“Se os doentes às vezes falaram, não se registrou
suficientemente o que eles disseram”. Em 1845, o psiquiatra francês Moreau de
Tours, discípulo de Esquirol, fazia a confissão de um silêncio imposto aos
doentes mentais dos hospícios franceses. Imposição que, ao longo da história da
loucura, se renova e espalha às mais distantes paisagens a se interpor insistentemente
entre o médico e o paciente. Laure Murat, se apropriando do ferramental de
Foucault, adentrou e se deixou invadir pelos arquivos de quatro hospitais
franceses: Bicêtre, Salpêtriére, Sainte-Anne e Charenton. Locais onde loucos e
inimigos do estado eram trancafiados e silenciados. Locais onde os murmúrios e os
gemidos dos doentes esperaram por uma decodificação.
Lá, em meio à frieza e ao laconismo do registro médico,
Murat revela que o talento de escritora parece concorrer em pé de igualdade com
a competência de historiadora. Nas páginas frágeis e abundantes descobre
pérolas que só a loucura seria capaz de nos presentear. “Ela viu o sol cair aos
seus pés”, registra o alienista. “Pergunto-lhe se está doente, ele me responde:
‘De amor’”. Mas o livro fala de como as vozes que vem de fora dos muros dos
hospícios influenciam os fantasmas que vagam lá dentro. A autora faz um recorte
do período compreendido entre 1789 e 1871, ou melhor, entre a revolução francesa
e a comuna de Paris. A pergunta que guia a pesquisa é: como se delira a
história?
Sim, é possível contar a história da humanidade pelos
delírios dos loucos, assim como é possível flagrar a loucura mudando os rumos
da história. Esse livro encontra não só a história na loucura, mas também a
loucura na história.
A caricatura do homem que se achava napoleão como a mais
potente imagem do louco com manias de grandeza – ou de monomania orgulhosa,
como definiam os alienistas – começou a ser forjada em 1840 quando chegaram a
França as cinzas do imperador que, não tendo a realeza no sangue, tomou o trono
para si, tornando-se a encarnação do poder absoluto e acessível a qualquer
sonhador mais ambicioso. Mas o que diferencia Napoleão desses seres que pensam
ser ele? Apenas a originalidade? Talvez. É certo que o próprio Napoleão tinha
visões de uma estrela que guiava suas conquistas e sua ambição poderia ser
considerada desmedida pela maior parte os franceses. Enfim, o psiquiatra é
também um sujeito atravessado pelo seu tempo.
E por causa e consequência desse atravessamento, a
psiquiatria, desde os seus princípios até hoje, serviu como instrumento de
controle do poder vigente. A doença amiúde faz do médico um agente da ordem
pública. Drapetomania foi o nome dado pelo Dr. Samuel A. Cartwright à doença
cujo único sintoma era o desejo incontrolável de ganhar a liberdade, muito
comum entre os escravos negros do Sul dos Estados Unidos. O que dizer das mães de
desaparecidos pela ditadura argentina que foram chamadas de “Loucas” da praça
de Maio? Lembro que a Associação Americana de Psiquiatria incluiu, em 1952, a
homossexualidade no rol dos transtornos mentais do seu Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) retirando-a apenas em 1973 após
inúmeras pesquisas que provaram o óbvio, que a classificação refletia apenas
normas estabelecidas socialmente. Temos ainda o caso da maconha, incluída na
lista de drogas mais perigosas do mundo, sem nunca ter matado ninguém. Os
exemplos surgem todos os dias e vindo de todos os lugares.
O fato é que história e loucura se afetam em entrelaçamentos
que quase nunca se mostram favoráveis aos loucos. E não é preciso ir muito
longe para confirmar a tese de O Homem que Achava Napoleão. Nos locais de
reunião de moradores de rua da cidade onde moro, Parauapebas, frequentemente
sou abordado por um senhor que tece uma intrincada biografia pessoal que prova
que ele recebeu a serra dos Carajás como herança e que a Vale, através do seu
poder financeiro e político, lhe tomou para explorar o minério de ferro
escondido em seu subsolo. Ao passo que os loucos remanescentes em Serra Pelada
deliram pepitas de ouro de tamanhos colossais. Os delírios paranoicos dos moradores da zona
rural do sudeste do estado do Pará estão quase todos relacionados à luta de
terras. Todos eles são submetidos às novas formas de silenciamento da loucura.
Se no século XVIII o tratamento moral de Pinel fez os
cadeados saltarem para dentro do louco em forma de disciplina e normatização,
na contemporaneidade esse controle rígido e implacável, ainda confundido com
tratamento, fez dos remédios seus veículos preferidos, e muitas vezes os
únicos. Quatro séculos nos separam de Pinel e Esquirol. Nesse tempo apenas as
formas de não ouvir mudaram. As histórias singulares ainda encontram
trincheiras na psicanálise e em outras formas de escuta do desejo. Lamentavelmente,
estas são forças de resistência a um movimento de pressa e uniformização. O
livro de Murat torna-se assim um aviso dados por vozes distantes no tempo e no
espaço, porém tão atuais. WDC
Um comentário:
Alguns textos me remetem à situaçoes vividas aqui no sul do Para. Seu texto foi um deles. Presenciamos ainda muitas formas de encarceramento da loucura, porque a sua verdade será sempre uma sacudida na forma de viver em todas as épocas de nossa história. E cada época produz sua proprias formas de calar a loucura. Lindo texto!
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