Cuida que não era pra doer tanto! Assim eu ouvi. Uma quase desculpa pela mão pesada que esquentou
meu rosto. Sempre engolia o choro. Rebeldia fisiológica aprendida uns meses
antes, durante uma surra de cinto e outras coisas do ambiente. Era época de
provas no colégio. Irmã Dulce em coma por causa da idade. Isso doendo também. E
ela. Ela tinha um novo namorado. Ademais, os amigos achando que eu era um
delator. Sofri calado. Urdido por essa coisa seca e pesada do compromisso com o
fracasso em nossa estirpe. Ergue-se a cabeça por uns instantes, mas não, nada
de seguir adiante; nada de superar as dores, ou superar-se. Nisso, correndo
contra o tempo que estipulara para uma curta e intensa vida de desespero e
ilusão, tombei com aquele seu amor nos
tempos do cólera. O título cabia em tudo o que sentia e pensava a respeito
da dinâmica da casa, das relações, das eviscerações noturnas que começaram não
sei quando, mas que determinavam com um peso assombroso o rumo das minhas
primeiras linhas sobre o papel. E engoli palavra a palavra numa única noite. E
mais uma vez nos dois ou três dias seguintes. De maneira que pela primeira vez
um choro quente e desamparado caiu-me dos olhos por causa de algo que li. E
para sempre me fisgou a alma o Gabo e sua escrita, o homem e seu universo de
arquitetura em solidão e amor. Ou seja, arquitetura feita de uma mesma coisa
magnífica e explodida que nos amplia, acossa, dilacera e faz querer mais. Como
um pico. Como uma boca marcada por tantas outras. Como um abismo que não deixa
escolha, senão lançar-se. Estou em Macondo, desde o primeiro tiro que falhou em
minha têmpora, desde que elegi escrever para poupar os pulsos. Desde que o
conheci estou em guerra com a impossibilidade de escrever igual, ou ser tão
imenso que a partir de mim, verbetes sejam criados em dicionários e o cinema, a
música e mesmo a fala corriqueira da América Latina, trocaram os borrolós
furados da mesmice e se fizeram em ouro para saudá-lo. E depois de tanto me
dar, ele morreu. Numa pálida quinta-feira de abril. Não consegui chorar-lhe as
lágrimas devidas. Estava apto para esquecer e seguir, era o que pensava. Mas
hoje ao acordar, senti o peso daqueles dias voltando. Cobrando de mim o empenho
para mais um retorno sufocante ao que não sou. Dias de trabalho incessante.
Naquilo que, além de não me definir, não me arrebata. E lembrei a incrível
descrição da queda do Dr. Juvenal Urbino de Calle, marido de Fermina Daza, totalidades
existenciais – como dizia Manuel Bandeira – do romance o amor nos tempos do cólera. Ali, na narração de uma queda estúpida
que traçaria os mais incríveis contornos da história, descobri o sentimento que
me arrebatou quando soube da morte de Gabriel. Em segundos, vi toda a dimensão
do que ele e sua literatura me significam. E sinto que ainda estou lá, caindo.
Num tempo em que não sobram lágrimas para os ídolos, eu choro por ele
escrevendo estas linhas. Vou ficando por aqui. Suspenso na dor de sua agora
inexistência. Quem sabe ele cumpra o destino do velho José Arcádio Buendía e se
torne parte de uma árvore. Em mim, está. Solene, vultoso e sozinho, como uma
tarde de tempestades de estrupício em Macondo. J.M.N.
Baixe aqui, o amor nos tempos do cólera
Nenhum comentário:
Postar um comentário