quinta-feira, 18 de março de 2010

O amor é próximo

Intruso, estranho, estrangeiro. Melquíades sentia como se aqueles adjetivos já fizessem parte dele desde sempre, mas muito por dentro, como uma cicatriz pegada na banda interna da pele. Uma marca que só ele via. Por isso não gostava quando terminavam as solitárias apresentações circenses que compunha em paisagens empoeiradas e habitadas por humanos que não se sabiam como. Não gostava de ver o seu público entrando em suas casas pra viver suas amarguras e tréguas, os sabores pardos da vida. Por fora era um bem-vindo. Alvo de todas as saudades. Saudades que se expressavam em rebolados, gestos largos e provérbios brutos. Coisas que ele mesmo depositara no repertório árido daquelas senhoras idosas e de seus maridos em eterna semi-embriaguês. Eu o conheci na infância. Chamaram-me a atenção os pêlos nos ouvidos. Talvez porque ele gostasse de ouvir histórias. Ouvi-as às pencas em todos os povoados por onde andava com as bugigangas de fazer medo, alegria e tristeza. Usava os pequenos dramas do povo em suas encenações. As pessoas riam e se emocionavam consigo mesmas, em resumo era isso. A arte de Melquíades era ser espelho. E tu, Melquíades, qual a tua história? Perguntei um dia pra sua surpresa. Pela primeira vez vi triste aquele senhor de ouvido peludo. Olhou pra um cachorro sarnento e depois pra um grupo de urubus que se secavam no alto de uma cerca. Disse que não tinha o que falar. Que passara tempo demais se despedindo e que não permanecera onde as histórias aconteciam. Que de tanto ouvir histórias, não escutou a própria. Que se achava distante, alheio, embotado. Irreconhecido. Tivera um filho em um desses povoados com uma dona que o convidara pra dormir em casa por duas noites, sendo que fugiu na terceira deixando a certeza que corria de si mesmo. Da possibilidade de entrega. Ele não se entregou e acha que se perdeu. Nascera pra ser um reticencial. Melquíades inventava palavras, mas não sabia pôr títulos em suas histórias. Pediu-me um título pra sua vida. Sugeri: o amor é próximo. Ele virou-se sem se despedir. Vi apenas o gesto rápido de uns dedos amarelados limpando algo que caía do olho esquerdo.

WDC e Sofia, que deu o título.

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