver justamente
quando o ar me falta. Meu susto é que tudo ao redor era tal e qual acabava de
ocorrer. Foi tudo um sonho. Os próximos minutos me renderam o mesmo pânico
de antes de pensar em você e na rotina estéril que logo me alcançaria. Levantei-me
o mais rápido possível e comecei a escrever essas linhas. Queria que soubesses
que o final ainda não ocorreu ou eu ainda não tenho suficientes palavras para
terminar. Então... Mais uma carta. Foi isso o que aconteceu esta madrugada. E
no fim, queria mesmo que estivesses lá para dizer calma! Foi só um sonho ruim, talvez assim a rotina fosse menos
fictícia e meus sonhos, quem sabe, pudessem enfim me levar embora.
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