quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Em voz alta

Tirante o amargo na língua, em minhas lembranças, a hora na qual morremos sabe ao azul dos dias sem nuvens, às costas ibéricas se aproximando quando fugimos do destino. A liberdade, o gozo, a futilidade necessária de pequenas compras no mercado e o cetim do leito emprestado ao descanso. No lugar em que me encontro festejo, entre as curvas novas de amor tranquilo, a sensação de estar mais livre de mim. Mais que noutros tempos, ampliado. Há na heresia de certas palavras, na descompostura de certos avanços, a força espantosa das descobertas. E as novidades em casa antiga cheiram a varandas recém-decoradas com móveis de vime estalando sob nós. Há vida em tudo que toco. Na teia de aranha no canto do quarto, na ínfima destreza das mariposas atiçando o vento e as causalidades pelo mundo. Há nascimentos por toda parte. Musgos nas paredes da cabana, rios no vidro das janelas e eu atravessando mais uma vez a sebe, embebido pelas qualidades dos meus amigos, melhores que eu em tudo, inclusive em me amar e manter. Dá essa vontade de seguir riscando, de aventar redondilhas e discernir prosa e poesia pelas manhãs cuidando de delegar-me carinhos e até cuidar do corpo, usar cremes e sentir boas venturas. Acordo assombrado pelo que tenho dentro. Pelo que voltou e pelo que surgiu. Após a chuva de tantos anos e a couraça em torno da pena. Enquanto desenho meu mundo na página sem traços, lembro já ter sido um menino. Agora, enquanto o que escrevo me significa mais uma vez, tenho no tato desses ditos o entendimento nascido na infância – tudo o que quero, posso, desde que eu diga em voz alta. J.M.N.

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