terça-feira, 12 de março de 2013

Antecedente

“Parai tudo que me impede de dormir:
esses guindastes dentro da noite,
esse vento violento,
o último pensamento desses suicidas.”

O sono antecedente – Jorge de Lima

Aos que andam pela noite sem princípio nem fim, eu rezo com a voz nublada e sem limites – somos todos irmãos. Somos todos da mesma pedra no caminho de tantos.

Aos marechais das guerras vencidas por outrem, oferto meu uniforme de gala. A pose, a fome, meus objetos de pendurar luares. Somos todos, guirlandas de festa e fatalidades para algum covarde que não viu nossos sinais de alerta.

Aos homens do esgoto. Aos cérebros malignos. Às artesãs do corpo, minha coragem. Revolvem o que apodreceu, pensam em tantos assassínios que não lhes sobra vida para cultivar amigos e, por fim, dormem com tantos insones que não lhes sobra cansaço para que venha alguém e queira velar.

Aos amigos que partiram. Aos amores que morreram ou se mataram porque pequei. Aos fedores das lembranças sobre as cômodas de alguém, minhas desculpas mais sentidas. Não lhes soube as raízes e, portanto, não as alimentei. Não me soube a tempo e, portanto, envelheci.

E como aos cheiros não se emprestam carícias, sinto não ter chegado antes de ter sido usado. Apenas para evitar a lucidez tardia da derrota. Apenas para caber no tempo antes de toda a dor. J.M.N.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Desposse

Era meu apelo chamando e chamando
Agora, é o que não grita nem
Há silêncio em todas as notas
E avisto a distância impensável
Que antecede o lugar que me atém

O beijo fundo e sem gosto
Com que me gosma a língua do destino
Vai sucumbir – ferido e deposto
No que sentir a viva em seda
Nascente, doce e inteira

Do que não tenho, mas procuro
Um gosto que decerto antecipa
Lugar que não contem quase resposta
Todas as letras e, entrementes
Encontra-se toda a humanidade

Justo o que falta ao carrasco.

J.M.N.

Po(e)magem #9

Sobre foto de Affonso Romano (grupo Nanos)

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Quando eu chego ao fim de tarde alaranjado
Venho minguado na grandeza que me alteia
Em todo canto me transformo e vou caindo

Não como os deuses de antigamente vou sumindo
Vou como homem me agasalhar adormecido
Dentro da noite que minha luz assopra e vence

Saudoso da eternidade em seu sorriso
Que ao ser solto me procura e reacende
Torna-me um sempre, ser alado e radiante.

J.M.N.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Porque voltei

Voltei por amor. Por medo. Por achar que não podia conquistar o planejado. Voltei por razões secretas, escusas até. Jamais simples ou impertinentes. Voltei porque a terra me saia da boca, porque meus olhos estavam cada vez mais admirados pelos campos de cereja em flor e pelas peles mouras dos cantos de lá. Sem mais, eu voltei.

Pisei os mesmos percalços, as mesmas intrincadas dúvidas sobre ser ou não ser. Pisei nas dores de outrem, nas esperanças de muitos, no silêncio insuportável de um. Pisei, afundando meus pés nas areias traiçoeiras do exagero, da instância última – a língua precipitada de afloramentos. Pisei meus princípios, meus medos, minha genealogia complicada. Cheio de forças, pisei no passado.

Agora a volta é antiga. A hora trágica da descoberta da solidão é um sonho repetitivo e as conversas sobre quem serei ou o que deixei do outro lado não andam mais na moda. Agora é o presente pastoso de pássaro sem grades, de monstro sem sustos e de canalha exumado. Meu amigo escravo persegue meus riscos. Agora é a memória dos amanhãs e a certeza de que muitos passos dados vazaram pelo caminho.

Voltei para repetir os triunfos sobre mim mesmo. E falhar mais uma vez às portas do tédio. Voltei para certificar os pecados mais desejados, os cumpridos, assumidos. Até aqueles, que levarei para o túmulo. Voltei, uma vez que por dentro eu era o mundo e por fora a mesma rua por onde passava a minha esperança de vê-la. Voltei para os pastos idosos dos meus campos da infância, ao choro fino pela morte de Dadá.

Voltei para esperar que meu dentro de mundo se revele e me rapte uma vez mais. Para mais um sempre medido – um ínfimo imenso. Quero que isso tome conta do que não suporto e me atire ao acaso. E me atire ao além do que é possível. Tão somente canção e poema. Tão somente o que sou mais no íntimo – tantos sentidos dentro do mesmo e finito conjunto de ossos. Um nervo percorrido pela vida.

J.Mattos

terça-feira, 5 de março de 2013

Sem defesas

Ando todo sensível.
Durmo quem nem por sobre um monte de plástico-bolha. O estalar crescendo, micro batalhas atestam-me a vida. Bolhas de ar extinguindo. Somos eu e minha ansiedade adormecendo.
Distante, o crepitar dum fogo. Lareira que dentro de casa acende o teu rosto. Venho atônito. Descambando. Tivesse escadas em nossa casa, eu teria caído. Tivesse a memória bem feita, diria meu primeiro poema como se fosse teu, que te espero uma vida e meia, inteirinhas.
Disseram que eu viesse aqui, sempre ao papel.
Confessar.
Fosse um padre, não falava.
Fosse meu pai, teria vergonha.
Fosse você, teria perigo para minha estadia. Podia afinar feito um líquido, indo seguir uma grota qualquer dentro da terra.
De tão urgente de ti, sou medroso.
De tão cheio de intento, meu tato sacode as palavras.
Elas se criam.
Comidinhas de nervoso e impressão belíssima sobre o que mais me agasalha – teu olhar me amando baixo e firme.
Não sou desse tipo que se renova.
E ao ficar mais velho, aprimoro o único sentido que me faz bem, o olfato. Com ele tuas distâncias se encurtam, os dias sem a tua presença se expandem e eu acrescento mil descrições sobre a perfeição de quando estás.
Faz-me uma certeza que seja. Morde meus livros, bagunça as fotos, termina minhas frases de despedida.
Faz isso para que eu supere a sensação desgastante de desejar ilusões. Para que não avoem as sementes envoltas de algodão – amor e medo. Fuga e fingimento.
Não que eu queira te dar todo o trabalho, mas experimenta levar um quarto do que trago nos olhos e entenderás.
Sempre que te vejo, são cem desertos que percorro, são mil as liras que me acompanham, são milhões os raios que me alertam e apenas uma a razão.
Vê o quanto o amor tem de companhia e a verdade ou os dias, têm tão poucas defesas contra sua chegada.

J.Mattos