Vi o cacto morto, tombado desde o parapeito de sua janela até o vazio da área entre os quartos, espaço de nada guardar, de nada ser, sem serventia para a casa. O cacto partido com seus espinhos feridos e as fagulhas da tarde ensolarada lhe mordendo as últimas expressões de resistência. Tínhamos nos amado indecentemente naquele dia.
A plantinha tão dura e desértica que bebia tão pouca água estava morta. Não se sabe quem a jogou por desafeto aos seus espinhos. Jamais se saberá se decidiu levar seu tempo, por si mesma e atirou-se. Se assim foi, peço-lhe perdão por qualquer desgraça que lhe tenha feito. E entendo seu gesto como a última fortaleza do seu espírito de cacto.
Morria com seu verde desmilinguido o meu amor, morria. Naquela tarde de farpas heliocêntricas sobre o silêncio de nosso corpo único e desalmado em cama dela. Consumíamos um ao outro e ao lado, a dotação verde da esperança encarcerada de espinhos, falecia. Tão frágeis as nossas vidas no tempo em que o amor respondia por toda ferida, toda dívida.
O cacto se foi sem nome, sem deserto próprio para viver condizente. Foi ter com seus outros pares, as verbenas, os xique-xiques, outros cactos. Foi ser da aliança insuperável da vida eterna que se não nos chega. Deixou seus espinhos.
Quando me levantei de dentro dela para lhe sossegar o cadáver de planta banida, os seus espinhos ainda presentes perfuraram minha carne. Doer não doeu. Não causou uma assim ferida ou chaga. Mas um fio de sangue. Solitário e retinto de memória e nunca.
Aquilo devia bastar para que eu soubesse que “eu e ela – nós os dois” já era uma coisa só, que ia saindo gota por gota de dentro do peito. De seu último préstimo como ser vivo, o cacto, fez afluir o quilate sangrento do que morria. E deu sua vida para que eu compreendesse esse mistério.
O segredo de quando é o espinho que indica a validade das coisas.
J.M.N.
Um comentário:
Sei que fazer o inconexo aclara as loucuras.
Sou formado em desencontros.
A sensatez me absurda.
Os delírios verbais me terapeutam.
Posso dar alegria ao esgoto (palavra aceita tudo).
Manoel de Barros. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010, p. 339.
A você,
que sempre me afeta...
Beijo,
Maria.
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