segunda-feira, 30 de junho de 2014

Cartas a ninguém (14.06.2014 – 01h37min)

Querida,

Aprovei as contas junto aos órgãos competentes. Livrei-me disso, afinal. A vida segue com as coisas diárias em seus devidos lugares e com meu coração arruinado nessa espera por uma perdição que seja. Tenho raiva dessa inculta entrega ao espetáculo e estou, definitivamente, de saco cheio do pão e circo de toda a vida.
Escrevo para contar como, afinal, as coisas soam brandas em minhas linhas e como as horas de desespero diminuíram substancialmente a despeito da sensação de extermínio a cada palavra exarada. É isso, exarada, como uma lei escrita para não ser cumprida. Meus versos foram institucionalizados? Ou fui eu quem se perdeu da veemência e da loucura?

Qual nada. Recuso-me pensar ou agir como um normal. Ou “anormalhado” para usar a melhor potência do impropério. Recuso-me como sempre me recusarei a estar diante dos astros prestando homenagens sentidas ao luar que me cobre, ao vento que me dá balanço ou ao negro da noite que consome meus olhos cansados. Sou este. Ponto. Quem quiser que me aceite.
Dou e quero retorno. Quem diz o contrário é piegas ou mal intencionado. Ou ambos que é a desgraça maior. Dou e quero retorno, pois sou humano. Sou cheio de coisas menores e pouco engrandecedoras. Não quero ser mais ou menos que isso. Adoro as contradições. Mas sabe querida, perdi de vez a paciência com aqueles que supõe estar nas mãos de Deus a felicidade, a temperança, a qualidade última do que é humano.

E olha que tenho aceitado mais tranquilamente minha porção de crente. Mas minha fé é no outro como gente e sorte, amor e frêmito, maldade e bondade lanceadas em fitilhos vermelhos no coração de cada qual. Tudo se dá ao mesmo tempo afinal. Separar joio de trigo é uma tarefa das mais absurdas. E me perdoem os céticos, os engenheiros, os matemáticos e toda a sorte de bem sucedidos (?) que traçaram seus planos de vida e deram certo.
Minhas roupas puem, minhas retinas têm feridas, meu sangue não é o mesmo e meu coração bate quando quer. Não sou dono de mim, não pretendo chegar sempre no mesmo horário e me enfada sobremaneira acordar todos os dias do mesmo lado da cama e com a mesma sensação de que parei no tempo ou de que o tempo desistiu de mim e apenas corre inexorável para o dia em que não existirei mais.

Antes disso, direi ao que vim. E vim da mesma monta que Zé Régio, para marcar meus pés na areia inexplorada. Sou essa coisa incongruente, limitada e divina na proporção mesma de minha humanidade. Sou divino porque toco em mãos, pensei em assaltar um banco, desejei mal a quem me pariu e ao mesmo tempo os amo mais que posso, entrego o que não tenho e suo o suor do cansaço que não queria ter, pois tenho mesmo é preguiça de atestar meus fracassos.
O que quero dizer, querida, é que preciso de férias. Afastar-me das coisas iníquas do mundo e chamar mais palavrões de vez em quando. Preciso, sobretudo, reafirmar meu amor pelas pessoas, mostrando-as que nem sempre serei o que querem, mas estarei aqui pro que der... quando vier. Desde que não seja antes de minha partida.

Sinceramente,

J.Mattos

Um comentário:

Anônimo disse...

À parte daqueles sonhos vulgares, que são as vergonhas correntes das alforjas da alma, que ninguém ousará confessar, e oprimem as vigílias como fantasmas sujos, viscosidades e borbulhas sebentas da sensibilidade reprimida, o que [de] ridículo, o que de apavorador, e indizível, a alma pode, ainda que com esforço, reconhecer nos seus encantos!
A alma humana é um manicômio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem na verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho de subjetividade.

Fernando Pessoa