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Texto sobre o tema geral: “ícones da sedução em todos os tempos”, escrito para uma nova revista impressa que deverá circular em breve na cidade. Terei de escrever outro, pois ainda não sei calibrar direito a objetividade desejada para um texto de revista e o peso da poesia nas minhas palavras. Quem sabe não saiba mesmo fazer isso – ou não deva. J.M.N.
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O olhar é um grande descuidado! Suscetível aos perigos mais imediatos de um encontro. Talvez por sua infantil pretensão de alcançar todos os horizontes na visão, talvez pelo imperativo de comandar as regras na cegueira. Mesmo quando mudo – mergulhado momentânea ou fatalmente no silêncio da escuridão – arfa a compensar seu desespero por reconhecer e guardar na memória aquilo que o mobiliza, encanta, seduz.
Quando impresso no olho – uma visão, quando consumado em artefato – uma pintura, uma escultura, uma série de sinais com as mãos – outra linguagem. O olhar é transmutável. Seu encontro com objetos funde ideias ao poder dos sentidos. Resulta a imagem. A imagem alimentada pela imaginação se mostra um ícone. Representante sublime com o qual traduzimos o que nos captura no íntimo de todos os segredos.
O olhar é uma eterna vítima de crimes hediondos – especialmente o sequestro – relâmpago, de dias, meses, décadas. Sua única esperança é possuir meios de pagar o resgate, seja com a mais bela lembrança, seja com a eternidade de uma busca em repetir o sumo impressionante do primeiro encontro. Comumente não deseja escapar.
Entre sucumbir e viver devem ter ficado aqueles que em 1935, viram estarrecidos a aparição espectral de Bette Davis no filme Dangerous, ícone eterno do olhar da sedução. Sob suas safiras, como dizia devotadamente Arthur Miller – ao mesmo tempo em que estava marido de Marilyn Monroe – sucumbimos nós, meros espectadores, nós homens em sexo e desejo, e, sobretudo, nós do gênero humano, despossuídos da capacidade de suportar a presença daqueles olhos tão potentes, ao mesmo tempo, desejando-os intensamente.
Rita Hayworth revelou os estranhos sinos que vinham de além do tempo e espaço das salas de cinema e perpetuavam-se dias a fio, zunindo em campanários longínquos, transportando homens e mulheres ao incômodo reencontro com sua beleza ferina e sensualidade ainda sem pares, cujo maneio de cabeça e o balançar de cabelos marcou a forma como as mulheres deviam conduzir seus jogos de sedução a partir de então. Sua beleza flutuando sobre o noir do filme Gilda, nos anos 50 é mais uma destas materializações do sagrado artístico que nos enleva.
Carlos Drummond de Andrade, poeta dos muitos resíduos decretou que de tudo fica um pouco/ do meu medo/ do teu asco/ dos gritos gagos/ da rosa fica um pouco. Os ícones são gravuras que deixam suas marcas, gravam-nos de volta, espelham-nos. Amá-los, assim, como ídolos fica fácil. Basta lembrar Marilyn Monroe, Burt Lancaster, o automóvel Aston Martin dirigido pelo melhor James Bond da história: Sean Connery, a Vênus de Milo que requer a devoção do abraço, a Vitória de Samothrace e sua imagem decapitada a proteger marujos incautos.
Um sem fim de redutos para o deleite. Assim são os ícones. Elvis ainda me leva para o trabalho todos os dias, quase rezando a letra de suspicious mind, cuja primeira estrofe sentencia: fui pego numa armadilha/ não posso escapar/ porque eu te amo demais querida. Misturados os sentidos, o final do poema citado de Drummond, Resíduos, clama o fim do mau cheiro da memória pela simples abertura de vidros de loção. O olhar também pode ser seduzido pelo cheiro. O olfato é cúmplice habitual em seus sequestros.
Coco Chanel transformou a alta costura e influenciou definitivamente a perfumaria mundial. Como arma da sedução, seu Chanel nº5 atraiu muitos. Seus prisioneiros eram erroneamente advertidos pelo reduzido tamanho do frasco. Talvez com Chanel e sua invenção, o dito popular que toma por mais letais os venenos guardados em frascos pequenos tenha alcançado outra dimensão, refinando-se numa epifania garantida pelo deslumbramento das imagens de venda junto às quais o perfume era apresentado nos cartazes.
Nas artes, na moda, no cinema, na literatura os ícones abundam. A sedução, como resultado da mistura de elementos, desde a paixão do artista, do criador, até a ferida tocada no peito de quem admira a obra, o produto cálido da excitação instantânea ou duradoura que advém da imagem e sua luz, seu gosto, sua textura e seu cheiro fazem com que a experiência assuma um significado especial e particular, cosido em definitivo nas referências simbólicas das pessoas e repassadas ao tecido que as torna participantes ativas da vida através de histórias, demonstrações e repetição da exposição de seus ícones particulares.
Falar sobre o que é universal, assim, soa pequeno ou impossível quando a profundidade do que se sentiu diante de uma imagem só chega à compreensão externa quando outros elementos ajudam a retomar a força elementar da experiência. É o que penso. Desta feita, para terminar o que me foi pedido – falar sobre os ícones universais de sedução – recorro àquilo que me é mais caro e secreto atendendo ao impulso de registrar o vivido ao mesmo passo em que temo não ser compreendido ou parecer fora de contexto. Afinal, o universo está em cada um.
Meu ícone não é uma foto de Henry Cartier-Bresson a suspender o tempo e eternizar um homem que anda anônimo pelas ruas de uma Paris devastada. Não é um casaco Visom, um óculos de sol Dolce & Gabbana, um terno Armani. Nada tem a ver com Sônia Braga subindo no telhado de Nacib para pegar uma pipa fazendo com que a geração de meu pai não pudesse conceber outra mulher sendo a Gabriela de Jorge Amado, como disse o próprio autor, numa entrevista nos anos oitenta. Não é, enfim, a Carla Camurati, alma gêmea de um amigo querido, insuspeita diante da decepção que provocou ao não retribuir-lhe um olhar anos atrás.
Termino voltando ao começo, a falar sobre a via prima da sedução – o olhar, ícone do deslumbre. Constante e destreinado na modernidade apressada da produção em massa, das metas de trabalho, do impossível aos encontros com a família. O olhar como Coliseu das batalhas pela supremacia de quem quer ser apanhado no turbilhão crescente da entrega, do perder-se em si para ser recuperado pela voz e pelo toque do outro.
Falo do olhar como a suprema corte do que esquecemos em nossa humanidade; via que se refaz a cada novo brilho, em cada novo foco. Olhar de comer fotografias como em Chico Buarque ou como a lança da incerteza na Monalisa de Leonardo Da Vinci.
Meu olhar também foi sequestrado.
Meu ícone é esta pessoa de gestos simples e arquitetura morena que vem sempre antes do meu sono e diz que tudo está bem e que dormirei sem calor ou maus presságios. Esta pessoa de carne e osso que tem nome de santa, mas não o cumpre. Meu ícone foi “esculpida” em carne, ossos e ternura e me mostrou que estar em cativeiro por desejo é o contrário de uma prisão – é liberdade a dois. Não precisa, afinal, de um nome meu ícone, ela sabe o que representa para mim e o preço que pago por estar seu cativo é também um prêmio.
Um amor simples. Talvez a maior das artimanhas de sedução em todos os tempos, em todo lugar.
Belém, 28 de outubro de 2012.
2 comentários:
Nem parece que seria, mas tornou-se uma declaração ao simples amor simples que te humaniza e descompleta. Se eu disser que é lindo, direi pouco. Se usar "perfeito" subtraio aquele defeito que emoldura invisível as qualidades do texto. Então digo que esse texto me tornou essencial e que o visitarei sempre, pra arrumar alguma coisa, pra procurar algo que eu tenho perdido por aí, pra olhar mesmo. WDC
"Estar em cativeiro por desejo é o contrário de uma prisão - é liberdade a dois..."
Uma frase à moda de Carpinejar.
Ah o amor!
Impossível encerrar essa pluralidade de experiências num conceito.
A simplicidade de palavras, gestos, cheiros, sabores, talvez, seja a melhor maneira de apreendê-lo.
Fazia tempo que não tinha saudade do que nem iria acontecer...
Belo texto!
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