A dor só se arrasta. E lembro todas as coisas mortas que me
fazem. Digo mortas porque soam como mortas. Estão lá, mas não têm vida. Jazem
muito tempo depois de irem. Implicam luto, ausência, desesperança e a certeza
de que ainda estou or aqui. Às vezes cheiram mal. São coisas do dia-a-dia. A
sopa fria que me fazem engolir, lençóis e livros despedaçados por mãos
descuidadas. O poema que nunca chegou às mãos de ninguém. Ademais, as vinganças
por tudo quanto não reclamei. São esses eventos de metal e vidro. Que ferem e
se estilhaçam como algo muito comum e tão frágil. Sinto o desespero daqueles
que me estão ao redor, esperando meu próprio desespero, que eu os marque em uma
lista de nomes que odeio. Mas não. O ódio não é para mim. Não este, corriqueiro
e deselegante transmutado em caridade ou martírio, em pedidos de estar e
bondade constante. Isso não soa bem. Sequer parece uma solução ao fim e o cabo.
No ônibus, pela manhã, indo para o trabalho, a velocidade de fora e a mesma do
esquecimento, e, ao mesmo tempo, a mesma velocidade da culpa – que me chega e
os alcança a todos no mesmo piscar de olhos. E quando miro novamente tudo é tão
rápido e tão permanente. Ao mesmo passo que absorvo os acontecimentos, passo-os
a um ponto negro da memória, desejando tê-los como amargos desaparecidos. Mas o
que acaba de ser imagem, ainda que borrada, tem cheiro, adere aos costumes e
vira história, passa ao livro dos dias. Ando mergulhado na compreensão de que
também sou feito dessas mesmas coisas doídas e feias as quais procuro repelir.
E se consigo é como estivesse saindo de cena, indo aos bastidores da cômica
tragédia cotidiana. Meus pares, ancestrais e rebentos são fotografias numa
parede branca. Chamá-los de pais, irmãos, filhos, amigos, inimigos, seja lá como,
é parte da grande e única verdade que me resolve. São todos parte de mim como
sou parte deles. Pertencemo-nos na mesma medida em que amor e ódio se
completam, transmutam e viram lágrimas, saudade ou uma obra-prima. Fico com os
primeiros já que não sou de me sujar com paisagens impressionistas ou o pó do
mármore de estátuas. Sujo-me com a vida e com a mistura obscura do que sinto e
do que sentem por mim. Do que sou, do que os outros pensam que sou, daquilo que
no fundo, nunca serei. Daquilo que não quero ser jamais. Prefiro o cheiro
diário do fim a uma eternidade de bem aventuranças. Sou mais para o inimigo
respeitável, cujo amor desmedido do oponente será tanto capaz de uma trégua
como de um tiro fatal à queima-roupa. J.M.N.
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