Ele tinha mais livros lidos e mais livros por ler. Ele tinha mais anos que ela. Ele tinha mais amigos que ela. Ele tinha mais família que ela. Ele sempre teve mais que ela, e quem olhasse de longe chegaria à conclusão óbvia que aquela era uma relação desigual. Poderiam pensar: quando tudo terminar, ele vai sentir menos saudade que ela. Depois do fim ele não estará tão à deriva quanto ela. O desespero baterá menos à porta dele à noite. A loucura e o medo não o ameaçarão. Já a ela...
A realidade das roupas não coincide com o real da pele. O escondido de todos nós é o que nos nomeia e, com uma fome incontrolável, vai comendo nossas certezas. Não segue lógicas, fala em outra gramática. Fala em línguas esquecidas, o amor.
Estas foram matérias vistas por ele nas primeiras séries da vida. Sempre passara arrastado, por isso não entendeu quando livros, amigos, exercícios, filosofias, todas essas quinquilharias não preencheram a vaga deixada por ela. Só percebeu que a fila não andava quando viu que o chão fugira dos seus pés.
Alguns paliativos ela tinha deixado: a promessa de, mesmo depois de 10 anos, lembrar do vestido azul marinho minusculamente florido que ela usava naquela manhã de sábado em que os dois ultrapassaram juntos os limites da cidade pra que ela pagasse contas. Meia garrafa de vinho na geladeira dela. O desejo compartilhado de que um dia a geladeira fosse deles e que aquela garrafa enfim se esvaziasse. As fugas. A timidez da mão dada no meio da rua. A lasanha que ele não esperava tão gostosa. O corpo dela que devagar se convertia no seu templo mais que sagrado.
A saudade lhe passava rasteiras, batia-lhe a razão, a estética. Afinal sentia falta de suas imperfeições. O nariz torto, o cabelo ralo, o lodaçal das palavras quando tomada pela ira, a bizarra capa amarela ocultando o estranho hábito de vestir-se no trabalho nos dias de chuva. A tolerância sempre ínfima com horários, com mensagens, com ligações, enfim, com o tempo que restava para os dois se pertencerem. WDC