segunda-feira, 25 de julho de 2011

Dove è Chiara #4

Quando tanta falta, aquela voz me fazia, ela própria me salvou das demências da saudade. Veio sensível, sensitiva e dosada, como toda voz amada deveria ser. Abrindo veredas e promessas de reencontro. Meu olho ainda não saiu daquele som, aquela voz me anuncia paraísos e me faz crer que nasci no lado certo da história. J.M.N.


Sobre pianos, distância e o beijo dela

Ela decidiu me iluminar. Não sei bem como aconteceu, mas ela está aqui a mil quilômetros de distância em minha eternidade esperançosa. Anda rápida a desbravar cidades perdidas. Ela recorre ao que sou de melhor, menos roubado de gente eu fico. Sou aquela carne significada que todos têm e morrem de medo de ver nascer. Crucificado como todos aqueles que, criados na culpa, penhoram-se nas mãos de um ser maior. Que seja esse ser seu piano denso, em bemóis e poemas a dedilhar o que desejo. Seja minha, é o que peço. Ela aceita. Com a envergadura de um pássaro extinto, que numa batida de asas se faz chegar aos confins da Terra. Ela longe, eu distante das criações que ensejamos juntos. Seu beijo que me faz sucumbir em apenas um ato, a chegar pelas estradas tormentosas de cá. Ela virá delirante e inda como uma musa. Limpa e saudável como se eu fosse um recém-nascido. E eu pensarei por nós um poema, uma canção e todas as sensações do cerne de nossos beijos. Eternamente enquanto ela me estender suas mãos. J.M.N.

Trilha sonora…

Aquele outro

Sua renuncia progressiva se estendeu a mim. A lavoura do que sinto padece, feito as roças de inhame mortas pela seca. Sertão e fome. Sou eu chegando, não mais em outro, não mais além de mim mesmo. Sintetizado em contos e furor e pastagens densas que só me servem a mim de proteína. Ando a comer meu juízo se é que me entendes. Passo além. Tenho outra coisa comigo que é essa desrazão poética que alucinada me dá as rotas. E disperso. Vou e volto como um instinto. Aqui e ali reconhecido e rechaçado, sou um devoto de minha carne, que para muitos parece um ferro quando me cospem, quando me dizem que sou demais, esperando corroer devagar o metal em mim. Minhas infrações já foram todas descobertas e não foram punidas como eu esperava, não. Serviram para monopolizar o bem. A bem dizer foram as lides da liberdade que se seguiu. Todos rogam que eu não faça mais nenhum movimento. Que não saia de mim nenhum distúrbio enquanto estiverem por perto. Finalmente, seu medo não é de mim, mas do que aguentei. Do que me jogaram pelas janelas enquanto eu passava preso, algemado. Ao ver que sai daquilo sem ser de suas faltas o defunto, eles entenderam. Eu não sou eu, nem tampouco deles. Não sou nenhum. Sou um outro que lhes embrulha a vida. O outro apenas que continua aqui, a gritar passagem, a confessar e pagar pelos que nada fizeram além de viver sorrindo. J.M.N.

Quando a palavra busca o cuidado

Quando a palavra busca o cuidado não se diz morra, mas antes parta além do que sou. É quando se está abastecido para a jornada que ela silencia, trazendo constância a todo silêncio que tanto diz em não dizer. Quando a apalavra está mansa na corda da boca é que ela prenuncia que não haverá vaidade em entregar-se ou ser deglutida pela boca amada, ou conquistada, ou sorvida. É quando se acaba a obra de estar vagando sem o que dizer. Impede-se de vãos desleixos, dislexias, incorreções. A palavra quando busca cuidado ama-se. Faz mais por si do que pelo objeto de quem a diz, de quem proclama mesmo. Ela sangra quando capturada em erro, deslizante de entrega em vão. A palavra torturada é tão frágil e diminuta que chega todos se contraem nela. Pode-se arrancar sua língua, sua sintaxe, mas ela dura em ideal de dito, não se apresenta. Nos porões do mau feito ela se extinguirá digna. Quando a palavra busca o cuidado é que já faz questão de ser dita com prova, paixão e quem diria, razão de ser. J.M.N.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

A espera da água

Ei, anda meu corpo conforme
Deu a pedra sua estrutura ao mar
Duro, mas ciente de haver cedência
Num futuro não distante
Minha forma será passado
A água virá para tomar-me
Serei menos que um bocado
Não haverá sede
E quando esse dia chegar
De tanto bater-me nas costas
Água me abraçará
Que não sendo carrasco
Me embrulhará macia
Lambendo meu engenho
Até chegar bem dentro de mim

J.M.N.

terça-feira, 19 de julho de 2011

Louvar e cuspir

Por tudo aquilo, obrigado. Pela ruptura de tendões, pela dor tresloucada na panturrilha estourada depois da corrida, graças. Acontece que eu não quero prestar, ponto. Acontece que se fosse outro não me amarias assim de ungir-se do que sujamos tudo por ai, oração completa. Essa doidice atestada, medicada e fremente não queria eu por outra fortuna que não teus braços esperando, sempre prontos. Adeus. A primeira questão será sempre o que se pode, interrogação. Como o que fora possível aos nossos olhos dementes, querendo-se, exclamo. Perturbado por aquela iludida sentença de que não me sairias da cabeça. Tenho aferido teu desgosto, muito bem. Tua chama de tolueno azul por sobre as resistências empíricas da tua sebe. Solvo, aclamo, bato palmas até. Sou de cuspir, sou de criar, sou de venenos e doses letais, e daí, pergunto. E daí, dou-te. Por tudo o que me deste em distração a mim mesmo, sorriso alto e rítmico, cumprido sob o horror e pompa de ser eu mesmo. Domingos lindos não mais. Obrigado pelo pago. Deus louva expectador que é do que lhe damos, amor. O cinema perpétuo de agonia e carnaval entre beijos, plumas e sangue fresco. Pago-lhe até a última prestação dessa entrega. E fim. J.M.N.

Trilha sonora…

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Com quem estou

Meu dia agora tem dona. Tem rumo, uma hora específica para o almoço
Aprendo a guiar nu pelas ruas. Sem roupa nas palavras. Dizendo tudo
Que é quando ela me apreende e exige. Não tenho argumentos
Ai um beijo.

Outro rumo. Ando a pé para aprender novas esquinas
Tenho a boca pintada pelo batom dela. Sou sua mulher impossível
Minha fêmea toda índia a dizer em Xicrim, inventei a terra p’ro teu nome
Ai ela sai da minha boca, seu nome.

Não é como a ira de tempos. Não é com erres que se lhe escrevo
Vitórias todos os abraços que ela me dá. E tem uma música
Um merengue que me tem como personagem. Me canta ela
Ai sim, existo. Sou todo de alguém, que me tem e conta.

J.M.N.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Dezessete

De todos os nascimentos do mundo, o teu será sempre um de meus favoritos, pois vieste organizar minha terra em sua caótica perseguição pelos feitos de amor impossível. Naqueles cantos em que chupavas o dedo, escondida de toda ternura excedente, arquitetavas as bodas de quem fosse apenas dedicando aquele mínimo sugar de paciência escondida. Fazias o tempo correr natural à descoberta desse teu isolamento infantil.

Ao saber dessa tua particularidade é que passei a te amar, muito mais e depois de teres me desmascarado diante de tantos. Diante de mim mesmo.

De todos os anos que contarei até o fim de meus dias, os teus estarão entre os primeiros. Contados com a dedicação daqueles anos de história linda que nos sustentaram e forjaram melhores, menos afeitos a constipação com o mundo em vigor. Tesouros riquíssimos aqueles lavrados em teus autos de entrega, sobre os quais chorei tanto quando te perdi para minhas guerras infelizes.

De tantas pessoas que me contornaram ao longo de meus tempos serás sempre aquela que me ultrapassou, me sobreviveu e mostrou com a calma idílica que sempre será tua, que não há porque apressar as coisas, os riscos não serão menores se o salto for feito hoje, daqui a pouco.

Eu te convido saudar aqueles anos. Em minha presença invisível. Regados ao passado instalado e quase impossível de ser visto por outros. Aqueles nossos liquefeitos adornos que superam contratos, benesses de calma, que ultrapassam sobremaneira a neutralidade deste nosso silêncio escolhido por prudência e honra. J.M.N.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A besta em mim

Vem despida, correndo ao vento. Solta de mim, sem amarras possíveis que seus arquétipos e inspirações são de antes do meu tempo. Acumulada, ela troca de peles ao rasgar-se nas árvores por onde passa e bestifica os frutos, come maçãs pela metade, aderindo-se à falta dos pomos aos próximos esfomeados que por eles passarem. Força todas as portas e se esgueira suada e fedorenta como a memória de espúrias vontades e feitos. Vem malcheirosa a consumir o rosa dos quartos por onde ando, difamando a luz dos abajures ornados com miçangas que à sua presença se transformam nos guizos de saias em dançarinas turcas e faz na mente o composto de história que me liga a mundos estranhos e a pessoas esquecidas. Minha monstra é fêmea como que posta em mim por quem sabia não ser possível suportar sua simples existência. E se agiganta descomunal e faminta a cada deixar de vida, a cada amor descosturado, sangrando anormal e puta o meu sangue. Tornando-se linha, fazendo-se em fala de tantas personagens por ai. J.M.N.

Trilha sonora…

L’assedio–Bernardo Bertolucci (1998)

Depois de anos revi o magnífico L’assedio (1998) de Bernardo Bertolucci. A sequencia inicial do filme me caiu com o mesmo peso do ineditismo e de tantos filmes que eu gostaria de falar, indicar ou simplesmente rever, foi este que debulhou meu desejo, meu profundo respeito por aqueles que conseguem transmitir em minutos a dor de um continente inteiro, o farrapo desta nossa condição tantas vezes soberba de seres humanos.

De tudo o que poderia dizer fico apenas com a transcrição de minha experiência com o canto de abertura e a presença daquele homem clamando guturalmente nossa ancestralidade. Bem atrás dele há um macaco na árvore. Se Bernardo não queria este efeito, o conseguiu em mim: sou aquele expectador na árvore. J.M.N.

Assistam...

Palavras de Ontem no Rádio

O escritor abaetetubense João Bosco Maia, realizador do maravilhoso “O folhetim das Sánches” (PakaTatu, 2010) saudou o Palavras de Ontem com sua generosidade, cedendo ao blog, um espaço privilegiado em suas Dicas Literárias para o programa Matéria-Prima, da rede Cultura, no último dia 06. Desde já, agradecemos ao João e queremos deixar registrado, convite para um bate-papo sobre sua obra e sobre a literatura de menira geral, respeitando a sua agenda. Abaixo, os comentários deixados por João e o conteúdo do programa.

“Wagner e José Neto, comentei (abaixo) sobre o blog de vocês no Programa Matéria Prima, Rádio Cultura. O áudio está disponível em joaoboscomaia.blogspot.com. Continuem com a veia literária aberta. Um abraço!

Eis aqui, caro leitor, uma grande dica pra você se fazer acompanhar do bom da literatura atual. Não falo na literatura nos moldes tradicionais, escrita nas folhas de um papel e com uma capa na frente e outra atrás. Falo dessa modalidade que vem conquistando cada vez mais amantes da leitura por esse mundo afora. Dessa grande descoberta que, além de apresentar novos escritores sem a formalidade quase sempre impiedosa das editoras, se impõe como um veio precioso no chamado mundo virtual. Eu falo aqui dos blogs literários, que pipocam cá e acolá e surpreendem pela qualidade de seu conteúdo. Basta um clic e estamos diante de uma obra, velha, fresca ou reinventada. E aqui é que eu queria chegar pra falar do blog Palavras de ontem, um canto da internet onde essa mesma palavra recebe o trato de dois grandes novos escritores. Cada qual em sua linha, mas sem se distanciarem nos temas e na forma de dizer, talvez aí resida a caminhada conjunta no blog, José Neto e Wagner Caldeira arrebanham as palavras do passado e moldam os poemas do presente, que são suas crônicas e seus contos... Ousados como todo grande escritor, eles se aventuram a descer na arriscada escadaria da alma humana, tanto da deles quanto da nossa. Vale a pena acessar e seguir Palavras de Ontem, dos escritores José Neto e Wagner Caldeira. Até a próxima!”

O áudio do programa…

terça-feira, 12 de julho de 2011

Cine encontro

As taças pareciam estar por engano. Postas juntas sobre a mesa de centro. O vinho deitado no fundo de cada uma, a soltar seus anos exilados. Parecia um nostálgico cinema acontecendo no mesmo instante. Em que os dois, avessos, parecia, à cena de antes um pouco, lamentavam as palavras não ditas antes da entrega. Um ato apenas de extensão corpórea. Um segredo que não era para ter acontecido a sério. Houve um clarão. As luzes todas da casa pareciam acesas. Mas estes pirilampos de susto eram os raios flechosos de dentro das suas retinas. Os olhares claudicando entre sentir e crer que fora possível aquele encontro. A cidade naquela época do ano cheirava a avelãs. O cheiro assim repentinamente deixado na memória era um sussurro. Meninos brincando de haverem-se com o novo da pele, com o doce dos beijos. A luz estranha dentro dos olhos, o vinho cênico daquele abraço. Não sabiam como sair porque as pernas desesperadas se laçaram cegas e se perderam. Porque o contorno de suas estruturas corpóreas fundiram seus desenhos isolados numa caricatura de perdição e visgo. Que quando souberam era a manhã seguinte. Que quando saíram de sua unidade despiram-se da paz reintegrada. Que quando viram tinham roubado pequenos rebordos de suas tristezas um do outro. E riram que dentro de suas mãos cabia tão pouco de coisas ruins. E sentiram que podia ter jeito. Que era possível sorrir pelo caminho. J.M.N.

Para ler escutando…

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Eloquência

Aconteceu. Comi meus olhos com sal e riso. Liberdade e apego pelo que fomos. Não sou mais. Não me quero agora. Tô deixando as coisas como foram. Tirar o remédio para ser mais parecido comigo. Não esse robô de alfenim que não resiste ao zumbido da bala. Minha dor maior é por não ser mais que eu fui, um menino. De colo escolhido. Deixado para apodrecer na latência de ser muitíssimo e nada num mesmo segundo. Os imundos que me brotaram. Ela casou com o que eu não fui e o que sou ainda festeja, mas há essa dolorida controvérsia de abandono e literatura: quem me dirá o que não sou mais? Quem me atirará aos porcos, quando eu chicotear a razão novamente? Dessa vez me encontro. Nem que seja para dizer adeus logo em seguida. J.M.N.

Urro

E de repente acontece, estamos sós. Vivos sobre os passos alheios. Eternizados pelas coisas que pensavam de nós, em nossos próprios desamparos. Uma lua que nem é cheia, nem termina anuncia a alucinada queda de altura infinita. O chão chegando. Nossa hora acontecendo bem ali, diante de nós. De olhos fechados, pedimos que o mundo esteja mentindo, que os tartufos se afastem, mas os olhos deles nos dizem que os somos, que estamos na vez de inimigos. Sobretudo carrego esse impasse. Essa fúria condescendente entre o que ser e o que me dá sentido. Um deslize apenas e estarei sem momento, um susto apenas e estarei entre tuas pernas. Ofegante. Indiscreto. Roubando rumos e floreados. Quando isso for mais importante que a aurora, talvez ai, eu deixe de escrever morrendo. Talvez eu viva o que chamam de vida, os reticentes. J.M.N.

Condescendência

Ela chega chegando. Com pés e mãos fazendo dança. Meu corpo cede. Uma batalha de frêmito manso, complementar em quase tudo. Que no fim ficamos eu com minha audácia e ela com sua ideia. Morremos sempre, quem dera fosse. Ela chega despenteada e crua, como um selvagem. Feroz e suja mordendo a carne. Dou-me sem dar, que entregue sem entregar aprendi nos anos. Ela duvida e eu acho gozada a expressão de tristeza de ela não saber como me esperar. Sem roupa ou janta, sem noz ou tripas. Sua chegada anunciada não me espanta. Esta escrito que assim seria. Sua vinda amansada por tantas idas. Ela chega e não é substituta. Ela me come e não é desaforada. Ela se repete e não tenho ganas de matá-la. J.M.N.

Importância

Estar-se, quem diria, um fato
Alta comenda depois de degenerados dias
O mar de ossos comutado na fala
Não mais
Não à ilícita ordenança dos passos
Caminhos nascentes, não morrem mais
À beira das fugas secretas
Mundo novo parido a garras de chumbo
O quente dos dias, apenas sol chegando
O gelo da fala, apenas a manhã retorcida
E nasce essa retórica prosaica
Quem sou eu que não me caibo?
Quem és tu que já não me comportas?

J.M.N.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Po(e)magem #3

“Criança sudanesa espera com sua família
pelo transporte para o subúrbio de Cartum, no dia 05,
para levá-los à sua terra natal.”

Foto retirada de Yahoo! Imagens da Semana de 02 a 08.07
Em: 07.07.2011

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O que tenho debaixo dos pés – segurança, firmeza?
Por que então me desassossega a imagem?
Esse sorriso seco que naufragou na areia me entorpece
Sou menos eu a pensar no que tenho e mais ele,
A pensar no que virou pó
O que me resta do castelo em que eu morava?
Essa areia rala de brinquedo nos seus dedos
Essa vergonha de ainda fazer parte dos que nada fizeram
Mais ainda quando o vejo brincar sereno
Perguntando à Terra se o receberá
E nós, existindo longe, sem querer vê-lo
Mal sabemos que o seu pó de brinquedo somos eu e você

J.M.N.

Dúvida

Depende de onde. Onde o que? Quiseres que eu coloque a mão. No ombro. Qual deles? Tanto faz. Assim tá bom. Escuta o joelho torcido. Moída que eu tô. Agora chega de remédio, vamos roer comida de verdade. A última rodada estragou meu estômago. Que fazemos? Lasanha, vai. Mais alguma coisa? Suco e melão como sobremesa. Odeio melão. Um beijo vale? Lembrei de ter tido um abajur lilás. Isso era gosto? Mais que qualquer coisa, tenho interesse nessa tua perna. Só nela. Presta atenção. Tua perna é linda. Agora sim, tá valendo a comida. Roubei o cara dos bombons. O síndico vai ficar chateado com o ar condicionado. Tem muito sujo na aptidão de ser gentil. Começas a mostrar que tu és. Um terço de coisas usáveis essas tuas palavras. Fica tudo mais normal quando me elevas. Sempre te elevo. Põe a mão ai, isso. Delícia. Sabes quantas pessoas morreram de frio este ano? Agora sou eu o culpado pela chuva? Fecha a janela que meu trabalho depende do seco. Lavar a louça. Temos mesmo? Ficaria horas falando a esmo contigo. Pena que não existes. És um usável, que nem eu. És mais que isso. Dorme bem. Durmo tua. Acordarei cansado não me chama antes das três. Combinado. Nada de ti antes das três... Nada de mim antes do som. Eu preciso mesmo tomar esse remédio? Tava tão boa a conversa aqui dentro. J.M.N.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Mil anos

Para meu avô, José Maria de Abreu Mattos, em seu aniversário.

Vai Zé que a razão já passou correndo, ninguém ficou. Todos dirão que sim, mas não, ela não se deu com nenhum deles. Vai fazer teus trajetos infinitos nas bordas das mesas de lá. Depois da janta te conto mentiras para ficares mais feliz. Mas somente aquelas que não darão razão para duvidares dos homens. Vai Zé, vai reclamar da vida nos balcões de atendimento celeste, onde sábios, profetas e escritores poderão te ouvir até o fim de suas mortes. Trarão, eles, estes teus defeitos e reclamações para dentro das coisas que fazem, pois são muito mais comuns do que te deixaram saber. Vai bancar o senhor de tudo na imensidão da minha memória, Zé. Arquitetando a vida que não tiveste, pois desistida, o sonho que não te coube porque subido rápido demais à admiração alheia. Vai instalar teus reles, filamentos, tuas buchas guardadas, tuas junções acrílicas na obra divina, Zé. Vai ser útil através do tempo, irmão. Vai constar na lista interminável daqueles que descansam na paz dos deuses e descobriram, quem sabe, a marmota de ir e vir entre os mundos. Hoje nascerias se não estivesse morto, Zé. Darias um grito de chegada, não estivesses tão calado no cosmo. Terias o primeiro banho, o primeiro abraço. Não podendo te dar isso, Zé, te dou meu nome, enfim. Aceito a honra de os outros saberem que estiveste por cá através de mim. Quem lembrar de ti, poderá dizer-me: tal e qual. A quem não te conheceu, darei explicações de felicidade, reservas e um bocado daquilo que ainda quero ser. J.M.N.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Eu daria tudo...

Mesmo baleada me inflamas. Mesmo aflita incitas palpitares estranhos em mim. Teus olhos irrigados, distribuindo nutrientes naquela noite casual. Olhavas tudo. E, perdida, negavas as coisas que cintilavam, mais propensa que estavas aos cantos escuros de dentro. A realidade atroz chegou a ti com a força avassaladora de nunca antes ter te incomodado. O suprimento de si que precisavas, certamente, é maior do que aquele que levaste. Mas entre aqui e além, suavidades a parte, te encontras em mim. Como um espelho tão esperado. Cuja culminância foi o que eu quis, mas não tive coragem. Nada fica na mesma até o fim. Não são culpas, nem se trata de quem ganha ou perde. Tuas lágrimas estão certas, saem de ti. Sou como aquilo que não sabes e venho sussurrar esse segredo meu que indica somos um. Somos um animal fugitivo. Teu respiro e meu suor caindo juntos. Só nos encontramos uma única vez. Nossa rota semelhante desenrola-se diante de nossos olhos. Cansamos juntos. Estou aqui se precisares. Não vou te invadir como todo mundo e espero que não me causes a comoção de antigamente, que já não sou nenhum menino de forças ilimitadas. Entre estes dois pontos, cabe tudo quanto quiseres. Entre o teu esforço em ver e o meu em acreditar, poderemos reescrever nossos nomes e depois disso, cansados, cantar para celebrar as descobertas. J.M.N.

Para ler escutando…

Permissão

A febre não cedia. Ele envelhecia anos sem conta bem diante de nossos olhos. Resolveu pedir. Não queria ficar. Todos ao redor queriam tentar. Ele não. Depois se ficou falando em direitos humanos, processos judiciários, possíveis culpas. E ele lá, dedicado a sofrer tudo por todos naqueles últimos dias. Puxava, fraquinho, a beira do vestido dela e ela envolvida na conversa segurava sua mão com carinho, porém nenhuma cumplicidade. Sua voz sumia. Neste minuto o menino entra no quarto. Olha fixamente para aquela pessoa esquecida por todos no recinto e se aproxima. Segura sua mão e pergunta o que ele quer. Um cochicho, um sorriso. O menino se deita ao seu lado. Ninguém repara. A respiração vai descendo até os últimos andares daquele corpo surrado, maltratado pela conjunção de medicina, desencontro e o medo impermutável dos filhos, irmãos, parente, enfim, que não suportavam vê-lo ir. Jamais lhe perguntaram a vontade. O menino cantava uma música que aprendera em cujo refrão, havia as palavras céu e azul. O menino ia diminuindo a voz. Muito tempo depois, quando finalmente todos resolveram deixar-se e repararam em quem realmente importava naquele lugar. Viram-no morto. Assustados com a cena, o menino tranquilo ainda cantava, com a mão do doente segura em suas mãos. E aquela imagem de paz inaugurou o fim daquela pessoa dentro deles e os trouxe à verdade da libertação com uma única e impressionante revelação. Alguém perguntou gritando: o que você fez com o vovô? “Eu deixei ele ir”, respondeu o menino. J.M.N.

Po(e)magem #2

Sobre Foto de Stella Couto

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O tempo desce sobre meu teto
A ele apenas autorizo esse descanso
Prefiro unicamente
Ser esmagado por seu peso, seu corpo
Nenhum homem me dirá que não sou meu dono
Meu dreno, essa vida inclinada a desgraças
Interrompo andando na mata, comendo sementes
A floresta é a dona do tempo e dos cedros
Jamais ficarei ao relento, mesmo que todos
Despenquem sobre mim, os séculos

J.M.N.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Escrito ao luto de quem morreu em si ou sonha ser menos

Há quem diga que eu amei de menos e que meu sumiço foi um não sei quê de medo, de descompromisso. Há quem mate por ai meus beijos, havendo pouco de seu coração nisso, muito mais a boca, escassa de nossos desatinos. Há quem jure que eu morri primeiro, que a minha fome é maior que o mundo. Há quem se misture ao que escrevo e abomine as cartas que mando a ninguém. Há quem julgue de quem eu fui primeiro, pois dentro da vida não foi de mais ninguém. Há tumultos onde participo a enfrentar mentiras e sem jeito, afins. Há no mundo um lugar preciso, de onde partirá minha nau, abastecida de sorrisos e loucura à vontade. Há quem diga que eu sou um estúpido e que nesta vida, não há razão de ser a sede que sinto por mais um dia, por mais dez vidas dentro de um mesmo amor. Há quem diga que se esqueceu das palavras, mas elas, que aprenderam os erros e os absurdos, sempre dizem e sempre dirão, livres em si mesmas. Que enquanto tantos outros se ajuízam, meu juízo é perder o rumo, é chegar granizo no deserto triste, de outros que, como eu, esperam a vida como ela venha. J.M.N.

Trilha sonora do sensacional e quase esquecido Sérgio Sampaio, para quem decdico este texto e sobre cuja canção, estas linhas nasceram…

Po(e)magem #1

Sobre a Foto da cantora Áurea Martins, feita por Stella Couto

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Há razão para esse canto tanto e rouco
Negro, desde a noite antes de nós
Desde o tempo em que “nós”, pronome de todos

Essa tua lágrima justa e linda caída
Recai sobre minha imatura alegria
Sentir liberdade é ter voz, sou mudo a ti

Não te ouço ou conheço, porém me encontro
Nesse traço do teu rosto, teso a cantar
Cantas para ti apenas e eu, com meu ser apenas

Te ofereço a devoção do ouvido, do olho
O olho que verá escutando a tua canção presença
O teu escuro iluminando a minha alegria

Desde que nem sabias que eu existo

J.M.N.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Quando o poema não te socorre

Quando o poema esquece a janela fechada, horizontes órfãos procuram cavernas. Há um interior, nalgum canto do mundo, que ficará repleto de desistidos destinos, enquanto o poema percorre umbrais envergados, difíceis acessos aos domínios de outrem.

Quando o poema recusa tuas ofertas, pleno de palavras que se encontraram em festas, há que calar pormenores, as dores devem sentar aguardando a volta daquilo que uma felicidade oportunista tomou de assalto. O poema no instante da fuga é o mais omisso dos entes queridos, a mais traiçoeira lembrança de morte.

Quando o poema cala a voz dos destemidos, imprimindo sensatez à estupefata turba de esperanças efêmeras, resfriam-se revoluções, presságios são ventos corriqueiros e assustados que vêm e contam verdades demais para uma só criatura.

O poema quando quer interrompe o fluir das vidas, paralisa a vontade de ser, doma o tempo e cristaliza o peito batendo num único ritmo. Amordaçá-lo não chega. Não chega sequer amarrá-lo ao choro, ao grito.

Quando assim o poema se impõe sobre todas as outras funções corpóreas, há que deixa-lo dizer-se, consumir-se ao extremo da entrega, ao cume de toda sua eloquência. Nenhuma mordaça o impede, pois que ele recupera, fortíssimo, o que foi renegado, o que foi descumprido.

O poema virá. Da ilusão recuada ou de velas soltas, quando o furor interno gritar por ele. Quando todas as dores, toda falência, todo fenecer não forem páreos para a emoção desatada por suas linhas. J.M.N.

Trilha sonora possível…

Às palavras recentes

Assim que ela sai eu ganho asas, a segui-la na quentura do verde de nossos mesmos caminhos. Que fique claro que não é liberdade, apenas uma ferramenta para continuar perto dela, segui-la aos milhares de cantos por onde passa. De cima, como um pássaro interpreto o melhor trecho dos seus caminhos e ofereço palhas como paredes a uma vida conjunta. Por enquanto, sei fazer isso apenas, sozinho. Sei que um dia desses acordarei com um pavor demente de não tê-la nos abraços noturnos, nas sonhadas praias de areal e azul. Antevendo esse destino imprescindível ao que já se instalou por tanto amá-la, sou capaz de arrancar as asas, de trilhar os mesmos caminhos todos os dias, de busca-la com a obstinação de Andrógino recém-separado. Andando até o sangue deixar rastros nos passos, até a boca cultivar um deserto de sem chuva. Estar ali, ficar, conjugar seu nome como o verbo que me impele ao movimento. Rebento unicamente de suas palavras recentes: amor da minha vida. J.M.N.