segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Prosa serena

Um avião decola entre meus vasos sanguíneos. Um frêmito de reorganizar a estrutura dos ossos e da carne. Olhos, pele, batimentos e gritos arribados. Provavelmente estarei descendo em algum lugar desabitado. Utilizado apenas pelo verde e nada mais. Minha identidade é a flora que permanece em pé, a despeito de meus passos, a despeito das cruzadas e de seus combatentes. Sou tudo isso que se repara no vento quando na canoa as ondas quebram que nem as pedras do pior caminho. Um barulho que só a poucos é dado. A vida indo. A seguir suspeitas e vontades que nem mesmo a razão ou a coragem tem maneira de vencer. Meu remar é inconstante, porém menos alquebrada é minha sede por estas praias a que chegarei daqui a uns quilômetros. Destinos finais para alguns. Cais e despedida para outros. Sou um desses, cujo canto imita o berro perdido de um boi no abate. Comerão sua carne. Entretanto sua liberdade já chora sua ida bem no fundo do macio do vento. J.M.N.

Sobre vícios, folhas de acetato e algumas dúvidas

Tornar-se líquido, bebível. Transformar-se em substância a sorver. Básica, ácida, colorida naturalmente ou com pigmentos inventados. Ir para dentro de alguém. Habitá-lo, fazer parte dos sistemas, passageiro das sinapses, aludir necessidades de corpo inteiro, causar a pressa absurda pelo alívio. Ser mais íntimo que qualquer sentido permite ser. E repetir-se. No mesmo e arrebatador querer do dia anterior.

Permitir as verdades de alguém traduzidas em nós. Sobre nossas próprias verdades. Ser de nada, ao menos uma vez. Nossa pele transparente ao quesito alheio. Os riscos porosos de agarrar e nunca apagar traçando rios, ilhas, palavras soltas e espirais. Nosso deserto elástico a receber definitivos arabescos, retrações, filigranas bem resumidas e tão delicadas que o breve passear de dedos suscita a vida, o despertar de todos os anos de adormecimento compartido ou solitário.

Quem pede por isso? Quem se atreve? Quem deixaria a vergonha seguir seu rumo e pintar a si como a todos os outros intrusos da felicidade? Qualquer coisa precisa ser dita. É necessário o caminho seguir. É desgraçada essa impetuosidade por manter-se, não mudar. J.M.N.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Sexteto de inverdades

Sou como a verdade a buscar pretensamente ser tudo. De erguer-se absoluta por sobre as cabeças pensantes do vale.

Sou com a corsa desgovernada, cuja velocidade da fuga não impede de ter-se feita a surpresa do impacto.

Sou como a rosa murada. Que suas defesas não usa e já não chama ninguém sua beleza perigosa, de tão domesticada.

Sou como o outro eu mesmo. A rosnar palavras de espelho, a esperar o retorno das vozes. Com medo de saber quem eu sou.

Sou de tantas mãos como o tato. Um sentimento em si. Seja textura, maciez ou desventura.

Sou a palma da mão de um homem, sobre a última nota no balcão. J.M.N.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Palavras de Ontem Indica

image

Se eu fosse pedra gostaria, certamente, que Eduardo Galeano contasse minha história. Ninguém o faria melhor. Pouquíssimos conseguiriam em historietas de breves linhas, dar sentido para existência de um mineral e tecer sobre sua roupa desprovida de encanto, a palavra viva que ecoa sabedorias ancestrais.

Seu livro “Bocas do Tempo” serve para amolecer pedras, para tergiversar a rudez com que o tempo nos imprime marcas, rugas, palavras anoitecidas. Aquelas linhas de suas historietas costurando imensidões da história dos homens às mais circunstanciais vivências dos personagens, fazem o livro ter essa amplidão que apenas o tempo transcorrido ou inventado pode nos dar.

É possível a Galeano, falar de Copérnico, de sua tia, de Caetano Veloso, de uma pessoa que acha um osso enterrado e, ao mesmo tempo estar a falar sobre amor, sobre a infância, sobre a água e sua indispensável existência. Mas não só: a terra-mãe, as Américas dos três descobridores, a palavra, imagens, música, política, diferenças raciais são material para o belo, para o sem fronteiras.

Envolto na mítica transcendência dos personagens, muitas vezes encontrados nas argilas das memórias que insistem em fazer-nos escorregar de volta ao começo de nossos pensamentos, Bocas do Tempo é, sem dúvidas, um livro leve, feito para ler comendo pão e café-com-leite pelos fins de tarde. Feito para ser citado em reuniões com amigos, mas não os literatos ou intelectuais, porém aqueles que sabem o gosto da palavra pedra, da palavra tempo.

Não deixo recomendações, não faço votos de que este seja um livro de cabeceira para quem quer que seja, entretanto, faço questão de dizer que em suas páginas é possível saber-se pedra e água, saber-se passado e futuro, saber-se, mais que tudo, integrante das incríveis armadilhas e portais que o tempo nos abre quer seja de maneira involuntária, quer seja num livro com seu nome no título.

J.M.N.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito*

A todos aqueles que fazem
de suas noites e dias
um único infinito de estados e soluções.

Um dia a gente nasce e chora e parece que o mundo todo cabe em nossos pulmões, sem fronteiras, sem restrições ao ar de fora – escuro de pó e pressa. Ao sentir o primeiro tato completo, que é feito da forma e da fundura, da cor e da textura, temperatura e utilidade, sobe como um suor de trabalho extenuante que é a flor do descobrimento nos arrancando do que antes era apenas repetição das inflexões do outro. Ganha-se razões.

Um dia a gente abre a janela e aquelas tranças tão longas como as cordas do varal laçam a gente. E fica-se desatinado e preso à tortura de quem passe para resgatar o prêmio de dias antes – nosso peito, nossas primeiras insônias, as crônicas escritas em primeira pessoa. Finalmente acontece o cúmulo de sairmos de dentro e passarmos ao outro. Uma oferta irrestrita, de aceite incerto. Ganhamos as possibilidades, escolher é o próximo trabalho.

Um dia a gente não acorda mais. Por que não dorme mais. Por razões e possibilidades que não nos pertencem mais. Que saem de nós aos outros, aceite independente. O suor lavando o rosto de um cansaço espúrio. No tato um odor de tragédia que não se repassa a ninguém, que além do sentir, os pulmões expelem como a um tudo que não se suporta mais. Haverá quem diga chiste, uma tristeza permanente e sem dignidade.

Um dia o sol é o mesmo do dia anterior e o tempo passa definitivamente ao relógio. Nossos descobrimentos deitados nos ponteiros. Uma confusão desatinada entre o que somos, o que fomos, o que temos... O ser reclama um espaço, mas tudo faz parte do mesmo e infinito tempo de antes de estarmos aqui. E desta vez, não há ninguém para fazer força e nos tirar de dentro desse escuro qualquer. J.M.N.

 

*Título dado pelo Angelo Cavalcante, mesmo sem um pedido meu.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Coisas que dançam entre a luz e lugar nenhum

Ao dormir esta noite que vem pedirei exagerados sonhos aos sóis de um planeta qualquer. Cosmologia principiante para esquecer que não estarás aqui. Tudo calmo e triste e azul boreal na cama da gente. Não era pra ser. Já entendi. Mas ainda assim é difícil saber do entredentes maldoso dos outros. Falando de tuas viagens, contando as certezas de tua felicidade atual. Te colocando de volta em mim como um negativo de foto. Um vitral errado.

Antes de chegar para o descanso, esse caminho todo que ainda tenho de fazer. Olhar aos marcos de quando sabíamos os dois que estávamos próximos de casa. A velha casa dormente com fantasmas a janela, a estatueta esquecida no cume de uma padaria que nem era tão boa assim. Sei lá, esses estrepes afiados que encontram os nervos mais sensíveis de quando andamos sós. Dói o caminho. Dói a moça a esperar seu par. Dói o centro do que eu nem tenho ainda.

Apenas isso que tenho dito. Um soldado esquecido. Desertor, quem sabe? Não há verdades que pronunciar, porque os dias se cumpriram sobre o medo de encontra-las. Deu musgo onde se esperava uma mentira. São lugares ermos como esses aqui dentro que eu possuo. Uma lágrima que nada faz senão danificar a minha visão noturna. Fazenda de nada. Bosque onde o cascalho e o húmus de tantas árvores não sentem mais o afundar dos passos de ninguém.

Quando eu chegar para derrotar o corpo e esperar as mariposas de agosto, estarei como tal te encontrei, mil anos atrás. Dobrado em mim. Esfarelado nestas falanges de letras que me escapam constantemente. O olho na janela que não se descuida jamais do dever de apresentar paisagens. Essa noite, mais um pouco, o brilho incrível dos teus olhos virá se esticando, como as luzes da rua inteira a entrar no breu da noite, meu olho some, sou tua luz. Me despeço de ti, porém retorno.

Mais uma vez terei esperanças de que o sono e suas vantagens trepane meus ossos até o esquecimento da terra me apanhar. Mais uma vez te pedirei para segurar minha mão enquanto eu rezo para esquecer de ti. J.M.N.

Para ler escutando…

Arrimo

Agora as coisas pendem desse teu gesto. Que não foi uma mera mensagem de intensidade tão sentida em mínima linha de palavras. Foi toda feita do imenso que te afortuna que impera nesses nossos dias de agora. Nossa era fabricada num beijo, aquele beijo de teor tão suicida que se nos chegou em hora tensa, desarrimada. Sou eu mesmo esse pedaço a que reclamas atenção. Esse posto dormente em teu continente sempre cheiro de vultos e acordeões. Canções para quem? E chega a hora, o justo momento de, em mim, nascer o mesmo. Desfio o novelo. Do começo ao fim esse medo de não dar conta. E vai chegando o meio do caminho, a linha diminui de volume, mas o rumo está ali. Permanece. Sou dessa forma tão concisa que me arrumaste. Não saio dos trilhos. Dou pequenos vexames por estar enamorado, arredio aos outros, dentro de teus abraços. Essa pequeníssima frase que me tornou profundo, eu mesmo oceânico como jamais me houvera – te agradeço. Mas só ao ponto de me tornar tua imensidade. Não mais distante que essa tua boca de resolver meus pecados todos. J.M.N.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Quietude

 

Dá gosto te sentir assim, apaziguada; como quem dormita no regaço de lembranças boas. Hei de te lembrar que essa paz foi invenção, e não dádiva. Coisa de embrulhar que fostes cerzindo com as linhas invisíveis dos meus silêncios. Na hora que não cheguei, primeiro veio a ira e depois, preguiçoso, o sentido. Agora tens uma riqueza contigo: uma narrativa para a tua dor. Agora sabes que viver só é possível assim, repartida.

Te olho como que refrescada pelo bocejo da noite, e às vezes penso que esse sossego mau assentado vai logo passar, pois assim é o seu proceder. Logo vem a lembrança desse domingo magro de entregas. Logo essa mansidão vira apenas mais um gesto do teu pensamento quando afrouxa. Mas sei que agora vais à cata daquela minha palavra afortunada que te fez a mais abrigada das mulheres. Lá, como quem chegou em olho d’água, encontrarás sobra de forças pra recomeçar o que te exauriu e preencheu. WDC

sábado, 22 de outubro de 2011

Memórias da chuva

 

Chuva é de ficar.

Suspender-se de obrigações,

De comprar o pão, a quarta de café.

Chuva de mãe chamar pra despiolhar o cabelão.

Passar o pente e contar histórias,

Tirar os bichinhos da cabeça e

Enche-la de desatinos -

O poeta e seus começos.

Chuva de sentir aquela tristeza delgada,

O olhar comprido

Pros irmãos breados de distâncias,

Pro pai vestindo seu silêncio mais verde.

Chuva que embarca uma moleza no coração da tarde.

A coragem única vem dos cupins que criaram asas,

Dos amigos em poças surgidos.

Chuva de doer macio,

Que até as horas se ajeitam no calorzinho do ponteiro,

Que até o coração se agasalha na saudade. WDC

terça-feira, 18 de outubro de 2011

20.000 Acessos no Palavras de Ontem

Caros Leitores,

Acabamos de atingir a marca de 20.000 acessos. Talvez, perto de outros blogs, este não seja um número tão expressivo, especialmente porque já estamos no ar a quase 4 anos.

Contudo, para a proposta do Palavras, temos certeza que é uma marca excelente, especialmente porque atraí pessoas como você que comentam, mandam e-mails e interagem de maneira especial com o espaço.

Queremos, pois, agradecer sua presença e reforçar o convite de vir mais vezes e divulgar o Palavras, esperando que, através da rede, a literatura e a cultura em geral, sejam cada vez mais acessíveis.

Sinceramente,

Palavras de Ontem

Ter e ser todas as coisas (ou “É apenas vida”)

Às vezes dá uma vontade de saltar do trem, correr contra a via estreita e reta que conduz a vida rumo ao fim. Negar que acabaremos um dia. Toda força do corpo empenhada numa corrida arriscada em razão de coisas que a própria razão desencoraja. As redondezas que sequer os breves lampejos de bom senso frequentam. Um agir apetecido e quente que ultrapassa as possibilidades de compreender, atinar, ouvir. Entrementes, os sentidos, de poros amplos, sugam para dentro da gente o mínimo neurotransmissor que venha de nosso objeto. Uma mulher, seu cheiro, seu centro, sua carne rubra a esperar sete dias por nossa volta. Um trabalho, a inveja de si mesmo, aspirações pela eternidade do que se fez e ficará mesmo depois da morte. Um livro, o derrame de lágrimas a cada palavra sentida e vencedora da esgrima com tantas outras, saberes vastos, intuição fremente. Um amor... Isso tudo de antes, comprimido como o núcleo fissurado de um átomo, cuja explosão elimina todas as coisas ao redor, não deixando rastro de si nem de outra coisa qualquer e ainda sim, um espetáculo de brilho, cor e depois silêncio total. J.M.N.

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segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Depois do fim das certezas

Por causa de Ilya Prigogini que me incomodou bastante

Se tens certezas me mate. Se as pode pegar com as mãos como faziam nossos avós, então aceito abaixar à cabeça. Não pretendo discutir as leis do universo, tomar-te por louca, pequena, sem noção do que é o amor e as coisas abruptas que ele nos causa. Peço-te apenas para me dares certezas. Quaisquer que sejam. Estruturas eternas, as últimas partículas ínfimas, um lençol que nos proteja integralmente daquele frio insidioso dos invernos da alma. Se tens isso em teus papéis, em tuas gavetas secretas, nos tomos das obras antigas que ainda consultas como as únicas verdades terrenas. Se não tiveres e contornares esse teu ímpeto por não admitir teu caos, vira a esquina, segue em frente, passa pela torre onde ocorreu o primeiro beijo, depois compre amêndoas no mercado central, daquelas que cheiram tanto que as usamos para perfumar as roupas durante o mofado outono daqui. Não precisa bater à porta. O jantar será servido assim que chegues e a sobremesa, assim que espalharmos as amêndoas sobre a torta. J.M.N.

Desmemoria III

Mostrou-me as armas. Estava pronto para matar. Apontou-lhe o rifle bem no meio dos olhos. A primeira vez apenas para testar. O homem com a cabeça quedada ao lado direito, estava preso ali havia dois dias, para não gastar alimento, dizia o sargento. Assim chegou o dia. Todos alinhados. Ele era o mais efusivo dos soldados do pelotão de tiro da 3ª brigada de infantaria. Passou bem próximo ao condenado e sussurrou-lhe algo no ouvido. O pânico tomara conta do sujeito. Prontos em linha ouviram a ordem. O major chefe do pelotão comandava o ato. Quando haviam preparado a mira, o soldado dez apontou o rifle em direção ao Major e atirou duas vezes. O pelotão não sabia o que fazer. Ninguém atirou no soldado dez e ele calmamente se dirigiu ao condenado, desamarrou-lhe as mãos e os pés e disse ao pelotão: nenhum homem merece isso, somos melhores do que esse major de merda. Ninguém jamais escreveu sobre o que ele fez numa clareira erma do interior do país em junho ou julho de 1973. J.M.N.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A história mais triste jamais contada

Esqueça os romances de época, a trilogia tebana ou os sonetos de Neruda em cujas linhas suspeitamos letra a letra não sabermos nada sobre o amor. Esqueça os personagens históricos em cujas vidas baseiam-se as parábolas sobre a ordem do amor e da expressão vocativa e potente sobre sentimentos nobres a uma outra pessoa. Esqueça o que aprendeu em análises pessoais, dentro ou fora do consultório, em casas suspeitas, em peitos ou braços de aluguel. Diga adeus aos rabiscos, aos cadernos da infância, às primeiras cartas de amor, escritas em papel escolhido e com um perfume que o tempo levou, mas que a memória ativa independente de estar lá. Risque dos mapas as rotas de fuga, as casas em que planejou morar junto com alguém. Passe a flertar com a transigente presença das pessoas modernas, ávidas por novidades diárias. Veja os tornozelos e pernas expostos, sucumbindo ao variado desejo de rua, de quem não poderia desejar liberto. Pense naquele verão em que tinha tudo nas mãos, mas os dias acabaram e a presença daquele ser amado à décima potência no mais curto segundo da vida. Esse é o ponto. Esse é o beco dentro do qual se revelam átomos a mais para nossa energia de ser. Um escaninho esquecido que de repente vem à lembrança trazendo à borla os melhores momentos de nossa alma. Quando comecei esquecer essas riquezas todas de além da realidade, do continente oculto do meu peito ardente, vi que tinha nas mãos a história mais triste jamais escrita. E ela era a minha. Por salvação, guardei escondidos, todos os papéis sobre o que vivi e todos os planos sobre o que viria a viver. Acho que preciso de um novo começo. J.M.N.

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Diário das Presenças I

Nome não se dá a esse tipo de pessoa. Quente, mesmo que longe; gigante, mesmo que dentro de um ícone digital. A essa pessoas que nos chamam, agradece-se. Para elas bytes de sonhos e a árdua tarefa de criar uma realidade para o corpo com que já sonhamos, antes mesmo de ouvir os dígitos erigindo seu nome em nossa tela. Estranha aventura essa de seguir caminhos virtuais. Em cuja paisagem não sabemos o que se ergue, em cujo tempo não sabemos se pensamos ou desistimos. Essa pessoa que me apareceu hoje, às 11:45 da manhã, enquanto meu ofício forçava esperas e relances com que estava ao redor, sumiu no mesmo pixel em que apareceu. Tenho seu nome, sua profissão, seu estado natal e mesmo assim, por meio dessa memória minha que se atrela a tudo, ela deve ter bem mais coisas minhas, as quais eu não sei e nem pretendo perguntar se são válidas. J.M.N.

Prece

Perdoem-me os anjos
Menos cuidados além
Graças às estradas
Me corpo calcula
Com alguma precisão
Quietude e tempestade

Perdoem-me os meus
Menos lágrimas agora
A dádiva encontrada:
Vida, aberta e feroz
Como nunca pensaram
Vocês e como nunca
Eu pensei também

Perdoe-me a morte
Que vicejou anos
A esperar minha entrega
Graças a quem veio
E foi, é que me nutro
Graças a quem ficou
É que vou adiante

J.M.N.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Cartas a ninguém (09.10.2011 – 02:38 a.m.)

Querida,

Faz muito tempo que não escrevo. As coisas andaram gaguejantes por aqui. Ora voz e esperança, ora um parto tão dolorido de coisas sentidas, obstinadamente escondidas em outros tempos, aflorando, vindo à vida e reabrindo velhas escaras. Tão pior é não ter nada dentro para sentir a existência presenteada.

Estava cá pensando, que foi por isso que eu resolvi escrever, se poderias me enviar as nossas últimas fotografias. Toda a semelhança de felicidade que um dia conheci está naquelas imagens. Não as ordene que coisas como aquelas fazem mais sentido embaralhadas, misturadas ao ponto de não sabermos o que é um ou o outro, como nossas pernas juradas antigamente.

Manda um pouco daquele mel de abelhas que socorre minha garganta quando o grito vem. Umas maçãs bem vermelhas também servem. Meu propósito é atar-te mais um bocadinho a minha história. Por isso, talvez, crie esses diálogos tão solitários, como notícias de um tempo muito raro que acabou e em seu último suspiro largou-me na pele um monte de palavras desgarradas que são essas que te escrevo sem nunca enviar.

Há tanta coisa que eu conheci sobre as quais queria te contar. E tem esse chaveiro com o teu nome que trouxe de minha última viagem de esquecimento pelo mundo. Preso em minhas chaves ele impede que eu as perca como era tão comum, lembra? E me diz silencioso que entras em casa comigo, todas as vezes que abro a porta e como num revés da realidade, por um breve segundo, ouço tua voz lá no fundo da casa dizendo: estou aqui atrás, amor.

Li em algum canto que essa fisgada que me altera os passos e alteia meu desespero até que eu queira apenas um pouco de água e bolachas dormidas, assemelha-se às cócegas infundadas nos membros amputados, que como naquela canção antiga, deve ser extinta antes que a mortalha do amor no envolva para sempre.

Quanto a isso não tenho medo, pois mais do que um fisgo, mais do que um arranhar de saudade e impossível, escrever essas linhas me dá alento. Traz teu nome para bem próximo do possível, e chego até a rir descontrolado quando meu correio solitário perde teu endereço.

Sempre teu,

J.Mattos

Parede branca

A tarde se foi, meus pés balançam no ar poeirento dessa terra. Chuto o pó dos andares outros e das carroças que passaram no fim da manhã. Uma sede por aquele leite muito espumoso que retiramos de manhã cedo. Aquele ritual de tocar no animal e retirar-lhe o sumo, quase um atentado ao pudor. Ou quem sabe, apenas uma simplicidade das redondezas. Minha cabeça urbana não presta.

Levanto em seguida. À minha frente uma parede sem nenhum gosto por cores. Nenhum quadro, penduricalhos. Móvel nenhum impede seus metros quadrados de exibirem neutros. A pena gigante de uma ave presa. Meus pés no chão lamentam o existir de limites. Acontece uma vontade sobre-humana de atravessar a alvenaria, como o espalho do conto de fadas. Apenas porque lá não me reflito. J.M.N.

Flores em Dezembro

Antes que todos perguntem por que você foi embora, assumirei tudo como uma parte incontrolável dos meus sintomas. Aquilo que ninguém mais explicaria, entrementes. As minúcias com as quais tivemos que lidar por tanto tempo. Filigranas incontestes daquilo que não estava nem em mim, nem em você.

Não nos perdemos por outros. Não seguimos andando por força. Aqui não poderemos dizer que fomos infelizes ou, inocentes que éramos, deixamos tudo se converter em uma ilusão funesta, cujo maior feito foi deixar uma felicidade impronunciável por tantos anos.

Aqui no fim de todas as coisas eu agradeço por estar junto. Definido folha a folha nosso testamento, definindo cada rastro de lembrança, cada feição de angustia ou gosto de boca que se nos assaltou durante esses anos todos.

Haverá uma ou duas coisas que não diremos a ninguém. Cujo segredo resguardará também nossas maiores fragilidades. Como não termos casado logo no início, como não termos trazido nas malas, aquelas flores colhidas em um dezembro, há muitos anos. J.M.N.

Trilha sonora…

Sobre os sonhos diurnos

Antecipando euforias, ela chega, em branca seda e festim
Alardeando não ser de ninguém, como tampouco é alguém
Um ente, um ser de livros que pulou à realidade
O café ainda dormia em minha boca
Mas seu cheiro despertou os flavores da língua
E úmido, acre, estiloso como nada antes misturado, sorveu-me
E dentro dele um dos olhos adormeceu o outro encontrou
Fantasmas e redenções, tal como os marujos perdidos diriam
Entra e sai sem sequer esquecer um sorriso
Toda dentro de uma medida arbitrária e loquaz
Suficientemente áspera para evitar aproximações
Especialmente dúbia para incitar irresponsabilidades
Bem atrás dela soltei um grito
Quando ela virou, apontei a um carro que vinha em sua direção
Foi só o tempo de salvá-la e deixa-la saber meu nome
Porque, afinal, nada mais importava, senão mantê-la ali

J.M.N.

domingo, 9 de outubro de 2011

Perguntas de Ontem

Que venenos misturastes na minha água? Que feitiçaria engendrastes na escuridão da tua oficina? Depois de ti, estou apartada de mim, dividida ao meio entre o que quero e o que descobristes nas dobras do meu silêncio e da minha raiva. Quantas vezes ainda vou me reconhecer mais nessa figura trágica e desejada com a qual me sondas, que na personagem austera e enfastiada que construí recortando as revistas dos meus pais? Quanto tempo te esperarei banhada e perfumada imaginando que aquele calor te precede? Mesmo sabendo que não virás sem um telefonema meu, e outro teu em seguida. Mesmo sabendo que talvez já não saibas o caminho de retornar, e que é bem provável que já estejas buscando tuas ferramentas pra criar uns desvios no teu amor. Eu te disse que não mais queria ser tua, mas não sendo, parece que deixo de ser eu.WDC

Pergunta de ontem: E quando o que quero não me faz feliz?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Preguiça

Vou chegando à vida. Dou os passos que me querem dar os deuses (quem sabe, afinal, os que são possíveis). Chego com essa mania poética a pender-me das vergonhas, minhas partes antiéticas apresentadas facilmente a quem desse a atenção devida. Jamais me voltei contra mim mesmo. Mas perguntei. Perguntei o que perguntam os preguiçosos ao espelho dos dias, à verdade do ídolo que surge sem que queiramos. A resposta é igualmente preguiçosa, burlesca, cabe apenas num tragar de vinho e na espera pela coroação do reino profundo do que não somos. A resposta tem algo a ver com a infidelidade compulsiva, a mais laça das escravas da vontade. J.M.N.

Vaidade

Apresento-o ainda suspenso por ter lhe dado a meia vida que ele porta com altivez de infante. Mostra-se verde para os assuntos femininos, porém agudo em saber que eu falhei. Talvez essa suspeição me caiba quando às contas nossas ele exigir o ajuste final. Verei o que posso dizer sem atrair demais sua atenção para o imenso orgulho que sinto toda vez que ele me chama de pai e, imprevisto, acende aquela parte esquecida de todos os eus evocados em partes e triturados pela existência dia si, dia não. Esse perdão que guardo para mim quando ele vier e perguntar do que é feito, afinal, espero que seja suficiente. J.M.N.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Primitivo

“futurus vacuus unus est sequor ex posterus”

No que pensa minha alegria quando se distende ao vê-la? Consideraria não estar saindo de quem esteja pronto para sorrir demais ou voar demais, ainda? É o que pergunto. É o que resta perguntar quando tudo o que é de dentro toma a palavra e abre-se num brutal espetáculo de incontinência orgânica. Pelos nervos os sinais do estrago, a vibração incontrolável do que se devia destinar a um simples piscar de olhos, a um bocejo ou a uma leve palmada de espantar o frio tranquilo. Todas essas micro energias concentradas e avantajadas por nucléolos perdidos, por uma biologia que envida o gás total. Acontece que cansa. É de tarja preta esse suicídio civilizado e aceito que é viver, trabalhar, ter um provento, sair, divertir-se dentro de caixas ao som destrutivo de altifalantes potentes, consumir pelos olhos, tornar a viver, descer de edifícios e comer de garfo e faca todos os dias.

Queria caçar, ritualizar meus medos, pintar escaravelhos e dominar as histórias do vento. Dormir por sobre a santidade perpétua de uma pedra, num caminho qualquer. Esperar que o dia despenque das alturas e faça poças brilhantes no denso da noite. Queria esse retorno de que todos falam consternados aos grupos pequenos, às mínimas morais dos arredores de nossas casas, do batente da porta a servir de limite entre o infinito e a proteção dos outros. É como querer demais que eu quero essa ideia paleolítica de voltar a ser o que ninguém quer mais ser. Um Cervantes, um Sigmund ou uma Tarsila. Ou ir mais antes e ser um daqueles cujos nomes desconhecemos e que nas pedras deixaram seus traços, suas escrituras. Não quero o útero que esse é muito perto. Não quero gônadas, ácidos nucleicos, uniformidades. Quero aquele antes de tudo que numa sopa mágica que se explodiu em tudo visto e que, na mesma impressionante ação de colocar sobre o nada esse nosso tudo de agora, reservou, inconsequente, esses pequeníssimos espaços dentro da gente, onde quando enfiamos tudo que desejamos é porque tudo nos falta e impõe reservas, ou, injustamente, tornou-se grande demais para ser levado numa lágrima. J.M.N.

Soberba

Eis o que tenho para te contar: nasci no meio da noite mais longa do mundo. Sendo assim, meu passado é ligado às incontáveis gratas na estrutura do universo. Por vezes escapo por entre essas frestas e quando isso se dá, minhas feições tendem a endurecer e temo que o principal alvo de minha angústia seja a tua existência, complicada pela ambiguidade destinada a seres ligados pela genética de gerações. Tu o pai que ainda me deve, eu o filho que nunca emprestou as contas presenteadas. Assim, assim, o tempo vai abocanhando as minhas certezas sobre o que se abriu entre nós. Espero um dia acreditar que fui salvo por esta insanidade que é esperar o que jamais se deve esperar. J.M.N.

Ira

O leão tomba. Fera destruída com minhas próprias mãos. Tento inutilmente fazê-lo acordar, minha coisa humana cede ao perceber que a vida dele se esvaiu sob a pressão de minha lâmina e o choro convertido em sentimento de abandono surge farto, cristalino e salgado como a água das lagoas isoladas do extremo norte. O leão não gritou por sua vida e no seu silêncio morri também, com a fera que nos chega a todos, certa hora da vida, a exigir mais espaço que razão, mais império que amizade, mais desfrute que o amor liquefeito das primeiras manhãs de primavera. Quando a solução de todo mal se ancorava na tua tez enluarada portando-se dignamente a espera do que fosse surgir de nós. J.M.N.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Avareza

Sim, comprei aqueles presentes todos em sinal de apreço e inspiração para ser teu. As sílabas todas de meu único livro te soletram, trazem ao mundo a riqueza inconclusa de tuas linhas femininas e da tua infantil caridade familiar. Comprei-te todos os melhores mimos do reino, com o ouro pilhado de outros senhores. Bravo, inculto eu fui dominado pela razão dos guinéus e a foice que brandi sobre meus inimigos era a derradeira promessa de guardar tudo para mim. Até que te foste. Numa manhã em que a vida parecia detestar ter sido colocada em minhas mãos é que dei por mim. Tinha todo o ouro ao meu redor e coisa nenhuma para te oferecer que tivesse o real valor do que um dia me foi por dentro ao receber um beijo teu. J.M.N.

Nenhum de nós chorou

Enquanto o corpo era enterrado, nenhum de nós chorou. Passivos vendo a casa desmoronar, olhamos fundo nos olhos de quem estava chorando. Nenhum de nós acompanhou.

A esperança morreu à entrada do inverno. Nenhum de nós ousou riscar no calendário aqueles dias. Deveriam ser lembrados pelos anos. A sorte e a alegria sumiram por dez semanas. Ninguém chorou suas ausências.

Na manhã em que o dia nasceu morrendo, chumbo de nuvens devastadoras, não olhamos para o céu. Comedidos e impávidos, certos de que o fardo era devido, cantamos. Cantamos o labor dos campos em que nossas mãos perdiam a feição de mãos e nossa pele entrava de vez na galeria dos piores tecidos celestes.

Ninguém chorou quando a pilha de anos confessou-se insuficiente para os pecados da gente. Não se usou lenços, enxugou-se pedaços de vida caídas líquidas sobre o rosto. Ninguém explicou que era preciso ceder vez por outra, agraciar-se com a vitória do desespero, com o suor da alma, que é o choro. Nenhum grito ou rugido.

Enquanto as memórias nos chegavam aos tufos, lufadas num frio muito estranho, agredindo a realidade de tão duras e desqualificadas que eram nenhum de nós chorou. E ainda assim, tínhamos a impressão de que havia alguma coisa que precisava sair e não nos deixaria quietos enquanto escrevêssemos romances, documentos históricos ou planos de guerra. J.M.N.

Para ler escutando...

Gula

Idem

Teu pé caiu-me na boca, sensual e íntimo dos caminhos que ninguém sugere. Essa dura romã que coube em minha mão, amanheceu morta sem o beijo da boca, sem a marca dos dentes. Onde foi aparar tua casaca, a pele dourada que segredava as leveduras de se beber contente? Onde está estacionada a submissão do teu olhar ao me ver retornar da guerra? Ainda sobre teu pé: lambo, cheiro, desuso conspícuo e pilhérico como um louco a gorjear a liberdade de tê-la para suprir minha fome de mundo, minha sede de espaço e sanar meu frio de passado estéril e curto demais para a pessoa acumulada que eu sou. J.M.N.

Luxúria

Minha sanha ao Círio de Nazaré,
meu adeus à comunhão e porque acredito piamente

Perder-se na inquietante lisura morena de sua pele. Potente e bravo, feito um bávaro temido a conquistar territórios, expelindo do próprio corpo a sorte de sentir-se do avesso por estar à presença da maior conquista, fluidos e cheiros agredindo o ambiente. O que me falta é a falta em si, apropriada de tudo ao redor, com ossos muito brancos, passados no tempo. Imigrante da casa de pais-metade, possuidor de um viço insubmersível, a esfregar-se no platô do mundo esperando ser aceito, menos temido, engolido por um que seja mais potente que si mesmo. A boca flamejante e insaciável, gritando obeliscos e ofertas ora impúberes, ora velhacas, como copular-se íntimo e intocável enquanto aos seus pés o outro se pergunta o que foi feito de sua razão. J.M.N.

Sem pudor e sem pecado V

Vem encher minha barriga. Torce para ser um menino. Não terá o nome de ninguém conhecido. Vai ter as minhas pernas, porém será todo iguala ti por dentro. Quieto, moldado pela família e insustentável pela euforia da vida. Será um ser amável, na maior parte do tempo. Aprazível companhia desde que não incitado aos contraditos. Faz essa vida nascer em mim. Minhas pernas abertas te chamam. Sopra no meu ventre a voz da dúvida sobre tudo, o questionar inexpugnável feito sob encomenda para a díade razão/emoção, em cuja arquitetura reside a tua ação e em cujo fazer nasce o teu afeto. Este cerne de coisa impossível que vem com teu sêmen, com tuas brincadeiras de alcova, no coito devastador em que expiras no ar do ambiente a fúria que te montou gente e te deu a alternativa de ser humano às vezes sim, às vezes não. J.M.N.