“Que não se cale a voz que de mim veio,
Mas que minha não é, sendo nobre e sentida.
Voz do meu coração que me escorre da pena.”
Oração – Augusto Frederico Schimidt (1946, pp.93-94)
Eu os encontro e vigorosamente trato de me desconectar deles. Faço perderem o sentido, todas as coisas que me ligam a eles. Este é um exercício simples. Concentração e sorte. A noite corre. Meus músculos tensos exaltando-se em esquecê-los dentro de mim. Infortúnio que são as horas compartidas. Alguém se levanta e vai. Outro minuto que perco, penso. E logo estou tão concentrado em me perder deles que me acho. Sou o que sou. Não tenho mais vergonha. Minha literatura emerge, tal como emergem minha sede pelo novo, pela inquietação do mundo, pelos povos coloridos dos deuses de outrora. Lá fora os negros, os brancos, os povos todos me mandam convites. Mas eu fico insinuando ainda, talvez eu parta se não me partir primeiro. Sou esse pequeno humano que se descuidou muito tempo de si. Gentilmente lembro as coisas de fora. E eles presentes. Levanto-me afinal. Com seus olhos pendentes em mim, com suas expectativas de que eu os alcance durante a semana e lance ao menos um beijo do balcão imaginário de onde eles me esperam sufocados e invioláveis, porque são mais ideias e material fantasmagórico do que nunca. Não penso em outra coisa a não ser não sê-los. Não repeti-los. E isso, incrivelmente ao contrário do que parece e me rende, me faz mais deles. Faz-me mais próximo. É insuportável a semelhança dos relativos. Embora eu amaldiçoe todos os males que enfrentamos ou criamos ou refizemos por inutilidade e doença, por vergonha ou crueldade simplesmente, num instante de ilusão me ponho em suas peles. E nesse micro sonho diurno, como num lampejo, eu faço uma poesia, declaro meu amor à mulher que me cuida e doa o seio, sou melhor que Picasso em sua fase mais azul. E assim, na simplicidade de não querê-los, eu os renovo. Faço do contrário a maior semelhança. Eu, mesmo bêbado ou febril, não choro pelo que eles não foram ou não alcançaram de minhas dores ou moléstias. Quero apenas dormir um bom sono, dando-lhes alento. Alento de saber que fazem parte de mim e mesmo que não queira, sacodem meus muros e comem da mesma comida imaginária da qual me sirvo abundante – querem superar o tempo, acontecer felizes na memória de alguém. Isso, sim, eu posso fazer por eles. J.M.N.
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