sábado, 30 de março de 2024

Desesquecer

Já me tive mais do que agora

Que sei o que quero

Que tenho metas de vida

Já fui criança em cima de nuvem

Sem chuva alguma

Agora, pavor de me molhar e pneumonia

Já brinquei que morria em todo amor

E quando o amor me tinha, renascia

Era tal meu desentendimento que eu me mantive intacto por um tempo

Mas veio a gramática e o contra-cheque

E tudo o que eu sorvia, virou limbo

Quando eu resolvi dar certo

Não digo que o poema me abandonou

Mas me deixou comprido e difícil de rimar

Agora de pouco em pouco eu cismo novamente

E se não é sobre amor, falo da revista que ainda insiste em trazer notícia feita de carne e osso

Falo do sol triste das manhãs chuvosas

E, vez por outra, me sacrifico

Morro assim, um tantinho

Só pra não dar certo de novo

Pra fazer poesia e continuar vivo


quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Música por toda a parte

A vida chega em ondas.

São as músicas do novo ano migrando aos tímpanos 

Tambores da renovação.

O abraço coletivo em família, a segurança instantânea e as bênçãos de quem me ama e cuida.

O problema não é a idade, mas a quilometragem, dissera um herói do cinema.

Meu corpo range.

Passou um tanto de coisas debaixo dessa ponte.

Já tive arrependimentos, mas hoje transfiguro em sonhos, é melhor.

E aos que feri e me feriram, uma porção generosa do mesmo amor romântico dos livros da adolescência.

Pode não ser grande coisa, mas é mais do que eu tinha à epoca das batalhas.

Ao ano novo e às entidades que o defendem, apenas um pedido:

- um dia de cada vez para a gente de bem seguir cantando.


Para acompanhar a leitura:



Carta para Lenora

Arrisco dizer que sou teu projeto de vida.

Em sendo assim, querias que eu jamais aludisse à palavra liberdade

E a crueldade de tuas perguntas e mensagens, sempre tão desprovidas de bondade e maquiadas por tua extrema bondade quotidiana.

Isso é para mim, o maior dos mistérios

O que te falta que só encontras nesse desassossego, nas críticas e nos pungentes disparos da palavra rasa e sem vida que me destinas?

Ousei viver?

Ousei ser feliz?

Onde está escrito que teus nervos loucos e pernas mortas devem ser meu fardo?

Te acudi sempre que me foi pedido.

Fui atrás, sempre que me ignoraste.

E rezei cada vez mais vigorosamente, quando achei que te perderia.

Não posso mais.

Deter a vida em nome da tua dor.

Peço a Deus a força santa de um amor desmedido, o qual te entegarei sem fim e sem forma, até o fim dos meus dias. Mas, apenas isso!

Então está feito!

Não posso mais te acompanhar.

Toma, portanto, o meu amor de abismos, minha dedicação, contrariamente, do que inferes do meu silêncio eu tenho a vida, pois se me calo, não é porque estás morta para mim, mas sim, por não conseguir mais te amar aos gritos.

domingo, 27 de agosto de 2023

Fazendo as Pazes

Quero abraçar meus fantasmas
Dar-lhes colo, cantar-lhes canções
Quero embalar seus vazios com cuidado
Dar-lhes o amor oculto em meus pecados

Desejo que suas sombras dissipem
Que sigam em paz, meus fantasmas
De um lado há essa revolta inconclusa
E de outro, a saudade dos espetáculos

Vejo estradas, não caminhos ou atalhos
Ninho numa casa de sal e lágrimas
Embaixo da mesa, preso ao lugar do nada
Sou espelho para fantasmas, refletem-me

Quando não fui capaz de negar
No dia que não iniciei a fuga ou retornei
Quanto mais pedi desculpas por não ser
Fundei o mundo desses ectoplasmas

A correnteza me arrastou a novas praias
Onde nenhum sonho há, senão o presente
E o futuro é a voz das novidades sem fim
Quero estar unicamente, quero o enlace

E para tanto, liberto-lhes de minha dor
Fantasmas, ecos, aparições, avantesmas
Embarcarei num sono muito sozinho
De escuro, livramento, vinho e simulacro

Saiam de mim, cuja estrutura tanto usaram
Avante e sem passados, flutuem, transmutem
Caibam na boca de pessoas melhores
Façam morada em qualquer outro espelho

Quando eu acordar, esperarei o cortês acaso
Em ser o espectro dessa minha única vida
Fantasma, em carne e ossos, novas crias
E prometo esfumaçar tão logo eu caia


Para ler ecutando:



 

terça-feira, 9 de maio de 2023

Um cardíaco

Meu antro de receios
Meu coração
Cheio
De medos e oração
A pura metonímia da coragem
Despudorado coração
Sangrento
Abusado
Desaforado
Vai-se primeiro, antevejo
Vai-se aos tropeções
Sísifo das coisas absurdas
Das declarações desveladas
Dos saltos mortais
Vai-se herói da melancolia
Sobrevivente de abandonos
E mortes sucessivas
Ah meu coração impossível
Se deitares antes de mim, e quando
Será tua única afronta
Que sempre me deste mais
Do que podias
Em batidas, sonho e poesia
Em espera e esperança
Sempre trouxeste mais mundo
Para a minha, mais que todas
Inquieta solidão

Cantídio

terça-feira, 18 de abril de 2023

Efusões

Vamos dormir lentamente, com as mãos procurando saliências. Uma anca desnuda, a nuca enluarada, algum cume de montanha. O sonho aterrisa, é possível rir no túmulo provisório do sono. Onde o mundo derrapou e eu te perdi? Em alguma jaula de mim as coisas se acumulam. O cantor definiu por mim a ilusão do ritmo das coisas que não consigo pronunciar. O poeta me deu a lâmina afiada do delírio. Tenho cá esse projeto incompleto de ser feliz. Só por causa dos químicos é que assentei. Tenho amigos que me amam. Filhos que me amam. E ela que me ama. E sabe tudo o que sou. Só não consigo ser feliz o tempo inteiro (a canção). E a vida, às vezes, é um átomo que se animou (o poema). Esse ano que chega será ímpar. Minha idade também. E se eu posso cantar, pelo menos posso surtar em voz alta. E será Spanish Bombs, durante a virada, embalando o horizonte. Venham lindos 365. Estamos por aqui. A casa, a carcaça e a esperança. Yo te quiero infinito.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Rei

Emborca o corpo no lombo Do burro pequeno que levou o rei Sente a majestade do abandono O caminho de estrelas se abrindo Ora o rio te endireita e te leva Ora desmente a vida e te traga Desce daí menino sem sombra Dobra o sino em meu louvor Eu sou a solidão dos tempos Não levo nada a lugar nenhum Ora, que o rio te endireita e leva Nega, e o rio desmente a vida e te traga A beleza da pobreza é nenhuma E a realeza que te espera Só pode sobrar da tua própria entrega Parta-se para dar tua semente, eu Chora, que o rio há de compreender Sonha, senão a vida te liquefaz Sem leito por onde vagar Sem caminho que seguir

sexta-feira, 31 de março de 2023

Canção das antigas

Em vez de nós

Uma canção das antigas

A mística voz

Rodando no gravador

 

A dor de perder

De ousar e ficar

Sem você

Ainda me assusta

 

Foi tão bom

Que nem durou

E se perdeu

Dentro da escuridão

 

Um fogo intenso demais

No lixo a razão

E a fera paixão

A sorrir sem igual

 

Em vez de nós dois

A linha imóvel

Da solidão

Ficou esse amor

 

Sem perdão

De lados opostos

Amando segredos

De antes do fim

Ilícita

A dama do filme

Sorriu para mim

E as portas do céu

Fecharam para sempre

Não há santidade em seu corpo

Muito menos escape para o tolo

Que se deu demais

E se perdeu

 

Foi assim que nasci

Na perdição do teu ser

E meu querer deixou de ter

Intenção

Tornei-me um vício para ti

E de nada adiantou

Correr na direção da luz

Acabei como um gim

 

Como poeira que altera

Os sentidos

Acabei em mim

As preces na infância

E a vida que esperava ter

Acabei em pedaços na estrada

A esperar a carona do destino

E ele, assim sorrindo

 

Me levou de volta para ti


(Cantídio)

terça-feira, 21 de março de 2023

Epígrafe para um amigo

 para o José Aremilton

 

Meu medo é esse: ser esquecido

Dar boa noite à escuridão sem eco

Restar-me sem sobremesa ou dia seguinte

 

Toda vida que canta um pássaro, já basta

Encontro bemóis e algaravias naturais

Refaço a cama para o descanso noturno

 

Mas quando um amigo pede palavra

Acena em bytes ou escreve uma carta

Mesmo que não envie, mas me conte

 

É como a vida acudindo a alma

Anunciando sua beleza escancarada

Fico demais sentindo que tenho jeito


Cantídio

terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

A última neblina da manhã

Os prédios dormindo em pleno caos
Névoa opaca em todo lugar
Tua gente aberta feito veia
Indo e vindo, sendo a cidade
Tuas praças, cristais, becos e dentes, convidam
Cova rasa da existência em concreto  
Morrem ruas e maltrapilhos sob o olhar de Anhanguera
As bestas e ossos, tirania dos afazeres 
Não sabem que a vida é curta demais
Para essa distância imensa entre sonho e obrigação
Nas encostas esculpidas sem verde
As pernas errantes de quem apenas passa
Não deixam pegadas precisas, descaminham tua pele, um dia rosada
E a potência do que destrói o belo se faz presente
A fumaça de Caetano no topo das notas, no ocaso dos tetos
Abre veredas em minha solidão 
Das noites inteiras de fogo, coração e engrenagens
Nascem linhas aduzidas da tua estranha presença
E essa paixão espessa e estúpida que nutro por ti
Aos que ficam - até mais ver - foi igual a um novo nascer
Eu que parto, já estou perdido sem tua confusa beleza
Sem a destreza que tens de fazer-te amada e mortal diariamente
Volto ao ninho aumentado de tudo o que me deixaste viver
E por tudo o que me tomaste também 

(jmattos)

Pompeia, da janela do 83A
São Paulo

Janeiro de 2019

sábado, 15 de dezembro de 2018

Na boca da mosca

                                                                          Para CM com amor e imensidão


Finalmente te deixei ir. Peço desculpas pela demora. As coisas não estavam bem definidas. E eu ainda insistia na distância dos fugitivos. Ouvir palavras finais ajuda, mas foi apenas com o frio da lágrima caída, no momento mesmo da confirmação da tua eternidade, que eu desci das minhas estranhezas e alegorias para cair em um último adeus. Houve abraços e o atestado de falta assinado pela vida. E o que mais doeu foi a certeza de que ainda serão muitos os dias sem a tua presença tão necessária. Da mesma maneira que me ensinaste, o peso da aceitação é de densidade astrofísica. Imensurável. A tua ausência se concretizou na paz celeste que ainda não é nossa, no rosto dele que se chora todo por sentar sozinho e almoçar em silêncio. A tua ausência se serviu voraz do meu desamparo, do meu medo das próximas idades, dos cheiros que se vão perdendo. Mas, sobretudo, a tua ausência que finalmente experimentei ontem, jogou sem cuidado, os dados dos próximos capítulos. Mostrou-me sem pudor, as cabeças que me pensaram, branqueando a olho nu. A expressão de adeus de tantas lembranças. A mulher sozinha sentada sobre si mesma, que sem saber como transmitir sua alegria, disparou: não gosto de ti tão grande. Para ela deixei o apenso do meu cuidado, a palavra gentil e um beijo. Uma conta brilhante na capa do livro de orações. A vela falsa de ler vazios. Tudo isso se apoderou de mim, forte e cortante, por uns instantes. E foi apenas pela manhã, depois que finalmente tua eternidade se confirmou também em sonho, que me sumiu a dor nos ossos de dias a fio. Percebi surpreso - não era dor. Não era sequer minha culpa inquieta. Era a fratura número três na minha existência. Encomendada por sei lá qual força universal. Eram minhas mãos e meus sentidos dizendo a mim, nunca mais terei o teu abraço. Acordei feliz, uma forma de fingir inteireza que quase namora com a vulgaridade. Ao fim e ao cabo, é a última infância das minhas paixões se apagando. Vou apenas seguir fingindo que posso com isso também. JMN.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Inquietação

Sobre a música Inquietação, José Mário Branco
(na cadência da interpretação de J.P Simões)


O que sei eu? É o que pergunto. E pergunto não a ti, não aos outros. Pergunto a mim, muitas vezes, repetidas vezes. Não há escolha sem arrependimento. Não há vida sem morte e, de certo, não há razão sem loucura. O que nos coube, sacrificou todas as prudências, todas as inércias e nos pôs em vias de colisão, largados como em banguelas a testar a velocidade sônica de nossa entrega, de nossas disponibilidades, com as carnes trêmulas a querer-se em potência insustentável. Com tantas guerras travadas é óbvio o desconforto da paz. São argumentos de silêncio, pó e iluminuras. Na cadência da fala, escondo o que mais tenho vontade de dizer. Meus mistérios multiplicados vão-se intrusos em outras estrofes, como leopardos sedentos. Espelho-me pequenino nas garatujas de uma criança. Na entranha destas sentenças corre ainda nossa textura, nossa infeliz tendência ao imaginário sobreposto, às coisas extravagantes do desejo. Corre em mim – e agora só posso falar por mim – a estrada fulgurante das conquistas e o contragosto das cenas banais de domingo. Óleo e vício e entrelinhas – estes são os elementos que me procriam, a saber. Meu credo agora é palavra para leigo, sarça de incompletude, é o que me falta embebido de romance, lírica e uma boa dose de inquietação. J.M.N


terça-feira, 28 de novembro de 2017

Quase nada e o mundo inteiro

Persigo as peças que faltam. Corrijo rumos. Sobretudo, eu me adianto nas minhas estranhezas. Adentro culpas, precipícios e iguarias resultantes do assalto à tua blusa, o que eu encontro por lá. Depois, minhas mãos paridas dentro do delta. O teu. Úmido que saio. Tão cansado e cheirando a nós em novelo e arrebatamento. Uso primeiro uma cota de cansaço e depois a tragédia. Digo que já vou. Para sempre. Espero teu choro, mas ele não vem. Forcei demais. Eras minha havia minutos. Volto a tentar temas. Parnasianismo barato. A forma pela forma. Mas resistes. E eu me deparo com a coifa de uma raiz que me vai rasgando. É a tua presença. Violenta e quase repugnante. Volto da rua mais de uma vez. E vou deixando os pertences. Regurgito crimes, Manoel de Barros e outros tantos alaridos. Priscando, priscando, sempre em centelha e devaneio, sou um sonho por inteiro. Volto para antes de saber o que fazer com meus pertences. Minha carne, meu suor (que provocas mesmo parada, mesmo seca), minha língua intransigentemente posta a serviço de te pedir desculpas. Pelo que eu não fiz ainda, talvez pelo que nunca farei. Pois, afinal, não moves um músculo sequer. Não percorres a distância quase infinita entre eu te abraçar e tu me teres. Toda molhada, cheia de vinho pelas ancas e olhos, teus pelos, sentinelas, esperando minha derrota. Amontoados no centro perfeito da tua arquitetura. As mãos descompromissadas com o mundo e com meu amparo, em forma leve, dedos em leque, como as mãos dos estudos de escultura de um grande mestre. Tua leveza me enfarta. Eu te cheiro. Intensamente. Como quem cheira a terra no cio. És toda meu cio. És o romper bravio das ondas de um maremoto. E sinto teus tentáculos me enchendo. Deflorando. Vou ficando fêmea também. Muitas coisas eu fico. Fico em cima do meu desespero, lacerado por minha ignomínia. Sujo, apelando por uma mão que me salve. E, finalmente, estás. Não me tomas, não te mexes. Não existo mais. E o que me lembro é de acordar cheirando a nada. Desavisado do fim da estrada. Oculta apenas por um trapo, minha vergonha. Levanto de onde estou e fico frente à frente com o que se me sobrou. Enquanto limpas a mesa, ajeitas os cabelos e ordenas os discos que ouvimos, escuto larilás, teus lábios infernais entoando as músicas que eram apenas minhas. Sem força e sem vontade digo minha nova fome em voz alta – eu quero uma eternidade contigo. – Desculpa amor, só posso ficar até as três. É o que dizes. É o que tenho. Já me basta. JMN.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Duas esfinges

Perguntei-lhe para que servia a tira de pano amarrada à fechadura da porta do quarto de hóspedes. “Descobri que assim posso abrir a porta mais suavemente e não a acordo, sabes que tua avó precisa descansar”. Era de manhã cedinho. Ela acordou duas horas antes de mim. Foi até à padaria. “Dois carecas branquinhos, por favor”. Voltou para casa, tomou banho e ficou zanzando de um lado para o outro na sala. De vez em quando espiava pelo corredor para ver se eu já vinha. “Me conta como estão as coisas por lá, as minhas amigas já sabem, que bom que deu tudo certo”. Ela repetiria isso inúmeras vezes para quem quer que fosse, eu sabia. “Seu trabalho é bom? Como são as pessoas? Fulana ainda chora a morte da filha, disse que não se endireita, isso de perder filho é uma merda”. Meu café teve gosto de infinito. “De repente eu sento e dói aqui, dói ali; mamãe está bem melhor, mas se esqueceu o que é um sino [risos]”. Não há maldade em suas palavras, mas o nervoso de ver isso tão próximo de si, o esquecimento. E nisso, somos iguais. Suas mãos estão mais enrugadas do que a última vez em que reparei. Meu tempo passa por essas mãos, passa por seus olhos claros, pelo jeito como se intromete nas filigranas do que faço até hoje e isso me dá um prazer enorme, o que no fim das contas tem o mesmo peso involuntário de um incômodo constante por perceber o quanto sou feito dela. “Ainda tenho muito que fazer, não é fácil, dormiste bem?, vai que teu trabalho é muito longe. Espera! Me dá um beijo”. Um beijo que comporta tanta aflição e saudade, medo e ruptura, mas, sobretudo, bons sentimentos. Saio apressado. “Tchau, tchau, tchau”. Três vezes para ter certeza de que eu precisava sair e eu respondi ‘até mais’ bem baixinho, com medo de que fosse para sempre. Meu dia ficou entre política, indústria, um pouco de psicanálise geral e, debruçado numa aflição que para mim se confundia com o gosto do regresso, não podia esperar por vê-la novamente. Volto aqui e ela simplesmente me cuida!? “Quando chegares tem aquele arroz de que tanto gostas”. Ainda nem tinha saído e ela já sentia falta. Preciso aprender essa antecipação belíssima da saudade, como se fosse uma pré-saudade, uma coisa que chega antes e anuncia que vai doer, mas logo vai passar. Minha presença incita isso? É o que de melhor o dia me dá, a brevíssima certeza de que sou tocado pela coisa própria de quem se encontra consigo mesmo, a sensação de pertencer. Acabo de entrar. Sei que deixei o quarto arrumado, mas ele está ainda mais limpo e cheiroso, com toques de quem esteve entrando e saindo de lá, melhorando em detalhes finíssimos os ajustes já perfeitos do amor. “Tira a camisa, está molhada, assim gripas, assim podes até ter asma de novo”. Claro que eu tiro, claro que eu penso que nada mudou e por uma fração de segundo sinto um incômodo estúpido por estar em suas mãos. “Vamos comer?”. Espera!, eu digo. Me conta do teu dia. Seguimos ao sofá da sala e, sem resposta ela aceita o peso do meu cansaço em seu colo. Não houve palavras dali em diante. Ficamos apenas sendo. Enfurnados um no outro com nossos enigmas e segredos. Eu o filho. Ela, minha mãe.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Quando eu resolvi me esquecer

(coisas perdidas de 2004...)

Sem dó nem compaixão me esqueci. Dia cinco de mês e ano quaisquer. Em meio ao abraço, desaparecido. Promessas de eternidade quebradas. Amado eu já tinha sentido ser. Porém não naquela altura. Tinha esquecido qual era o gosto de saber-me. De qualquer jeito, acabara ali minha unidade com meu antes. Deu-se um salto no tempo e passei a me relatar feito história acontecida. Nada mais disse. Você não me obrigou e, mesmo assim, eu fiz um discurso de abandono. Fiz meu monstro literário nascer bem ali. Escrito a sangue no primeiro dia de meu esquecimento.

Você não tinha culpa. Não tinha peito. Sequer uma cama para abrandar minha luta. Não tinha fósforo para o incêndio. Eu me despia e era seu, apenas isso. Um nó no peito. Dó de não me ter por perto. Endireitado como um esquecido. Como um violado. Minhas palavras nasceram sem mãe nem pai. Deuses e Diabos contribuíram. Carne de primeira aquela sua. Jamais voltei. Perdi o terço. Minha avó sabia quando me indicou Santo Expedito. Estou preso diante de mim. Esperando do lado de fora para entrar. E vejo saindo os arrependidos, os mal vividos. E eu não saio nunca. Tampouco entro.

Você não tinha jeito. E eu não tinha direito de ser sem mim, antagonista desta vida inteira. Tanto quanto eu, você era sem ser. Não tinha trejeito que recompusesse. Eu sabia tão pouco sobre mim e mesmo assim, fui adiante. Vê se me esquece. Cresce e desaparece. Nunca mais volte ao passado que lá eu sou apenas meu. O que escrevo, escreve-se e fala sobre amanhãs e postais. Meu monstro dorme insuperável e eu, apenas esqueço uma ou outra palavra. Meu bicho, se você não sabe, é uma mulher que nunca existiu. J.M.N.

Para ler escutando...


Excertos Terapêuticos

"Espalhou-se que estava morto, louco, sujo das lamas da rua, seus trapos fediam, sua cara era outra. Achavam que se o deviam chamar pelo nome da pior das bestas. Perdera a propriedade de ser gente. Grunhia. Enfezava-se por qualquer besteira. Qual o quê! Estava perdido da esperança. Prenderam-no num quarto escuro e perguntavam-lhe insistentemente qual sua maior culpa. Ele disse mil vezes: não a ter amado mais. Não ter sido menos meu. E viu-se diante do que fora incapaz de admitir. Não havia mudado em nada. Não fedia. Seu nome era comum e registrado em cartório. A prisão era um sonho recorrente. A culpa esta sim, alimentava-se dele e dele extirpou suas melhores horas. Não estava sob a mira de ninguém. Ninguém o perseguia. Quedou-se morto em si mesmo. Arrependido de não ter dado um último beijo, não ter sentido a respiração dela em uma última noite em claro. Voltara a um tempo de pouca ou nenhuma comunhão. Tempo antes do amor."

Cantídio - Livro das culpas perfeitas

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Monólogo à guisa de salvação

Nasci na forja dos desatinados e fiz razão sem ter nenhuma. Sou o oposto do que o medo rege, a impossibilidade, paralisia. Sou caminhante, puramente. Sempre em movimento está meu astro. Quando veio a mim o primeiro homem, comi seu casco. Como uma besta a pedir divindades. Sou o que sou. Quase inteiro. De certo, risonho. Desses sorrisos que quando em quando enchem teatros. Sou mais da pena e das escrituras que quando entendo saber de menos, escrevo mais. Meu mundo passadiço é uma história mal contada. Caibo entre teus braços. Toma-me, senão escorro. Afeita-me, senão desgraço. Em tua boca roube o ar que me anima. Era um beijo lancinante e quase escravo. Quando te vi desgraçada e branda, acendi. Pus pólvora e chamas entre teus músculos. Voltei a escrever o que ninguém habita. Dentro do meu corpo de palavras desapegadas cabe bem mais que a eternidade prometida dos amantes. Muito mais que as paralelas de Euclides. Não os encontraremos nos saguões finíssimos. Sou do brejo e da fome. Do seco deserto de muitas luas. Escrevo essa claudica oração sem améns, sem anjos que a repitam. Justamente por saber que a poesia a tudo enfrenta. Inclusive essa ferida recém-aberta. Essa pústula flamejante que me desassossega. Como impedir que sintam pena do que eu choro, agora depois que todos os mortos me atropelam? Como pensar que estive em Gaza e na Macedônia, quando eu estava perdendo as forças dentro dela? Aqui e ali me aborrecem e no vago enterro desse meu corpo, deixei bem mais que uma oferta. A verdade desabalada em página branca. Fui senhor de dois castelos e um bordel. Nos primeiros fiz fortuna e no último causei nos ventres. A ululante canção das eras. Pariu-se o que deixei macerando por anos. Era minha solidão acontecida. Deu-se que na pessoa que lhe deu forma, a própria história acontecida era a minha. Não sei o que digo senhores e senhoras, mas de lambuja botei na página o que me intriga: pode qualquer Deus me salvar das paixões? Pode qualquer humano me impedir de ser sozinho? A resposta deixo a ti, quem me lê e ri. Cretino escrevendo baboseiras. De fato, balbucio algumas letras. A palavra que me falta é de um azul impossível. Eterno seja a página que me suporta, pois que não mais me suportam essas mil vidas. 

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Fragmentos

As partes deste sonho misturadas
São como âncoras de um barco à deriva
Falíveis, dançando nas águas
Sem tocar o fundo
Tudo se encontra nestas partes
Meu corpo que antes respondia
A janela branca do fim da rua
Partes do coarador do quintal
E tua presença
E tudo, ao mesmo tempo
Se perde nos fragmentos
A verdadeira ousadia, o olhar
O frêmito do dia da partida
A vontade de não voltar jamais
A presença sem forma
De outros tantos sonhos
Agora que eu vi com os mesmos olhos
As cores de seu esquife
Perdoe-me a franqueza, mas
Não ando querendo fulgências, ar
Tragam-me a carne viva e pulsante
Espero um beijo de morder-se
E regozijar
Um poema de carne osso
E temporais
Como as partes misturadas desse sonho
Já tão distintas do que eu queria
Anteontem
Já tão prenhes

Dos quereres de manhã

(J.Mattos)

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Po(e)magem

Sigo meu curso depois de atracar
Meu ubá descansa de sua lida
Levar e trazer, levar e trazer
Dorme bem meu lugar de caminhos
Nos escaninhos do rio
Esta é minha carruagem
Assim, dormindo atracada
Um animal descansando
Feito pelas mãos de quem
Não se cansa jamais
Subir e descer essas águas

(J.Mattos)

Eis um homem (de quem ouvi falar)

Os clérigos contaram suas histórias. Estranhamento e fuga. Deus era mais próximo do que lhe diziam, era o que achava. Estava nos seus erros, estava em seu pessimismo e em sua sincera falta de alegria nas coisas mais simples do dia-a-dia. Aliás sua convicção levou-lhe a todos os cantos do mundo, procurando a Deus. Procurando-se. Seus limites. Suas imensidões. Seu homem como espelho procurava, a humanidade que se enfrenta em abraços cada vez mais escassos. Foi-se pelas águas dos mares e pelas dunas secas de muitos desertos. Não era bem um homem de crenças. Cria na humanidade, todavia. Certa vez teve uma visão e a seguiu durante muitos e muitos anos: alguém abandonado na chuva era mais bonito do que véspera de Natal, mais bonito do que um barco minúsculo enfrentando o Pacífico. Uma pessoa que se molha na natureza insuperável desse mundo é matéria de vida, uma escultura preciosa de se ver. Tudo é silêncio ao redor. Tudo está ao seu dispor. Não há a mediocridade da classe média, a mesquinhez dos abastados, não há classes. Há a pessoa em si. Sozinha em si. Lavada pela única água que abençoa. Cheirava à divindade que perdemos em nossas bocas humanas nas falas do tempo. Criando limites, enxertando pesares quando tudo deveria ser um dia após o outro. Cintilava a pessoa na chuva que ele viu e amou instantaneamente. Não porque fora abandonada aquela pessoa que ele viu sozinha na chuva, mas por que era perfeita. Seguia pela fina estrada da existência mesmo sem ter ninguém por si. Encharcado de tanta vida que lhe foi impossível sentir-se diminuído pela imagem. E assim virou o líquido que encimava a pessoa deixada à própria sorte. Molhou-se de tanto sentir que era necessário estar disponível para todos em todos os lugares. Dia desses, foi o que me disseram, ele foi visto enchendo rios em províncias do sul. Choveu-se sobre mil pessoas que não bebiam águas do céu havia anos. Encontrou-se. J.M.N.

Porque nem tudo é como você pediu

Se ao menos você soubesse de onde eu venho, por quais desertos passei. Se houvesse a mais remota chance de você estar em meus sonhos e acompanhar meus medos mais hediondos sem a certeza dos que acham que a alegria é a única decisão possível. Que ao cabo de contas, é uma decisão, enfim. Se fosse viável a você chorar nos primeiros acordes de “sonata ao luar” e ficar realmente chateada ao fim de “eles não usam black tie”, imaginando o que deu errado com o romantismo. Talvez eu pudesse enviar um sorriso, uma rosa, uma página arrancada do livro que mais gosto – em cujo título tem a palavra “assassinada” – fazer um chá e sentar sob o sol torturante de Rabat numa de nossas viagens imaginárias. Mas você insiste em dizer a todos que há mais fraqueza que introspecção no meu mundo e que já não suporta mais falar comigo ou me chamar de amigo, pois não quer ninguém de cabeça baixa ao seu lado em fotografias, nas festas de fim de ano. Minha genealogia lhe incomoda. O fato de eu ser sempre mais amável do que rude. Minha resposta macia diante de tanta aspereza. Eu não morri. Apesar de já ter quisto imensamente. E se fiquei por aqui foi por conta de outras tantas delicadezas que encontrei no fundo da minha mais desprovida solidão. Saiba: não desejei tantos sensores de realidade fixados em minha pele, nos meus olhos, nos meus dedos que teimam em segurar a pena e escrever independentemente do que eu sinto de mais sofrido e escuro. Se você ao menos pudesse sentir esse vento nos cabelos, e conseguisse na suavidade do tempo que passa enquanto o vento sopra, anular a carga de raiva que nutre por não me entender, saiba... A liberdade que você declara teria a mínima chance de acontecer e ficar. As coisas não seriam assim tão desagradáveis e seu amor eu entenderia como a única coisa possível desde que nos conhecemos, não essa sobra de uma conta que não fecha jamais. Tenho menos esperança na alegria porque dentro dela sou destinado a estar mais longe de mim e se isso me faz estranho, bem, devo dizer que a mim, isso serviu como vida, serviu como aquilo que faz com que os momentos alegres sejam ainda mais especiais. J.M.N. 


Trilha sonora...


quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Ditos para o confessionário #1

Eis que algo novo começa. Alguns o chamam de ano. Eu de tempo. Assim genericamente. “Começa um novo tempo”. E eu estou nele, mesmo que vindo de outrora, de um século, de uma dúzia de mortes e pendências. Meu cristal duradouro agora encandece. Um recomeço. Reinventar-me. Tudo em mim é revirar, despossuir. Meter-me onde não sou chamado, onde as pessoas se consomem, onde as línguas não têm importância, pois todo dito se compreende. O cerne dessa coisa coletiva e ancestral que descobri há muito e participa intensamente de minha experiência de eternidade. Essa coisa que chamo corpo. Tempo inaugurado frente ao tempo contínuo que me antecipa e certamente me superará. E depois voltará à inexistência quando tudo vier a ser a mesma coisa. Estou destinado a esta alma. A mesma que desandei em Granada, a mesma que venceu as Púnicas e a mesmíssima que varreu do meu dicionário a palavra amor, só de prosa. Sou essa mulher escondida entre os dedos do autor. Na frase mais jocosa e entregue que se pode escrever. Sou destinada a feder e implorar por beijos e cetins e sim, sou daquelas que comem mal para manter as curvas e manter segredos entre os jejuns. Sou igualmente o homem perdido em espinhos, cujo abandono nunca foi bem interpretado e a sandice de ser perfeito o levou aos céus; deu-lhe uma humanidade sórdida e carente para redimir. Sou aquela criança no banco de trás quando ocorreu o acidente. Sem cadeirinhas ergonômicas, sem cintos de segurança ou a asa de uma mãe protetora a me segurar. Varei o vidro da frente. Estatelado no meio fio só restou chorar por mim. Eu que morri de abandono, de susto, de fome. Eu que fui conduzido à cova enrolado numa rede com os olhos abertos em uma procissão silenciosa no sertão do Brasil – única criatura com pureza suficiente para olhar nos olhos de Deus. Eu meliante. Déspota. Escritor e poeta com endívia nas palavras e feltros no lugar de dormir. Sou essa entidade impúbere e crente. Ridícula, falando sobre amores e fomes. J.M.N.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Eu serei pra você o que não importa saber

Ao me esquecer sairá dos teus registros nossas aventuras em África, água boa das fontes de Santo Antônio, um lugar qualquer onde paramos para espertar a tarde e tirar o pó da estrada de dentro das esperanças. Usamos. Ousados. Como fossem os medievais coquetéis para fingir entidades e tocar Deus com os neurônios tesos e a boca ressecada. Um luxo que aprendemos em Malta. Quando saíres de mim ficará o mar de Figueira em meus olhos empapando a dor do lugar que ocupavas e agora só fica sendo uma de minhas metades. Oco com nome e sobrenome. As iniciais cravadas em bronze. E o que me resta é olhar as letras perdendo o brilho como as de uma sepultura doada ao tempo. Onde morremos é o lugar em fica o último beijo. Morri na tua boca silenciosa mil anos atrás. Ao menos deixei tuas sandálias a vista antes de sair pelo mundo. Ao me evocar quem sabe no ódio profundo que me dizes sentir, serei a lança ou a espada aguda que rompe músculos e cartilagens. Nunca mais o perdão sequer. Nunca mais algo mais entre nós. Perdemos as cartas, as roupas, os guinéus feitos à mão. Quando quiseres me amaldiçoar sei que ninguém se salvará da tua fúria. E dos cânones de tua ira sairão as palavras vida e eternidade para unidas significarem o que não fomos, o que não fui, aquilo que sinceramente esperavas nunca ter pretendido alcançar. Serei tudo o que não importa mais saberes. Serei a minha química desordenada. Serei o último a sair da livraria. Serei aquele que sempre se esquece dos dias de finados. Uma pedra. Um pássaro de canto triste. Serei o mais culpado dos culpados quando te esqueceres de mim. E quando eu voltar àquela praia gelada num mês de dezembro qualquer, abraçado ou sozinho estarei sempre lamentando uma única coisa – ter consumido sozinho o que era para ser de nós dois. J.M.N.

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terça-feira, 13 de dezembro de 2016

40entas

Tantas emendas, mas o corpo ainda aguenta a estrada. Aqui nesta vida não se usa transporte rápido. Tudo se passa na longa via de chão batido e às vezes buracos. Esta via, entretanto, é que talvez já não seja a mesma do início. Tantos desvios e túneis, ramais. Como novas veias paridas no escape, na aventura. Meus heróis estão fora do alcance de meus retrovisores. Esfumaram-se pelas rotas abandonadas. A graça é que nenhum deles viveu tanto quanto eu vivo agora. E como disse o personagem do filme de aventuras: o problema não é a idade, mas sim a quilometragem. Duas voltas em Marte. Duas vidas na mesma vida e ainda a infinita bondade dos livros para dar precipícios nos quais entro e saio vez em quando. Meu tacógrafo aponta erros. Não posso ter existido só isso. Fico feliz quem nem Neruda a dizer por aí – confesso que vivi! E se a mágica da existência é compreender que ela só serve se temos gente ao redor. Bem, estou no meio do espetáculo. A claque trás de mim vibra com quedas e corridas. Eu me vejo nos olhos deles cheio de lágrimas e às vezes raiva. Não sou o estrangeiro Mersault de Camus que queria mais gritos de ódio em sua morte, tampouco Ivan Karamasov que sem Deus achava que tudo podia, ou não achava nada. Sinto-me o Zé de Adélia Prado: amado como homem, com meu coração de carne, com minha matéria, fauna e flora, e mais ainda meu poder de perecer... Sinto-me desligado dos meus ódios primitivos. Da minha preguiça de amar que me serviu apenas para embalar tristezas. E sinto-me na grande peça de teatro do Nei Lisboa a correr meus olhos entre o presente e o futuro que agora almejo com força tanta. Meus vinhos, meus livros, meu filho e os filhos que ainda quero que venham. Ver a Lua que me ocupa a metade pela manhã alvorecer como só ela sabe. Depois de deitar entre mortos, de esquecer como soava a minha voz quero esclarecer o mundo que não nasci pronto nem perecerei com saldo ou heranças. Caibo neste tempo que me arredonda e apenas isso. J.M.N.