quinta-feira, 5 de março de 2015

Em voz baixa

Enquanto acordo e as coisas ao redor ainda repousam e a pluma do quase dia flutua, nascem as melhores memórias. Vão preenchendo os pequenos vazios. Alvorada acontece e o degelo da ansiedade ocorre. Liquefaz-se a presunção de existir sempre demais, sempre ao extremo. O que resta do gelo absorvido pela lentidão do despertar é esse fóssil tristíssimo de forma indefinida, em cujas estrias e sulcos esta certificada a saudade por tudo o que fomos. Uma espécie de dulcíssima bebida apodera-se dos lábios. Volto a sentir os gostos, a tatear a pena, a ouvir quem suspira ainda manso ao meu lado. As coisas tomam forma. E finalmente vejo o dia. É como um grande espelho limpíssimo que me encima. Sou, do grego arcaico, ídolo. Reflexo sem circunferência. Sou o que sou de manhã bem cedo. Parto para o dia cheio dos sons internos. As melodias dos clássicos, as odes de Homero, ancestrais reinando ensandecidos seus infernos e, claro, a paixão natural pelo que não é definido, nem puro, nem pouco sofrido. A cadência das notas vai se formando. Ao fundo o som do que vivo é algo entre indie e Rachmaninov, pouco sentido, muita paixão. Fica de tudo esse rastro de bonomia e vinho tinto. As pernas morenas que me procuram para proteção. Fica na carne a véspera do que não foi dito e trêmula, a posição de nascer acontece entre linhas. De manhã, bem cedo, quando todos dormem e ninguém se importou com meus erros no trânsito ou meus e-mails e telefonemas, converso calmamente com minha história, que dança vestida de vermelho, num alpendre perto do sonho, com as mãos na cintura, envolvente. Sabendo a antiguidade, palavras e pouca vergonha do que viveu. J.M.N.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que coisa mais lindaaaaa!

RTDM