Eu me lembro
de você todos os dias. Sua presença agora é mais um significado que carne e ossos
e todo o resto. Você já não pode me bater ou fisgar. Você não é um ser. Bem
entendido. Antes disso, você e suas palavras são a obra de arte que ninguém
entende, feita com restos humanos, uma tinta bem vermelha tingindo vazios,
linho muito branco e pinceladas violentas. Eu respiro e você ainda está. Mas
cada vez menos. Orgulhosa em poder mostrar os pequenos pedaços que esqueci aqui
e acolá. Trazendo as convicções de antanho nos caderninhos que costumava
colecionar. Frases dos outros, razão de outrem, desrazão. Você ainda se propaga
demais por tudo o que eu aprendo. Para o bem e para o mal ainda funciona como
um farol muito alto, circulando seu feixe de luz de raio mínimo na noite
escura. O lume se extinguirá. Mas eu ainda esbarro, encontro, transito na
presença cada vez menos densa que vem do meu passado, que lanceta pústulas e me
ajuda a por para fora as imundícies que se formam sob a pele. A pele que se
fere e rasga pelos caminhos, por minhas escolhas e dói tanto mesmo com tanto
amor. A pele que mesmo surrada me protege. Eu olho você com o mesmo castanho
dos olhos, entretanto, cada vez menos com a piedade que eu tinha quando, em
vida, buscava poupar você das esquisitices e vulgaridades do mundo.
Entrementes, você ainda me provoca essa feroz exaltação que debulha toda a
minha alegria e me faz querer cometer assassínio, destruir seus vestígios e
outras muitas coisas indizíveis e profanas. Simplesmente porque foi você quem
mapeou antes de todos, os caminhos da minha eterna culpa, as vinhas de minha
ira ancestral, meu esborro, minhas maiores e mais lamacentas vilanias. E,
apesar disso, nunca compreendeu que todas elas, por mais baixas e pusilânimes
que sejam são sempre e sempre serão destinadas a mim. Começo e termino
dirigindo bandeiras e lanças a mim mesmo. Mas não quero ser imolado, não
procuro ascese ou beatificação. Não. Procuro o meu nada. O homem último dentro
de mim. Quem é? Porque está por aqui? O que pretende? Não tenho respostas, não
as quero e por isso mesmo continuarei a buscar e buscar, pois nada é definitivo
e tampouco sua crença na exclusividade de minhas fraquezas e nesta condição
detestável de não conseguir viver uma vida sem engolir o que não teve e nunca
poderá ter. E mesmo por baixo dos seus tiros, de sua eterna disposição a me
punir por não ter sido nunca inteiramente seu, eu olho nos seus olhos e vejo a
imagem borrada, a pessoa transitória que sempre foi. Um dos forros de tantos
lutos por que passei. E devolvo. Não a raiva, o desamor e a vergonha que você
tanto queria me ver gritar, não. Eu devolvo minha humanidade. Em toda sua
feiura, toda sua desgraça e toda sua exuberância. Quem sabe assim possa ver que
depois de cada ataque, depois de cada escarro de suas insuficiências, eu fico
muito melhor. Eu fico em paz. J.M.N.
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