quarta-feira, 22 de junho de 2016

Cristal e livros

Guardo e taça seca do vinho a dois de anos atrás. Perdeu o brilho, mas não o espírito, o cristal turvo guarda ainda uma macha indelével. O tempo misturou-se aos restos fermentados no fundo da taça e fizeram aquela nódoa de sabores suspensos e chagas abertas, rosa púrpura esquecida entre os livros de minha estante. Espero que perguntem por que a guardo lá. É mais um tratado sobre o amor, responderei. Tudo me diz sobre o que um dia senti, esta taça com nódoa no fundo. E se a ponho contra a luz as frestas levemente avermelhadas dos seus lábios que um dia pousaram sobre os mesmos sonhos e fomes e extravagâncias ainda estão. Pequenas feridas no vidro. Uma linguagem única de entrega e desespero. Peça de tempo e distância. Marco seminal da ilha que me tornei. Cercado de mim mesmo. Escondido a olhos vistos. Tapinhas nas costas, festas e danças. Eu tento me misturar. Alguns planos são para daqui a pouco e tantas dúvidas são e serão constantes. Leio os livros com a mesma vontade fragorosa. As frases me rasgam, as orelhas escondem minhas lágrimas e a impossibilidade de dizer aos autores que os odeio ou amo dentro do mesmo desejo de comer a virtude ou a imundície de suas declarações, de suas histórias, de seus personagens. Sou tantos. Pequena boca mastigando o mundo inteiro de uma vez, como sempre. Minhas saudades chegaram a sal e encheram desertos. A canção que toca ao fundo é um pouco do escuro dos mares que atravessei. Busco poemas novos e vidas antigas. Assim o Doutor vai confirmando: nasceste no século errado! Não dou ouvidos. Levanto e sento de frente a vocês, que me escutam dentro das sirenes de perigo a gritar no fosforescer de minhas ideias recentes. Uma delas posso dizer que envolve não voltar desta vez. Não voltar a mim. Perder-me. Para sempre. Perder-me para o mesmo sujeito que um dia dormiu em paz no colo de alguém. E olho a taça e seu cristal fosco e poeirento descansada na prateleira do quarto de estudos. A luz da lua não a atravessa. Nada a atravessará jamais. Tampouco o esquecimento. Ainda bem. Tomo-a nas mãos e o cheiro profundo do passado acontece. É mais difícil ler suas linhas, seu enredo, mas ainda sei do que é feita a nódoa que repousa em seu côncavo. Afinal é uma história que se repete. Há quatro décadas. Bebo um gole imaginário do lado oposto de onde houve o lábio que sorveu o vinho e a rápida compreensão me toma: in vino veritas... Mas há também esta página sobre o que senti. Na verdade da letra, no verbo iniciador dos meus sonhos eu quero dizer com tudo isso; ao que vim ainda não me sopraram os sentidos, a voz do tempo ou a vontade de desistir. Então eu sigo. Com o sabor de toda uma vida rodando em espirais silentes no vazio de uma taça enodoada e pelos sulcos dos seus lábios, riscando falas codificadas de eternidade ao redor de minhas lembranças insones. J.M.N.

Para ler escutando (Chavela Vargas e Pink Martini - Piensa en mi)


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