Isso tudo me dói imenso.
Primeiro a falta que fazes. Segundo a noite que não acabou mais. Ando escuro.
Vestido em pijamas e indiferença. Outro dia vi um velho juntando cacos na rua.
Podiam ser eu – digo, os cacos. Nunca mais Paulo Cesar Pinheiro soou igual. O
costume é a pedra no caminho. Esses dias têm cara de não vividos. A casa ainda
banca a valente. Ninguém vendeu. Ninguém quis morar. Desabitados nós dois.
Paredes e órgãos abarrotados de ausência. No jornal só notícias violentas. Não
costumávamos assistir aos canais grotescos. Como não fazíamos festa para quem
não tinha ímpeto, um quê de loucura que fosse. Não tínhamos a obrigação de
dizer, simplesmente. Na família vai tudo bem. Meu pai emagreceu. Vi teu pai dia
desses. Fino e austero como sempre. Comprando pães. E me perguntei: como não
toquei na mão desse homem? Como o evitei? Prelúdio do que fomos no fim? Debaixo
dos livros mudados tantas vezes de lugar, a mesma poeira que combatias
vivamente. O indicador de que estou ficando pior é a quantidade. Os romances,
os livros de poesia, as biografias extensas de tantos personagens ilustres e
destrutivos. Um dia escrevo a tua. Passearei na desmesura de sentir mais uma
vez. A onda titânica do que nos acontecia em presença um do outro. O testemunho
de fé sobre em coisas corpóreas. A ira. A saliva. A ferida. A torção na
espinha. Tatuado no meu corpo o solitário que sou. Nas minhas páginas fingidas,
a manhã em que não voltaste. O relógio despertando, maldita cinco da matina.
Não sei mais fazer versos. Não sei mais entender álgebra e astronomia. Tudo me
enfada. Tudo me desgasta. Não fossem meus exames de sangue, radiografias,
punções lombares, não me sabia vivo. Não me sabia. Nem o porquê dessas
palavras. Assim, dessabido. Corro o risco de viver mais para mim. E mesmo
lembrando, não tenho saudades. Penso em nós aprendendo. Ídolos agora só os
enterrados e o velho catador de cacos lá rua. Lúcio Cardoso certamente me
influencia. E, esquecidas, quaisquer possibilidades de comparação também eu
assassino casas. Não preciso de alpendres ou canteiros. Meus olhos estão em
outro lugar. Onde não estás. E por isso mesmo, por esta única razão, posso
falar em ti como um detalhe, usar tua pessoa inominável para escrever algumas
linhas. Como fosse um lugar onde se formam os destinos de alguns ditos. E só.
Esvaziar-me de um dia duro e mecânico. Percebo, enfim, que sou inteiramente
meu. Que sou eu mesmo o meu lugar. J.M.N.
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