segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Incontáveis

Todas as medidas foram tomadas, todas as curvas avaliadas e, sem destino, concluímos que era chegada a hora de dar adeus. Pouco a pouco fui descendo às praças para cheirar esse ar impregnado de vida que exalam os lugares abertos, a coisa pública em sua essência de anonimato e felicidade frágil. A doutrina ainda mandava guardar retiro, porém esse ativismo imponderável do meu sistema, ordenava seguir sem olhar ao furo da bala, à ferida ainda viva. Senti retirado um pedaço. Mais lento fui recuperando a sombra de antes dela. Poucos querem seguir pessoas que não têm sombra. Assim foi. Tudo aquilo ainda deixara umas palavras na boca e eu as cuspi. Sondando felicidades na vizinhança, um arco perfeito como sorriso. Fui me vendendo aos poucos. Essa inconfundível barganha de depois do amor. Incontáveis pelejas pelo melhor do beijo ou da respiração partida pela entrega em urros. Onde tesouros oferecidos viram tolices e as pequenas desigualdades de humor e gênero passam a ocupar muitos armários dentro da gente. J.M.N.

História de um Senhor

risto da Silva sambava como nenhum dos outros, por isso foi escolhido pela escola e pela melhor mulata dessa existência. O estandarte banhado em ouro e azul chegava ficar maior que o céu, tamanha importância dava Cristo ao balançar da bandeira. Casou-se pobre e continuou assim. A mulher apresentando a beleza em todo canto não o abalava. Era ungido pela fé na instituição do casamento e outras coisas mais. O pai de santo do morro, disse-lhe que havia fechado o caminho da esposa para quem quer que fosse. Cristo passou a compositor. A escola ganhou um prêmio merecido e Cristo cantou dois dias inteiros pela vitória. A cada intervalo, quase pregando, dizia que era para todos sambres como um. E a turma se deixava na voz do Cristo. Baita edição de felicidade conjunta aqueles dias. Cristo foi pai de dois. Garnizé do terreiro quando andava com as crias pela cidade. Pendurado no corpo a guia em vermelho e branco que o seu guardião ofereceu. Andava de branco, sempre com o cabelo rente, igual um militar. Quando estourou a confusão no morro o Cristo chegava com seus dois filhos. Deixou-os na casa de Iolanda e partiu para falar com seus amigos meliantes. Foi or um triz que não morreu naquele mesmo dia. Tinha algum respeito. E subiu até sua casa apenas para achar a esposa deitada morta sobre o sangue mais vermelho que jamais vira. Mas teve lágrima. Orou repetindo eu que não sei o que faço, me deixo a ti. E entregou a mulher para ser preparada ao enterro. O Cristo morreu já bem velhinho. Cabeça branca. Cantando samba. Nenhum dia deixou de contar que havia sido escolhido por um anjo. O estandarte foi com o caixão e em cima da lápide onde se escrevera: ao rei dos reis do morro, um pequeno cálice virgem de vidro barato, cheio da aguardente esperada pelos patrões de sua vida aqui na Terra e nos outros lugares em que agora habita. J.M.N.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O Beco (ou Micro romance XII)

Estava muito cansado era o que dizia Ortiz. Antes daquilo se tornar verdade ele era incansável. Todas as pernas das mulheres do porto conheciam suas mãos, seu toque, tudo seu. Talvez por isso tenha se tornado uma espécie de celebridade entre meliantes e entregues, entre os padres que desertavam e as putas feitas de mar e saudade daquele lugar. Tudo era passado entre os humanos das redondezas. E quando tudo estava duro demais para suportar, escolhiam-se entre as memórias ternas ou brutas para suportarem apenas mais uma noite suja daquelas. O velho Ortiz era o mais presente. O mais requisitado companheiro de solidão que se podia ter. E fazia tão bem às vezes de silêncio que era capaz de ser chamado por todos os nomes de amores passados, de primeiras paixões que ganhou o apelido de Beco, para onde se entrava uma vez e seguia-se em frente até a luz do outro lado. Era apenas de passagem que o usavam. No dia que me contou sua história, finalizou os relatos sucessivos e intricados demonstrando, francamente, saudade de todos aqueles personagens, dentre os quais não se podia definir a partir de seus contos, quantos deles haviam realmente existido e quantos eram ficções inventadas para não dar conta de que vivia tão só quanto um único poste em beco esquecido. Muitos deles mortos pelas coisas da boemia, pelos assaltos constantes ou pelas doenças frequentes que avassalavam a liberdade de seus domínios. E em suas palavras e gestos, aquelas mortes pesavam de maneira triste, porém, estranhamente, calma e tranquilizante. O velho Valdo Ortiz, sentado numa daquelas cadeiras de embalo do século retrasado me disse olhando nos olhos: jamais fique só e não deixe ninguém o alimentar de isolamento. De suas palavras o que mais lembro é disso. Esse elementar conselho que eu costumava não atender. J.M.N.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Palavras sobre pedras (ou “Insulto à normalidade”)

Acordo com cavalos no meio da noite. O estrondo de uma tropa imaginária que me avassala. Esse exagero de despertar que me consome imensamente. Depois de tantos anos ainda dói que não ligues. Estou pronto, sabia? Vejo bem à noite e sempre desvio de lebres e cães perdidos na estrada. Como ensinaste. Onde moro as janelas dão direto na rua, abro-as quando quero o concreto e a fuligem para desfazer meu transe. A saúde reclama, mas e daí? As idas à farmácia me acalmam e fornecem encontros esporádicos com Suzete. Às vezes me basta a sensação de surpresa antes de vê-la, mesmo quando não está. Chove na cidade, sobre cada uma das coisas ao redor existe a água abundante daqui. Uma lavagem. Ouço além, uma sugestão de que talvez eu deva sentir sozinho este outro fim que costuro a pontos duplos, cerzindo a inconstância e a poesia numa mesma colcha de cama. Hoje, afinal, dormirei quente sob a espécie de surto dosado que me concedem os desejos de agora. O oceano me canta distante e pleno. Sem revolta ou escuridão, apenas um leito líquido que me espera alhures. Eu indo a seu encontro, com as ferramentas de construir possibilidades em ambas as mãos. Olha, desculpe-me por não acreditar mais ter sido aquela a única saída. J.M.N.

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Auspício vago

Sou grato por tuas artes, teus serpenteios
Sou grato como o último devedor do império
Cuja alforria em caneta de ouro se deu
E apesar de tanto caminho surgido de repente
Sou grato pela escolha de ser um pouco mais
                                                                 preso
Digo: atado a um empenho de conhecer-te
Sou desse ponto da humanidade em que,
Na mesma medida, no mesmo instante
Surgiram a liberdade e a escravidão
                                         essa impensável
Querida dentro de nossas subvenções
Sou grato pela faceta clara da Lua
Pela insinuação de que há um breu no mundo
Um eu eterno, um nós para quando der
Sou grato pela isenção de tuas lábias
Que de agora em diante dizem sabedorias
Que desde que perdeste o juízo
Não conta mais o quanto é impossível te ter

J.M.N.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

O que será?

Para o Wagner e nossas ladainhas de identidade e paixões letais

Tem algo que sempre quis te perguntar. Desde o tempo em que eras meu herói, meu espelho, a melhor coisa que eu podia me tornar. Desde esse remoto tempo em que te adorava eu quero te perguntar uma coisa. Mas depois vieram as lições de catecismo e aprendi que uns lavam as mãos, outros crucificam, outros ainda oferecem a face em troca de um perdão de si, cuja tão imensa impossibilidade prefere gerar o silêncio, em vez de oferecer a força bruta novamente. Não quem bate uma vez e vê o alvo ofertado já se depôs, não tem mais argumento. E o perdão? Bem esse talvez nunca venha. Mas depois disso eu continuei a te admirar. Inseguro entre santidade e vida, entre pecados e maçãs, as letras do conhecimento se atirando uma a uma dentro de mim. Eu me recriava. Regozijado e duro como os poucos expulsos puderam ser. Os que resistiram até a punição do pai. Depois vei o corpo de fato. A mulher que me descobriu e abriu um precedente perigoso para minha humanidade. Meu bicho inconformado solto e farejando saias curtas e mocinhas solitárias, cujas belezas ninguém havia descoberto. Veio nisso, inclusive, o vapor barato, o sal dos loucos, a terebintina. Fazendo jus ao impossível de desvencilhar-me, fui ao fundo, naufraguei. Como todo bom capitão. Um estúpido. O herói que ficou à história por não ter conseguido correr. Entretanto, quando me mantive, voltei a pensar em ti como um rumo, como um exemplo. Mas ai vieram os pensadores e suas vísceras, os alcaloides e as madrugadas oitocentistas de poesia, histeria e barlaventos. Veio arroubando o ultimo fio de inocência, a textura da pele, a acidez das tripas, o cheiro do próprio vômito depois da festa. Veio em mim uma orquestra de acordes desarrumados, cuja única função era chamar a atenção para o nada que compunham. Foi quando pensei em ti mais forte. Já te desmanchavas em minhas próprias linhas e catástrofes. Teu sangue ordinário em meu chuveiro, como vindo de mim, mas sendo limpo ao invés. Ainda assim, sobrou esse misto de fome e raiva. Essa alegria peculiar de te ver indo todos os dias. Não para a morte que não é isso o que te desejo. Simplesmente indo morar em tua própria memória, recuperando aos borbotões tua veia nova, tua loucura antiga. Fazendo teu, enquanto eu ainda pergunto quem serei. J.M.N.

Anonimato?

Tenho a sobra do teu toque depois que te foste, ainda núbia sobre minha mão. E a impressão de que nada soará tão lícito quanto teu adeus depois que tudo estiver assente em minha memória. Mas por enquanto, o excesso desta ausência é a pior data, o pior conteúdo. Volume transbordante de algum tipo de perfume que não se apaga, que se ata a toda superfície dos meus dias. Conflagra o pedido mais íntimo que guardava para quem sabe. Eu podia chamar teu nome e recompor a fotografia, reestruturar a imagem de outros tempos em que mais de mim era gerado ao teu sorriso. Poderia incrementar a poesia com muitíssimos substantivos e anacolutos. A elipse do verbo. Eu que não tenho mais ação nenhuma. Mas paro. Sempre próximo à facilidade do choro ou da entrega sem rompantes eu estanco. Meu freio natural a cravar meus pés antes do abismo. É quando sinto meu mais vivo instante acontecendo, meu mais humano ato imperando. Antes da entrega, há sempre um segundo para se eleger a própria imagem. J.M.N.

Irremediável

Quando ela se foi: tudo nulo, acabado. Era quase uma da tarde e a noite já me exigia. Foi bem dentro do apelo que ela se foi. No meio do grito. Repleta de novas vontades, de novos caminhos. Ela se foi enquanto eu dominava minha carne trêmula para não ir dismilingüir-se em barrancos próximos, em areais, no meio das coxas de Cândida Rosa, a demais. Ela cumpriu sua promessa de não me esperar, de não ter tempo para o que eu ainda não encontrara em mim, as novidades da idade e da vida adulta, as probabilidades do sentimento exagerado de acabar com as forças antes que o amor, fiel e irretocável, pousasse. Foi no meio tempo entre minha escolha e a vitória. Entre o prato principal e a sobremesa. O gorjeio dos pardais de bem perto como agulhas finas a acabar com meu equilíbrio. Quando ela se foi seguindo sem pressa alguma por saber que eu jamais a seguiria de impossível, eu fiquei com a incontinência infantil mais uma vez. Molhei-me de mim mesmo e meus medos derramados até as minhas meias deixaram claro que a minha vergonha era muito maior do que uma vida a dois. E inaugurou-se esse amor tamanho deixado a ninguém, criado conforme encontro bocas e amanheceres, segundo a paixão abrangente de um ou mais quilotons. J.M.N.

Há pouco tempo

É nascer e continuar, querida. Nada mais. Nenhum desvio que, senão, a sorte vira qualquer outra coisa. Um legado? Aquele sentar vazio num dia de semana chato e depois a convicção de que as coisas seriam bem melhores para ambos. O que não foi dito, por nenhuma das partes, é que a vida, às vezes, pesa mais do que a comida do almoço e a retidão pretendida acaba sendo uma sequencia brilhante de curvas e escapes. O que restou não foi nada, porque ainda nem sei se as coisas passaram. Estou tentando. Cobraste caro tua entrada na minha vida e eu ainda avalio o risco desse negócio. Sim, querida, um negócio apenas: amor gratuito é algo que só as pessoas do século passado tiveram. Estamos nos anos dez, depois de tudo. Aqui, amor e charme se confundem. Na internet um punhado de perfis atraentes e um bando de pessoas infelizes. Isso continua o mesmo. Mas dizíamos... Ah! Tudo se resume em nascer e continuar. A primeira parte já o fizemos os dois, resta saber como faremos para realizar o que restou. J.M.N.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Perguntas de Ontem

“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.” (Hannah Arendt)

Pergunta de Ontem: que tipo de história contarás sobre a tua dor?

Faz silêncio, mas eu crio

Faz silêncio, mas eu crio. Crio como nas comiseradas noites em que te mantive. Surtada, doente ao pé de nossa entrega, ardendo em febre a dizer que jamais sairia dali. Nossa estátua promíscua, nosso hediondo gárgula de pedra. Teu afazer longínquo de um choro mentiroso e castanho, agora apenas altera o risco do desenho muito negro que inicio. Não dedico minhas obras a ti. Que era enquanto isso se dava que eu me esvaziava e diminuía. Arqueado sobre meu próprio passado a procurar entender o que não fazia sentido. E não fazia por não ser minha, tua desobediência, tua insistência em desusar-se e buscar noutros solos anuência à loucura. Pastavas como a dona do meu verde. Minha esperança desintegrando-se em tua boca. Até que me fui. Dia desses, te vi andando dona de outrem, toda confusa. Olhando de através da raiva minha figura na fila. Sim, vi teus olhos. Enxerguei tua procura e confirmei sentindo no teu rastro de olho aquela tua desconfiança que inquire o mais óbvio semblante. Senti que foi melhor manter-me duplo, entre trilhos. Houvesse teu singular vencido já me teria ido aos confins. Nem quero pensar, não faz mais sentido. Finalmente. J.M.N.

domingo, 14 de agosto de 2011

Herança

 
Pro meu pai, onde mais ele esteja
 
De todos os tipos de amor, me destes o mais remoto,
o que mais dependeu de minha imaginação pra existir.
Não me orientastes na feitura de um brinquedo do qual gostavas.
Mas de onde eu tirei esse jeito de estar ao lado da minha filha
[como se o mundo se resumisse a nós dois?  
Tua herança não se escreveu nos papéis e não a conheço,
mas levo comigo como uma bagagem incômoda,
sem a qual não há viagem,
e nem viajante.
WDC

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Los Pasos del Carbonero

para Antonio Machado

No quiero ser olvidado y lo que escucho de mis propios pensamientos es eso:
Estoy calado a la frente del teatro.
Silencioso ante la hora marcada.
No llegas.
Yo, el tolo del campo. El carbonero inmundo de costas e trajes negros, estoy calado.
El espectáculo avanza. Finco estupefacto con los colores y palabras. Con las bellas chicas en trajes descotados. Estoy a espera.
Trago en el zurrón la plata que me has pedido. Todo dinero del mes e del siguiente.
Las luces me invaden de nuevo. Yo soy el niño sereno de edad indefinida, sentado abajo del árbol con los pasaros a hacerme de morada.
Siempre fue tranquilo con la naturaleza.
Estoy aún con esperanzas de verte y tocarte en aquel banco a mi lado.
El segundo acto es mejor.
Lloro cuando el cantor rubio queda muerto con un golpe de espada. Nunca había pensado en llegar hasta el teatro solo. Fue tu idea.
Yo estuve a tu disponibilidad, por diez años, quizás más.
El fin de espectáculo todo se crispó en un coro de felicidad. Estuvieran todos sufriendo, como yo. Doscientas, trescientas personas. Desconocidos a llorar por una historia de amor llena di tragedia y luces fabricadas. Tu non apareciste.
Después el frío. Por tres horas más. Todo el pueblo sé fue.
Soy un carbonero sucio que se enamoro tiempo demás por ti.
El teatro ahora, es mí casa de escocimiento, pero unas veces cuando las cortinas quedan, me percibo mirando al lado, esperando que vengas para caminarnos juntos pela calle fría, contando lo que más apreciamos del espectáculo y o que no.

Granada, Noviembre de 2005.

Solo

Dormindo bem, caminhando, tendo a saúde que nunca tive e findo. Desabrigado das coisas que mais celebram as verdades sobre o que sou. A solidão acrescendo décadas a cada dezembro. Entra ano, sai ano, as novidades são exatamente as mesmas. Uma tristeza. Quando calas hoje é por noção do que não dirás? Ou é por desistência? Ainda cheira bem essa memória. Um dia, quem sabe virá feito chorume. Até lá, saudarei todas as vezes que vier a mim a confusão de saudar-te e te querer morta no mesmo instante. Dentro da minha boca que liquefez nossa virtude, preparo mais um canto. Dessa vez o que cantar terá estrofes repetidas, notas com as quais se deve ter cuidado, como em Brhams, como em desesperos diários, como o consumo destruidor de quem sabe a substâncias proibidas. Desta vez seremos eu e eu mesmo a confrontar minorias existenciais e morais duvidosas. Se quiseres saber como acaba, prova meu equívoco. Se não, muito obrigado pelo que se foi. E adeus. J.M.N.

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terça-feira, 9 de agosto de 2011

Po(e)magem #4

Sobre foto tirada no Bar-teatro Esquina Gardel
Buenos Aires, 03 de abril de 2011
J.Mattos

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A felicidade é obvia demais, fácil demais
Mas a tragédia, essa não simplifica
Devassa dentre as coisas singelas e perenes
Acontece entre estarmos e a vontade
De chegar até onde não poderíamos
Segundo pais, irmãos, beatos
- as lições que sempre nos dizem -
Chegar à entrega desentendidos e arremessados
Como homônimos da cena trágica
Som e balas, corpos e sentidos

J.M.N.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Graças ao fogo

Para Mario Benedetti

Que alusões incríveis minhas vísceras fazem agora. Tudo rumando entre a dor e a lembrança. Desde que eu me entendo sinto assim a memória pousando novamente, como uma dor que vem de barco, remo a remo ferindo a água e chegando bem devagar. Neste fim de percurso que me encontro, arranho as linhas do que fui. Em poemas, ensaios, aforisma e todas essas dileções da palavra se me vêm por cima da carne aberta, em espreita tentando sair de mim. Ao que recorro intimamente ao perdão antecipado. Bem quando o pensar empaca naqueles anos. Ora adiante, ora atrás de ainda saber o que se passou. Apenas mais uma pensa quente que me toma de repente. Um calor que não há como explicar. Tampouco a tarde em eu sol debulhado pode com aquele quente que me vem anunciar indevidos, impossíveis e retomadas. É tão vivo o que escuto de meus meios agora. Esse tilintar de cristais reconhecidos. E bem no fim da vida como a meu corpo pensando em ficar, peço o descanso. Não sem antes agradecê-la por tudo, por todos os horizontes que plantou em mim e não teve tempo de visitar ao meu lado. J.M.N.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Coisas com as quais sonhar

Agora há muitas coisas com as quais sonhar, porém meu pequeno sucesso em manter-me presente, atento a tudo o que me dizem os viventes, está impedindo que as coisas me venham sem uma censura prévia. Ontem, sonhando em ser um soldado, acabei pisando numa mina terrestre. Bum! Tudo acabado. Dias antes fora um vadio charmoso pelos bulevares de Hollywood. Depois um astro. Depois um pai descobrindo alegre a rendição à doutrina, o filho posto de lado, nascendo para a civilização como um homem de bons modos e amor nenhum. A heroína acabou com o despertar sortudo de imaginar um roteiro aprovado pelos grandes diretores. Uma mulher dentro da veia. Um ultraje. Essa imediata recrudescência de meus piores medos. Regresso do pacto físico feito com a parentália. Esforçar-se para morrer sem ser visto. Goethe com um ou dois pingos de rum e tequila barata e o diabo a perguntar: haverá esperança, caro José? Faltou-me culto, bonança. Uma voz de impressionar. Fico aqui de grosa em punho, talhando palavras e arremedos. Um dia ela para até me convencer de que sou bom demais no que faço. Um dia eles vêm e pegam minhas páginas para limpar suas lágrimas. Ora veja, meu bom vilão... Assim começo outro sonho e logo, logo me entreponho no vão de vigília que ainda resta para dizer: Sou esse sim. Em carne, ossos e orações. J.M.N.

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segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Transação

Escuta que é hora de novidade, eu vou embora. Vou para o arco dos dias, a eterna manhã, aurora boreal pertinho de minha saudade mais intensa. Vou para a porta de trás desse abandono, letra e melodia para cantar quem fomos. Vou para baixo de uma mesa nunca crescer, me dar limites que não puseram em mim Deus ou Orixás. Com todo respeito vou ser benquisto, melhor que todos os escolhidos juntos, serei mais eu. Mais dela, enfim. Com essa boca dizendo as pilhas de coisas boas e coisas más, especulando se a humanidade é apenas parte de cada um e eu não sou daqui. Esse que teme, que forja pactos e chora de saber estar fugindo ao encarar um matrimônio, ao partir para Jacarta sem conexões. Estou fora do jogo, sou um roubado, ausente permanente de afincos, de anos marcados em calendários com bichos ou flores ou outras imbecilidades. Vou deitar perto de Iara, roubar dos homens a razão, deixar-me existir dentro do que escrevo. Sou pleno de esteio pronome, adjuntos, artigos. Palavra nenhuma me desconhece. E vou dizer para todas as tuas estruturas, para as vilosidades em tuas células, sou permanente. Pegajoso. Húmus, se fores floresta, fertilizante se pasto e matilha se carne pura, o que não és. Chega de contar vantagem, chegar de assumir. Teu esconderijo é bem ao lado de minha banca. Vem e joga dados ou cartas ou outros azares. Vem que aqui a vida é apenas uma e nós dois cabemos nela. J.M.N.

Trilha sonora… o sensacional Sérgio Sampaio, interpretado por Jards Macalé

Tum Tum Tum

Para Sofia

Com meu coração ainda de menina e esses olhos grandes que me deram aqueles que vão te dar os teus, eu te vi. Não te entendi direito. Estavas tão quieto entre esse caos de sombras e vida interna que mais parecias uma daquelas minhas ideias absurdas com os quais, de vez enquanto, papai concorda. Quando te vi na tela, foi como se debruçar sobre os meus inícios. Foi ver o lugar de onde vim. Foi perscrutar esse éden pro qual, agora sei, todos nós desejamos voltar. Te invejo por estar aí, mas sei que teu lugar é aqui, neste cantinho que estou preparando com os braços flexionados imitando um ninho, e nesse peito que deve vir pra frente pra te apoiar melhor enquanto o meu coração vai encontrando as batidas do teu coração, esse tum tum tum que acabou de me fazer chorar na sala de espera do médico. WDC

Estudos em prosa e sentimentos V

Era tarde dentro da gente. A estrada dura dos dias a contar distâncias sobre nós. Abria a janela e apenas a mesma imagem retida de quando éramos senhores do mundo. Uma entranha doendo não sei onde, nem por quê. Acaba que a hora chegou. Antes nunca do que tarde, era para ser. Mas o contrário também tinha suas razões e aconteceu. Acima de tudo aquela virulência incontrolável que te fez seguir o destino que te pediram e me fez surgir com lanças para te machucar e vencer. Deixaria tudo em nome do que fomos um dia. Mas para isso, teríamos que voltar exatos para aqueles seres que olho de longe e se parecem cada vez menos conosco. Nesse impossível, apenas venço a tristeza do reconhecido dentro das linhas, das canções que ouvíamos e da cessão incansável da noite às minhas loucuras. Dentro desses dois mundos, posso ser quem nunca fui para ambos – eu e você – um criador, um escritor que entende perfeitamente o que é a solidão. J.M.N.

Sobre aquelas circunstâncias antigas

Não, já não era tempo de pedir. Não era momento de iniciar retornos. Quando a linha se completou e sua voz emergiu do pântano de meus temores mais sutis e repetidos, era hora apenas de escutar. Quem sabe um boa tarde. Quem sabe uma poesia. Não cabiam orações inteiras, apenas eu em sentido latu, com meus genes dominantes a direcionar a fala, a aquecer o instante de redescobrir meus minerais. Estava lento ainda nesse fosso de existência a que me designei. Enquanto ouvia sua voz preenchendo os milissegundos de minha percepção mais remota, adquiri novamente o sorriso que ela me causava e pude atestar que meus melhores momentos foram feitos dela. Nasci assim quase inexistindo, quase uma teoria muito hipotética de cuja certeza a ciência só se banhará num futuro distante. Não cabia nada senão a declaração de que morreria por ela e que não foi a razão que destinou-lhe minhas idiossincrasias e covardias, foi coração. Aberto e devassado como carne de açougue, vendo-se cada vez mais só e livre porquanto endividado e desafiado no cerne de sua entrega. O que nunca disse em tanto tempo de silêncio, vai destas linhas marcadamente apaixonadas, neste instante inesperadamente solitário em que descubro que eu devia ter morrido durante aquele telefonema. J.M.N.