terça-feira, 31 de maio de 2011

Nenhum pássaro por hoje

Hoje ninguém parte. Ninguém se solta.
Não há recomeços. Uma seca dentro da boca,
cuja palavra não respira nada, hoje apenas.
Quem saberá?
Nenhum pássaro por hoje. Apenas o céu imóvel,
desassossegado, sem o leve das asas batendo
Hoje não há fronteiras livres. Todos presos,
esperando as verdes paragens da esperança.
Quem ficará?
Hoje ninguém encontrará respostas. Oco grande,
imenso dentro a se fazer saudade.
Hoje fica o retorcer dos deuses, suas promessas.
Quem haverá de contestá-los?
Não é bem um abandono ou uma distância infinita,
sua ausência é crescer para dentro, alimentar-se.
Quem sabe de quê?
Quem quer saber?

J.M.N.

Para ler ecutando…

Dentro da falta

Ela é muito morta agora. Tem tempo passado em seus ossos, é o que eu acho. Mas deixou essa velhíssima sondagem em minh’alma, essa pergunta degolada quase. Uma finura que incomoda quando falo, que de dez palavras solto o nome dela no rosto da conversa e as pessoas não sabem de porque eu ando ainda a falar nisso. Mas esse “nisso” é pra mim parte de tudo quanto falo e quando brigo comigo, diante do espelho, peço que ela volte. Mas tô tão velho que é apenas uma mania que se acostumou a sair desembestada quando eu estou só. Eu que agora só resido em casca nesse corpo, que o muito da vida e da força de perseguir garrote já me deixou, fico fuxicando essas besteiras de vez por outra. Uma saudade enjoenta e demais do que eu posso pedir para calar. Não tenho vez nem com meu respeito de comprometido. Quando durmo, em vez de virar pedra, passarinho e essas coisas que plangem livres entre nós todos, eu viro ela, pares’que. E quando acordo, fico tão chato de ter gasto a noite com sendo ela que eu desisto. E tem uns tempos que ando assim, desistido. Não sei até quando duro. Quem sabe até de ela me puxar para dormir do seu lado. Acho que viro osso antes é mesmo de morrer, de tanto ficar sem vida por causa dela. J.M.N.

Micro romance X

Ela tinha um mundo nas mãos de tão concentrada que estava entre a canção fina que saia de sua boca e a borboleta enjaulada na delicadeza dos dedos em arco. Toda a frágil consistência de sua pessoa e do mundo inteiro na figura pacata que esperava a mãe para seguir viagem.

Aquele som de delicadíssima nota tornando-se cheiro para o humor de todos em volta. Uma felicidade matinal nascida dentro daquela imagem irretocável de sozinha dela.

Abrem-se suas mãos. Uma liberdade batendo asas saiu dali. Seu canto aumenta como naturalmente um grito de socorro, parece. E uma repetição agoniada se inicia. Ela se embala em si mesma, num ritmo agora desconexo. As pessoas migram para seu incômodo e todos olham direto aos olhos que já não estão lá.

Vem a mãe com um suco e um pão. Ela recusa. A canção agora é de aflição. Talvez medo. Um Danúbio saindo de onde antes era só calma. As pessoas mais frágeis que ela se inquietam, alucinam. Todos querem cuidar de sua explosão corpórea. A mãe sussurra-lhe algo e levanta.

Vem bem rapidinho trazendo algo amarelo sol entre os dedos.

A menina baixa o tom, mas não sorri. Acalma-se e estende as mãos à mão da mãe. Outra borboleta no seu sorriso não acontecido. Ela canta ao sol daquelas asas. Todos em voltam silenciam e sentam nos bancos ou deitam sobre as malas. A música recomeça. São seis e meia da manhã. A estrada para muitos será longa.

Para a menina apenas mais uma. Sua liberdade canta sobre as asas paradas da borboleta. Nada mais há para entender nessa entrega. Todos são apenas sorrisos e admiração. J.M.N.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Nunca que te conhecia

Para ela que bagunçou meu fim de semana

Descobri de onde achava que te conhecia. Era do encontro explodindo tufos de vento sentido, uma alegria nascida do que não tinha de certezas a teu respeito. No fim das contas, nasceras do que me faltava e eu nem sabia. E quando encontrei, aventei-me a possibilidade de saber-te antes do susto, antes da primeira vez.

O maravilhoso em mel acontecendo nas entranhas. Estranhamente confortável ao teu sorriso. Vago, arriscado, quase um abismo cavado às pressas para que eu sumisse e comigo toda a vergonha do mundo por ter sido novamente pego de surpresa. Fizeste nascer uma esperança de seta apontada ao meu centro, de flama ardida em temperaturas solares.

Quase nem ouvi quando me contaste da tua casa, do teu compromisso. Meus limites, ainda bem, me impedem de sentenciar morte ou eternidade. E nesse presente assuntoso e encorajador, no qual me distraio à sombra dos séculos, fizeste casa. Uma presença que me suspende, me desregula imensamente.

Naquele dia sai calçando sapatos de vento. Embaixo de mim, por todo o caminho, airado desespero de reencontro, humílimo convite ao delito. J.M.N.

Madrugada

Fraturou-se toda, a saudade. Espatifada no chão depois do amparo da mesa onde lia e reescrevia antigas cartas abandonadas. O pior suicídio em palavras. Regurgitar sobre os humores melhorados o que não se disse. Lá estava ela enfeitando chão aos mil pedacinhos, como os astros da velha canção. Porém estes, se pisados, não dão versos, mas sim sangue sob os passos. A saudade em cacos me faz evitar sair de onde estou. Começa a chover. A madrugada criando forma para dizer que também sente a fome do tempo lhe roendo as entranhas. Difícil este abrigar de todas as saudades e lendas do mundo e mais além. Ocorrem meninos extemporâneos no portão a gritar: voltem para quem os largou em casas alheias. Voltem para o princípio, pedaços crus de saudade estilhaçada. A forma antes dessa saudade, não me lembro, mas finalmente levanto e passo a unir as pontas, os cumes primeiro, que o pontiagudo já superado pode dar lume para os novos pedaços voltarem aos seus lugares. Para quê superar a noite e o choro longo de uma terra que abriga o choro do mundo todo? Isso tudo me socorre bem antes do tempo em que sei, a saudade cobrará seus dobrões mais valiosos. Sentado num pedaço de chão limpo, olhando os cacos, penso feliz que tudo me volta. E a chuva da madrugada me faz sorrir, afinal. Deixei as cartas desamparadas no mesmo canto. Tudo em volta, uma imensidão de paciência e amor aos pedaços. J.M.N.

Belém, 02 de maio de 2011.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Onde Estão os Portos III

Para todas as pessoas que dão razão
ao dia 18 de maio, dia nacional da luta antimanicomial.

Ele pensava de entremeio sol e suicídio. Estava cansado de resistir ao gorjeio dos príncipes que vinham à sua janela pela manhã, pardais e tritões que não tinham, mas declarava.

Ele demoliu a cidade de ouro que era a família, porque nos dentes tinha não raiva, mas riso. Nas brigas ficava ao lado de divertir-se e dizia bilhas de comichão noturno sobre os quais seus pais e irmãos tinham segredos. Não eram felizes sem a peleja. Ele sim.

Ele tinha, guardado desde os doze anos, um prego saído das paredes da jaula. Onde estivera. Onde aprendeu adentrar-se no si mesmo dos outros e festejar-se, festejando-os. Aludindo impossíveis gostares era que enfeitiçava a descrença dos outros em poder mais do que viam, ouviam, sentiam.

Ele tinha beijos dentro dos quais amealhava amores. Tão mais densos e apalavrados que os meus. Por sobre os quais pousava a ira de quem não conseguia viver-se, senão a imolar cordeiros e culpar entidades.

Ele que sabia dos ventos pelados que nauseavam as senhoras, mas confortavam tanto minha solidão, me deu âncora, coragem e uma certa preocupação. Mas tão pequena que sou livre dela me matar de tédio ou demais certeza. J.M.N.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Íntima visão da aurora

Ela chega e pega meu dia pelo pé. Tem vulgo de antemão dos tempos, essa pessoa. Chama-se a si mesma de outra, antes mesmo de tudo procria os sons dos peixes revolvendo o leito do rio. E esse que corre em mim já tem vestígios do seu leito mexido. Por ela.

É quando abandono os quilates da fala que ela me vem. Pernoita, tem dias, no meu silêncio descansado de mim. E nesse momento em que nada mais me padece ou fere ou furta, ela acontece. Reticente e talvez indevida, pois jamais perguntei seu gosto por sonhos e outras deixas que vem dela a mim enquanto chamo seu nome.

Um dia componho uma quadra para ela. Quiçá uma redondilha infinita para ela jamais esquecer que fez canto em mim. Mas nisso não tem maldição, coito, urdidura. Manhã rasteira em pedra de caminho, apenas.

Como a suavidade celeste de um sol inteiro a deitar na plenitude de uma pedra que espera as eras para contar segredos aos que chegam depois de tudo. J.M.N.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Além do fogo

Quem me dirá água, agora que você se foi?
Morrerão pelo calor meus apegos, minha capacidade de amar
Não precisará de combustão a pólvora, nem de ignição o medo
Nascerão siameses, como efeito do que não ficou

Quem assoprará minhas cálidas feridas, agora que te soltaste?
E de qual felicidade, nascerá o riso infinito que me furtou ao mundo?
Não sobrará um escombro. Nenhum osso, para os ossuários – nada
E neste assento novo, a vida, mais penosa e dividida do que nunca

Quem, por fim, cobrará que eu siga amando, senão tu?
Acordará mil armadilhas para que eu me pegue a mim mesmo, inconstante?
Descerá correndo do voo para sepultar meus vilões?
Transformará minha letargia em fúria de acordar os carrilhões?

Quem ademais, terá o peso de nada ter e de ser tudo
quanto posso sentir, ousar e crer?

Quem terá coragem de dizer meu nome e nisso apenas
me entender para sempre como tu fizeste?

J.M.N.

Para ler escutando…

Cartas a ninguém (26.05.2011 – 10:37 a.m.)

Caro amigo,

Parabéns pelo feito! Pude sentir daqui o desamparo dos medos tentando chegar aos teus sonhos e fugindo ante as certezas que agora povoam teu inconsciente. Essa hora estava esperando por ti, desde os tempos dos caracóis olhando as pedras até sê-las.

Saudações pela descoberta, pela inaudita insolvência das culpas tardias, as quais, afinal, foram-se. Não sem tempo, não sem suores e rejeição a substitutos. Agora progrides dentro do que efetivamente és – um sonhador. Ilusionista que vive à deriva desse grande outro que não tem, mas crias porque senão, não cabes por aqui.

Felicidades irmão! Pelo açoite aos monstros do armário que praticavam a antiga arte de ofender os amores, evitar proximidades e espreitar tuas angústias quando no fim das contas era apenas solidão e tristeza no beijo. Pele deitada antes do adeus. O latejar de agora não é mais no membro perdido, mas sim na carne de agora, na soma controversa do homem e do desejo.

Soberania camarada! Muitos irão dizer que és um traidor e que pouco tens que dizer aos demais, porém agora tens apelo para andorinhas e bem-te-vis. Volta ao chão das tuas memórias e não rosna, agradece, entrementes, pela difusa praga de saber demais sobre os arroubos do vazio e das superações do estar-se.

Avante desertor! Terás cadeira cativa dentre os frouxos, os alcaguetes. Aqueles seres indevidos que se prezam por apontar e vivem de dedo em riste indicando, nos outros, o que não podem eles mesmos. Serás espelho de impossibilidades e tanto quanto saber-se livre saber-te-ás indesejável pela notória escravidão dos servis.

Temo por tua integridade física é bem verdade, porém saberei se te implodires quando daí não vier mais os risos evocativos das eras, as descobertas ilustres dos tontos poetas: lâmpadas para melodias, envelopes para beijos com saudade enviados de volta à memória do que deveria ter sido e não foi... porque foi muito melhor... porque foi teu.

Sinceramente,

J.Mattos

terça-feira, 24 de maio de 2011

Olha bem, repara amor (ou “a confissão que não nasceu”)

Antes do antes eu era tua, conforme acontecia meu corpo. Fui crescendo e dando conta que não queria acontecer em outra terra que não na gente, essa plenitude de sal e rima berço de tantos horizontes fractais.

Antes do tempo eu era Marte, vermelho sangue e depois, azul turquesa. E ia através do espaço sem natureza alguma que me resgatasse. Foi dentro daquilo que emanava em nossa tenda, no deserto muito escasso dos apreços, que eu nasci de fato, fui além.

Antes das eras eu era fóssil, petrificada. Cheia do cálcio desocupado da Terra. E me enchia de impedimentos e finais, de crostas e amarras e sorria apenas quando ouvia o tilintar das esperanças alheias, mas logo morria. Logo antes de eu nascer somente minha e me chamar de pessoa e corpo, carne e rumo.

Antes de ser tua não era minha. Não era de ninguém, mas nem selvagem era. Não era uma espécie ou um destino. Era um marco sobre o qual se ria o tempo; e rechaçava suas voltas em plena demência de sozinha, até que um dia teu riso passou por mim e o desalento seguiu em frente, passou a outrem. Fui te seguindo à deriva de mim mesma, à espera de acalanto e tive mais do que sentia possível, muito além do que supunha a minha anciã paralisia. J.M.N.

Apologia a qualquer coisa melhor que eu

Bradamos enfim o final da história. Um no outro, uma parte apenas. Do que fomos – abandono. Saudade perene em forma de versos. Resta a rima entristecida, porém viva. Uma chama que acomete que se passou unguentos, aromas de amor e febre de espera, de entrega depois de tudo. Uma parte de mim é ninguém, outra parte: o mundo. Vago lugar onde não cabes mais, onde não caibo. E se é assim, onde estaremos quando sentirmos saudades? Eu acordo em Libra, sem peso ou multidão e vou cambando para Caetana, pedindo um tempo mais nessa terra. Minha musa tem um nome único, é permanente em si. Eu sou mero acaso. Vivo impunemente essas horas do fim. Regresso sempre que me perguntam quem sou. Apenas para dizer que sou vários. Dentro da noite unto meu canto de parábolas, depois que te encontro, carrasco, qualquer limite é apenas um atentado à paciência do corpo. J.M.N.

Para Conhecer: Ferreira Gullar

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir-se uma parte
na outra parte
- que é uma questão
de vida ou morte -
será arte?

Ferreira Gullar – José Ribamar Ferreira, natural de São Luis, Maranhão. Um dos grandes poetas vivos do Brasil, autor de entre outras pérolas, “o Poema Sujo”, já postado no blog, já sentido na pele, como acontece com todos os textos vicerais. J.M.N.

O tempo é o mesmo, o beijo é que acabou

Quando achei que entendia, a lâmina dele separou minhas linhas. Escrevo agora sobre passados feridos e futuros sonhados, com gosto de erro, com sumo de glória. Apenas tempos improváveis de reter ou impossíveis de retomar.

Quando encontrei a melodia, canção nenhuma me ocorreu. Tudo parou derramado e franco. Aberto ao ar do deserto, à fúria dos mares nórdicos, à cartografia enganada dos céticos. Faço agora meu sustento de vento, meus planos de memória e saudações febris.

Quando achei que encontrara a carne certa, aprumada entre o beijo e o desejo de retesar-se entregue, impetuosa, acabou-me o tento, não prescrevi dia depois para aquele achado. E aurora nenhuma encurtou minha ilusão, tampouco livros e vernáculos opuseram ideias de solidão e pena.

Quando achei que despertava de um pesadelo, à presença divina de um anjo ou deles todos, nosso beijo acabou. Meu tempo não se conforma com esse desassossego. J.M.N.

Trilha sonora…

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O que mais cabe?

Dentro do vaso cabem as plantas, a água de molhar raízes, uns bichos que revolvem a terra, a vida vegetal que se multiplica entre os limites. Cabe o espanto das paredes da casa que lutam para manter as pessoas juntas, entregues à melhor maneira de se quererem, servindo de abrigo, suportando o peso de passos truncados nas manhãs ranzinzas.

Dentro da xícara cabe um último gole de chá, seu aroma morrendo fininho depois do beijo abandonar a borda da louça. Cabe nesse frágil tempo minha devoção inteira por cada coisa que é tua, que define e aumenta a aclamação de meu organismo por tua presença oculta, diferença de espaço e tempo de mim aqui.

Dentro do muro cabe um excerto de liberdade, um quilombo ou um gueto. Cabe na alvenaria que impede a saída o visgo de plantinhas minúsculas que rompem o cerco para trazer alento aos olhos que explodem dentro das cercanias do cárcere. Cabe no muro que define as geografias, um bilhete e o furo de transpassar mensagens. Amores nascendo entre fronteiras.

Dentro dessa distância, do tempo que passamos alheios aos abraços de vida eterna que trocávamos, cabe ainda o mesmo amor cruzeiro. Cuja regra galáctica aponta horizontes perfeitos, impensáveis. Cabe no que escrevo três ou mais vidas inteiras. Cabe Alexandria e seus segredos, a guerra fria, a madona dos rochedos. E tudo isso é ainda muito menor do que cabe em mim, quando te beijo. J.M.N.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

É como a vela ao sabor do vento, estar nesse barco...

... é nunca saber. Não há compreensão possível. Vem e vai como as horas, inexorável. Entorna as bilhas com água límpida e dá câimbra, agonia. Cresce como essa revolta dos séculos, mil homens apostos para o combate que nunca inicia. Temor pelo devir, os olhos costuram céu e terra no mesmo tecido que não nos protegerá do frio. Ele virá. Mais rápido que a ocasião em que me expulsaste da tua vida. Esse frio metálico e continuo que é a própria fornalha da solidão. Por amor aquilo que julgo agora ser teu e de mais ninguém, não há pedidos ou vontades. Há sim essa espera aturdida, mas ágil, onde cabem movimentos perfeitos como seus dedos alinhando os cabelos, com a displicência que apenas essa minha letargia afoita permite ver. J.M.N.

Para ler ouvindo…

Recuerdo

Agravado esse meu estado, misto de desolação e convencimento. Por trás dessa inconsistência a tua presença a me pedir desculpas por: 1. Ter sido grossa; 2. Ter pensado no que disseste mais de uma vez; e 3. Bem, não ouvi nada a respeito do fato de teres mudado meus dias para sempre.

Tudo não devia passar do que foi, um tropeço em nossas inconsistências. Teríamos ido a Teerã e comprado cartões postais dúbios com mensagens de fé e ódio como fazem as pessoas que se confrontam mais do que existem entre si. Uma dúvida apenas: o que quiseste dizer com o beijo?

Aquele contato descabido depois do perdão. Reconheci ter sido a única resposta possível e depois te doei um sorriso falso querendo mesmo dizer que esperava sentires dores horríveis pelo que fizeste, nada mais além disso. Humílimo desejo depois de uma pedrada, acredito.

Não conheço o corte do teu rosto. Não critiquei tuas músicas ou as dentadas extras no meu sanduiche. Não tive tempo de encher balões para as bodas de algodão e convidar as pessoas que nos odiavam apenas para lhes esfregar na cara nossa felicidade e, no entanto, ainda tenho duas horas de sentido e frases emprestadas para te contar.

Todas acontecidas enquanto, por um único segundo, beijavas o meu rosto exatamente às três da tarde de um dia cinzento e odioso. J.M.N

terça-feira, 17 de maio de 2011

Invisível

“Com que suave doçura me levantas do leito
em que sonhava profundas plantações perfumadas,
passeias os dedos pela pele
e me desenhas no espaço, desequilibrado […]”

Julio Cortazar

Eloquente essa lembrança. Incrível como no segundo em que a realidade aconteceu. Plantavas esse teu impressionante fogo entre minha sobras, pois que já me tinhas desenhado para além do possível. Eu sonhava com cardumes de outros sonhos. Entrementes esperava a serpente me trazer um prêmio. Teus dedos desenhando minhas formas humanas. Era o teu outro acordando em linhas imaginárias e gargantas a minha forma, a minha voz para dizer apenas o que querias ouvir. Desse engodo transido em carne e língua e veneno, nasceu-me um verso único e triste. Aquela pequena solidão me convidou às pressas, voltei a mim. E enquanto dormias entre as hélices de teus bombardeiros e veículos de fuga, ia vendo nascer sob a tua respiração aquilo que eu não conseguia dominar. Aquele sopro exclusivo que te alçava a nebulosas perdidas. Não foi medo, nem desistência. Um dia, simplesmente acordei. Desde então a novidade do gosto, a delícia de uma boca que me quer por inteiro e do avesso. Do que me lembro daqueles dias, entre as cinzas e as sobras de mim, vem-me esse nada gigante e sereno, para o qual pergunto: quem era ela, afinal? J.M.N.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Inteiramente

Estão todos quietos nas fotos. Seus risos estáticos lembram-me que sim, eu estive no meio deles, porque quando percebo, meu riso está igualmente parado no tempo, cravado nas ruas de lá, quem sabe pedalando entre castelos, escarpas de pedra e oceanos.

Minha casa nunca chegou a ser um lar. Minhas caixas amontoadas me dizem partidas todo dia. Quero perder essa ideia de que o tempo foi perdido, de que as coisas agora acontecem por que deveriam acontecer. Seu endereço mudou, mudei a minha fechadura. Todos no prédio perguntam de ti. Todos em mim já se despediram.

Não posso culpa-la por ter me deixado. Eu faria o mesmo e ainda por cima escreveria em letras bem vermelhas no espelho do quarto:

Enquanto cresce esse exagero
Enquanto acrescento ruas à cidade
O pavilhão tomado arde
Derrubarei os muros dessa cadeia

Enquanto o peito esconde
Todo silêncio acontecido anteontem
Nasce no riso esse desconforto
Eis a força que antecede a liberdade

Depois disso, deixaria as chaves no pote, sobre a mesa da sala, arrumaria o tapete da entrada, chamaria pela última vez o elevador e ao cheirar a rua bem no meio da noite, sentiria um breve perfume de madeira seca, a esperança nascendo sobre a pele de meus braços e essa música tocando bem alto na parede do que, àquela altura, chamaria de memória. J.M.N.

A música que tocava…

Às favas com a alegria

Arrancaram-me o motivo de sofrer sossegado, agora divido os ocasos por ai. Isso foi a pior coisa que podia ter acontecido, baby. Os indulgentes, os de bem com a vida, aquelas gracinhas espalhadas pelo Orkut, jamais saberão o que sentir em segredo, espetáculo antes de tudo. Confesso: nem aqueles seus pares de meias coloridas, refariam minha tarde de agora.

Sequestraram a persistência orgânica da minha tristeza, amor. Fizeram suco da minha bioquímica. Ando mais estabilizado, arfando menos, pensando mais. Querendo até uma poupança para alegria daqueles que disseram eu não seria nada na vida. Mais ai, lembro que em cantos específicos de mim, ancorei barcarolas secretas de fugir do mundo. Embarco sempre nas primeiras horas da manhã.

Hoje fui à casa branca que compraríamos com nosso trabalho suado. Os móveis em perfeito estado, os quadros bem alinhados, as sancas detalhadas e o aparelho de som, uma vitrola antiga, cantando as excentricidades de nosso encontro. Quase não volto. Ai, lembrei de Vinicius, quase dormindo a dizer que achava estar meio doente. Amor demais, acho eu. Minha saudade recauchutada apareceu na última hora, apenas para dizer que estou vivo.

Não tenho mais os sambas geniais do Chico. Ídolos morrendo. A rua em que cruzei com ela já se perdeu. O tempo agora faz-me caber no silêncio. Um, dois, três, testando... A conexão está boa. Vejamos, vou dizer: eu poderia muito bem pedir perdão.

Em vez disso, vou ficando cada vez mais virtual cada vez mais parecido com todo mundo Se era isso que esperavas de mim, pronto. Tô chegando perto de ser ninguém. Tô quase pronto para ter um futuro melhor. J.M.N.

Exercício de péssima literatura

A milhas daqui existe um lugar em que as coisas caem do céu, com efeito, sobre todas as suas expectativas frustradas. São pedações de imaginação e confeitos ao estilo bolo de noiva. Um constrangimento, diga-se. Parecem aqueles sonhos de autoajuda que dizem todos, no fim das contas, que as pessoas são estúpidas e que a vida é isso mesmo, resta sobreviver.

Nesse sítio em que espectros habitam casas e vilas e os moradores das paredes, quais sejam, os musgos, inventam histórias de alento e umidade, existe um cara que acredita piamente que será perdoado. Um obtuso procurador de felicidade, que se ocupou tanto de busca-la nos anos setenta que virou um hippie anacrônico vivendo no meio da lama e do caos, dos musgos e da vertigem que é entrar nesse lugar abandonado por todos e ao mesmo tempo, habitado por todos.

Essa espécie de delírios que me acomete as letra agora é um exercício. Costumava fazer isso quando queria escrever um romance, quando estava amando, quando perdia um disco, mas agora, que a reunião acabou e que descobri definitivamente que não quero morar onde moro, trabalhar no que trabalho e fazer, todos os dias, o mesmo maldito caminho, essas palavras confusas feito as demências do Mirisola andam parindo-se a si mesmas de maneira incontrolável.

Acho que atingi algum ponto do meu sistema nervoso e o que saiu foi esse emaranhado de notas, paixão e vaidades. Verdades, contudo. Porém, antes de dar qualquer nome, vou dizer a que me proponho: críticas ferrenhas, maldições de interlúdio, desistência dos leitores antigos e qualquer coisa que evite continuar escrevendo desse jeito, sem tom algum, apenas palavras seguindo-se ao infinito. J.M.N.

domingo, 15 de maio de 2011

Não faço parte do dia

Por trás dessa gagueira a falta do que dizer. Calaste alguma coisa que ainda não sabia poder sentir. Não que me paralise ou irá me matar, porém me indica um descompasso.

Ando fora do calendário. Esse tempo que insisto em viver por dentro é mais amigo das ilusões do que pensei. Não é cool ser estranho nos dias de hoje. Tudo tem de parecer brilhoso e sincero demais.

Naquele dia fiquei sem graça porque achei que não precisava atear fogo no que já ardia, declaradamente. Era a última coisa que esperava ouvir da tua boca. E digo assim, pois no fim das contas, sei que foi a única resposta possível.

Tem um medo abundante por ai. Correndo solto no mundo. Medo de sentir demais da conta e estar afundado naquilo que as pessoas chamam de esquecimento. Ou simplesmente não esperamos mais admiração e paixão de tiro certo, fulminante.

Cabe interromper todo ato suspeito entre nossa espera eterna pelos sinos da descoberta e a vida que alguém está disposto a nos ofertar. Sei como é. Mas não vou deixar de dizer que foi desnecessário atirar no que já havia morrido.

Contaste o número de ligações como uma ofensa, o tomo da proposta como uma barbárie, a busca repentina como um absurdo e esqueceste que as coisas encantadoras, por vezes, nascem assim, como um susto ou uma breve compulsão adolescente.

A primeira parte de tua fala deveria ter me atinado para o desfecho, mas ao contrário, atentou-me para o imprevisto de perguntares pela morte de alguém. E queria que esse fato fosse a mola que garantiria o retorno do investido. Nada feito.

Não faço parte do dia. Não sou desse tempo, felizmente. Ainda não dissequei tua resposta completa porque simplesmente ela supera minhas possibilidades. Talvez tenhas razão, não deverias querer nada comigo. Sou apenas quem cobre manhãs com perguntas sobre teus sonhos e queria ver acordar o dia com teu sorriso.

Acho que o tempo de agora requer uma pergunta diferente para a tua resposta. Algo como: podemos assaltar um banco juntos? Ou mais dentro do que realmente me fizeste sentir: Pra quê humanidade se eu já estou acompanhada?

J.M.N.

Excertos Terapêuticos

Aqui. Hoje

Já somos o esquecimento que seremos.
A poeira elementar que nos ignora
e que foi o ruivo Adão e que é agora
todos os homens e que não veremos.
Já somos na tumba as duas datas
do princípio e do término, o esquife,
a obscena corrupção e a mortalha,
os ritos da morte e as elegias.
Não sou o insensato que se aferra
ao mágico sonido de teu nome:
penso com esperança naquele homem
que não saberá que fui sobre a Terra.
Embaixo do indiferente azul do céu
esta meditação é um consolo.


Jorge Luis Borges

sexta-feira, 13 de maio de 2011

O que ela foi?

Ela me deixou elementos importantes para a noite: cobertura de eras, travesseiro de escolhas, olhos que só acreditam naquilo que a imaginação mobiliza.

Ela veio e saldou todas as dívidas: pagou as contas da padaria, sanou a hipoteca de minha alegria, investiu pesado em aquisição de estima, apreço e outras coisas sobre as quais eu nem sequer pensava.

Ela andou ao meu lado e descobriu primeiro: artigos antigos sobre descobertas científicas, marcas de sangue onde eu deixo minhas saudades, erupções de apocalipse depois que minha paixão acaba.

Ela foi tudo quanto não tive: importância pouca para comprar brinquedos à porta da escola, os cálculos da distância entre aqui e minha infância. Ela foi a estrada por onde eu perdi os guisos e por isso eu agora ando sem fazer barulho, sem fazer presença em lugar nenhum. J.M.N.

Gemido de víscera inconformada

Nasceu-me sob a carcaça este estranhamento, esta peça ensimesmada e controversa. Um zumbido que ultrapassa todos os ventos do mundo e vence distâncias acovardando os mais duros, os mais vividos. Apareceu-me assim meio sem constância. Ia e vinha ao sabor de minhas derrotas. E um dia instalou-se inteira essa coisa sem nome que me causa dores e entrelinhas, que me apavora e descompõe a fronte me fazendo ser novamente um excomungado infante. Nasceu-me por dentro punindo minhas malícias, minhas conquistas pulsáteis. Uma pérola advinda da ferida ainda aberta da madrugada onde a mão do sagrado não alcança. Essa enormidade de desconhecido me aconteceu sem freio, veio arrastando as plantas, encosta abaixo, rumo à cela em que meu grito prisioneiro padecia. Levou-me as barras da cadeia-eu e libertou meus escravos: meu grito, minha pena, minhas palavras todas. J.M.N.

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Palavras de ontem indica

Um fotógrafo:

João Caetano

A cada foto João faz o mesmo voto que Manoel de Barros faz a cada verso, o de enamorar-se repetidamente pelo chão, pelo tronco, pelo rio e pelos pássaros. Quando lhe perguntam qual o melhor equipamento, ele responde que é o olhar. Mas o olhar que se demora e se perde, não esse que busca afoito explicar, assim como quem precisa compreender para se salvar. Ele não tem curso de fotógrafo - talvez pra não colocar aparelhos ortopédicos no olho - mas ganha prêmios, muitos prêmios, todos internacionais, como artista plástico.

O que então a máquina de João Caetano vê que escapa a todas as outras. É a natureza que se insinua pra ele num chamamento ora erótico, ora ameaçador, mas sempre num tom de urgência, com uma voz de quem pede socorro. Ela, a natureza, com troncos desenha-se cobra, lagarto, ariranha; usa o vento pra talhar um velho dormindo na face de uma rocha minúscula; lentamente lapida a resina na forma de um pardal delicadíssimo; os troncos cortados vigiam os nossos mais infames pecados.

Ele tem um projeto onde registra toda a sua conversa de imagens com o cerrado. É o Projeto Alerta ( http://www.projetoalerta.com ). Percam-se nas imagens. WDC

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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Perguntas de Ontem XX

O que fazer com essas perguntas? Como defender conquistas sabendo que tudo vaza e se esvai? Lentamente as bocas silenciam. Esse ritual perpetue de esquecimento e tardes infelizes. Nas manhãs em que éramos, acontecia de tudo. Mil palavras significavam a mesmíssima coisa enclausurada. Uma fúria terçã dentro dos significados. Depois de irmos um do outro, este silêncio. Esta vida desamparada das palavras. J.M.N.

Pergunta de Ontem: O que farás para que tuas palavras sejam ouvidas?

A vida secreta das palavras

Onde elas se escondem quando a gente cala? Ficar em silêncio faz elas desaparecerem ou se ajustarem de uma outra forma dentro de nosso peito? Quantos anos elas podem viver na clandestinidade de nossas cicatrizes? O que grita mais alto quando tiramos a roupa: as marcas da infância ou as palavras que não dissemos? Elas envelhecem? Elas vivem num tempo linear ou estão sempre a se repetir pra que não as esqueçamos? Se elas fossem livres um dia, seríamos pessoas melhores e mais felizes? Dói quando a palavra calada sai? Não seria melhor ser surdo, morar no meio do mar ou no centro de São Paulo pra que o barulho das descargas dos carros ou a constância das ondas calem as palavras que vão dentro da gente? Alguém um dia será capaz de ouvi-las? Nós somos capazes de ouvir as nossas? WDC

 

Cinco memórias fósseis

Primeira

Como um dilúvio me acabou em choro longo a sua morte. Vós que sempiterna me dizia eternidades e resgatava essa forma de vida anterior ao tempo que vai em meu peito. Minha arca regra-se por essa linha líquida da minha terra sozinha, depois de ti. Minha arca ainda espera encontrar o sol prometido e deixar a correnteza para finalmente pisar uma terra firme que seja. Vou, enquanto isso, seguindo astrolábios. Quem sabe volto quando simplesmente me der vontade.

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Segunda

Da cruz que me foi dada resta o corpo do homem que nela morreu crucificado. E se fica só o corpo, só o homem, sozinho em sua essência e paralisia sem a cruz para talhar-lhe a postura – o que fica afinal? Desconfio que este corpo não é mais santo que o meu próprio corpo abandonado.

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Terceira

A velha saiu da casa. É hora de agir. Roubaremos apenas o essencial: biscoitos, seus chalés, suas velas vermelhas de chorar pelo marido. Isso, não! Grita-nos ele, cheio de ética, bem à porta do crime. Fomos empurrando o santinho até o quarto dela. Bem em cima da cama, quando ninguém estava esperando pula um gato. Nosso grito conjunto espantou o animal. Ele que nem queria levar nada, pela raiva do susto, foi logo dizendo: leva tudo que eu aqui não volto. Estava feito um ladrão ocasional. Aquilo roubou algo a nós, mas nisso já não penso desde antanho.

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Quarta

Foi um beijo. De língua e tudo. Foi um roubo afugentado por um badalo de sino. Depois eu soube que era apenas o relógio importado da mãe dela. Foi um susto. Um despertar que dura até hoje. Foi um beijo que durou uma vida inteira, morreu e voltou em forma de passarinhos e letras de músicas que eu jamais tive a coragem de compor. De tarde, sentado no balcão de casa, ficava vendo a vida passar como um preguiçoso qualquer. Ninguém sabia que tudo quanto era pensamento meu tinha um gosto. Não era preguiça, era lembrança. Saudade instalada enquanto eu não tinha medo de nada.

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Quinta

Anônimo. Assim era meu passar por ti. Enquanto estive entrincheirado nas linhas daquela geração que me precedeu e deu tanto, fui quase um caracol, cujo tempo se escreve em séculos. Mas ai, morri pela primeira vez e tive de reconhecer, com certa dor, que meu silêncio seria apenas um culto ao anti-eu. Ai me descobri. Nos risos delas, dentro das suas unhas, pelos potes de maquiagem. E virei isso que se emancipa agora. Um cordeiro que fugirá sempre do aguilhão do carrasco. Benevolente, mas conspícuo. Um ser apenas. O qual quero que conheças agora.

J.M.N.

Para Conhecer: Thiago de Mello

 

A fruta aberta

Agora sei quem sou.
Sou pouco, mas sei muito,
porque sei o poder imenso
que morava comigo,
mas adormecido como um peixe grande
no fundo escuro e silencioso do rio
e que hoje é como uma árvore
plantada bem alta no meio da minha vida.

Agora sei as coisa como são.
Sei porque a água escorre meiga
e porque acalanto é o seu ruído
na noite estrelada
que se deita no chão da nova casa.
Agora sei as coisas poderosas
que valem dentro de um homem.
Aprendi contigo, amada.

Aprendi com a tua beleza,
com a macia beleza de tuas mãos,
teus longos dedos de pétalas de prata,
a ternura oceânica do teu olhar,
verde de todas as cores
e sem nenhum horizonte;
com  tua pele fresca e enluarada,
a tua infância permanente,
tua sabedoria fabulária
brilhando distraída no teu rosto.

Grandes coisas simples aprendi contigo,
com o teu parentesco com os mitos mais terrestres,
com as espigas douradas no vento,
com as chuvas de verão
e com as linhas da minha mão.
Contigo aprendi
que o amor reparte
mas sobretudo acrescenta,
e a cada instante mais aprendo
com o teu jeito de andar pela cidade
como se caminhasses de mãos dadas com o ar,
com o teu gosto de erva molhada,
com a luz dos teus dentes,
tuas delicadezas secretas,
a alegria do teu amor maravilhado,
e com a tua voz radiosa
que sai da tua boca
inesperada como um arco-íris
partindo ao meio e unindo os extremos da vida,
e mostrando a verdade
como uma fruta aberta.

(Sobrevoando a Cordilheira dos Andes, 1962)

Poeta Amazonense de Barreirinhas, autor do fantástico Estatutos do Homem, aos quais convém procurar e celebrar

Para Conhecer: Félix Pacheco

 

Símbolo d’arte

Se o meu verso não fora o agonizar de um lírio,
E o suave funeral de um crisântemo roxo,
Diluindo-se, murchando, à vaga luz de um círio,
Entre o planger de um sino e o gargalhar de um mocho;

Se, essas flores do mal, em pleno desabrocho,
Eu não sentira em mim, num êxtase e em delírio,
Meu orgulho de rei julgara vesgo e frouxo,
Pois a glória de um sol não vale esse martírio.

Se, na terra que piso, algum prêmio ambiciono,
É o deserto, a cabala, o claustro, a esfinge, o outono,
O calmo encanto da noite e a augusta paz da morte...

E o meu símbolo d'arte, o ideal que me fascina,
É a tristeza a florir a graça feminina,
Como um farol pressago a iluminar o norte!

 

Do cimo da montanha

Musa, pára um momento aqui, musa severa!
Olha deste alto cimo a Pátria, o Sonho, a Vida...
Mede toda a extensão imensa percorrida,
E o presente, e o porvir esmiúça, e considera!

Interpreta, na estrofe, a saudade sincera,
E realça, firme, o traço à página esquecida!
Canta a luz que te doura, e estende-a, refletida,
Sobre os rincões natais, que tua alma venera!

Mas grava tudo lenta, unindo, com orgulho,
O esto dos palmerais, e a harmonia dos trenos,
Como na relação do efeito para as causas...

Junta o carme à epopéia, enlaça o grito e o arrulho,
E os quarenta anos teus se fixarão, serenos,
Num longo beijo quente, ampliado em sóis e em pausas...

(poeta piauiense do século XIX)

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Retratos

Em janeiro de 2010, o Palavras de Ontem foi convidado a apresentar vários textos para a edição daquele mês da revista Latitude, do Hangar – Centro de Convenções da Amazônia. Àquela altura, a revista era capitaneada pelo querido amigo Bob Menezes e assessorada pela queridíssima Tainah Fagundes, que agora cuida do espaço Benedito Monteiro da Livraria Saraiva. Este texto foi feito para uma série de retratos feitos pelo Bob, dentre os quais o de um trio de irmãos que iam passear pela cidade num sábado ensolarado. Este e outros textos, por razões de delírio editorial, não foram a público. Vai agora…

 

Caras e bocas e memória. Peles de cores várias. Estaturas, estilos de roupa, normalidade, vanguarda. Passos rápidos, passos lentos e o poente a banhar-se na Baía do Guajará iluminado os rostos que visitam a orla. Belém das etnias, dos contrastes máximos. Belém da cor da história. Muitas vezes esquecida, tantas outras, renegada. Sua gente resiste e vive contrastando com a cor das frutas e das árvores, banhando-se na chuva das tardes desses janeiros. Não se cansa de sorrir ao mundo. Adora retratos e a intimidade momentânea do turista. Belém com suas portas abertas e pessoas a contar as novidades do bairro, a criar mitos e personagens. Sagrada Belém das igrejas escondidas, dos novos edifícios, das esquecidas antiguidades. Tradições à parte, Belém da adoração pelo imprevisto, pelo inusitado sangüíneo dos filhos adotivos. Sua gente é feita de lusa matéria, mas também indígena, negra, fratella e vai se misturando mais ainda. Gerando filhos próprios daqui. Belém dos poemas e das lembranças. Em cujas ruas se descobre a graça do olhar das meninas, a vida transcorrida dos maduros e a renovada alegria de quem vem e enxerga com fino olhar, as muitas belezas de sua gente. J.M.N

De te fabula narratur

Não era uma densidade miúda, incontável pelos aparelhos terrestres seu beijo ou sua simples presença no ambiente. Era um desalentador presságio de incômodo, de loucura e morte, como cancros recém-despertos por todo organismo. Sobre sua presença, a multidão falava quase como aquele diagnóstico nefasto, está entre nós, temos pouco tempo de vida.

Era assim que se construía o ferrão da ilusão de sentidos perdidos por sua simples existência entre nós. Todos os pecados redobrados e sessões de cura espiritual fora dos limites da cidade. As senhoras ostentando cada vez mais brilhosas alianças e pérolas dadas pelos maridos. Como se fossem as joias, certificados de amores luzidios e santos. Antes disso, a reprimenda antecipada, pelo aponte do desejo que agora havia se materializado nela.

Nada disso dissuadiu-a de ser quem era. Uma força cósmica com pés sentados na terra. Bem no meio dos corações perdidos de minha cidade natal.

Ao que se conta, depois de ela partir com seu escolhido, todas as festas perderam a revolta silenciosa das senhoras casadas. Os maridos não se sacrificavam tanto para ir à missa dominical e por fim, os jasmineiros de Calcaia, de onde ela colhia as flores para seus perfumes, começaram a dar menos cheiro.

Os sentidos da cidade, afinal, deixaram de responder às mesmices. Tornou-se impossível viver sem a lembrança dela na cidade. J.M.N.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

O tempo e mais nada

Ao meu inimigo o aviso de um ponto final. A hora justa de saber sobre o fim. Em juízo conciliamos os momentos descompassados. Ele com sua derrota ainda pesando nas costas, moral decaída, fama a levantar. Eu, por meu turno, caminhando inquebrantável, a sair da cidade, passando por seus soldados que esperavam o retorno de seu general.

Ele veio apenas como um homem. Elegantemente caminhando a passos decorativos o mesmo caminho que irrompera como um galgo arrogante, agora mordendo os lábios sem saber por onde voltar, o que fazer para recomeçar seu império.

E quando nada mais tinha do pó daquelas estradas que lhe expulsaram da trilha triunfal das conquistas, olhou para trás se sentido apenas cansado, ultrapassado pela certeza que lhe nascera durante a batalha. A maior derrota, padeceu antes mesmo de sair de casa, quando planejou tomar outro reino totalmente sozinho, impunemente vazio de sentimentos dentro de si. J.M.N.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Sem pudor e sem pecado IV

De noite ele cheirava a rua. Tinha um ar de concreto. Cansado, enfadado pela rotina. Chegava e tomava banho. Passava uma hora inteira até que ele me aparecesse com um ar renovado. Eu ficava esperando ao pé da escada. Um sentimento de urgência. Os braços abertos esperando o que quer que ele viesse me oferecer. E a casa começava a recender a sândalo, cabelo molhado e a roupas recém-tiradas do armário. Seu abraço era macio e envolvente como nenhum outro. Rápido me suspendia no ar e me fazia serpentear como se eu fosse dona de toda a sua atenção. Demorei tanto tempo para encontrar essa mesma sensação em outros braços. Demorou mais tempo ainda para me convencer que jamais seria dona de nada. Como não sou dona de mim. Mas aquele cheiro de amor e entrega paira e me fortalece. Todas as vezes que eu estou apaixonada é disso que me lembro. É isso que busco. Com a força de quem busca a salvação. Amor como aquele, jamais haverei de querer maior. J.M.N.

Sem cabimento

Não era pra ser. Acabou antes de começar. Tantas coisas que eles nem puderam fazer. Esses elementos ansiando que nós falhássemos. E demos motivo. Alguma novidade? Apenas a manhã esperando fria, o desencadear desse silêncio. Agora não dá. Espera mais um pouco. Vamos fazer os planos certos. E existe esse tipo de coisa? Nunca parei para perguntar. Agora não há mais pressa. Agora não tem mais esperança. A manhã sambando bem na cara da gente. Pessoas rindo do insucesso. É isso ai. Tens mais alguma coisa para dizer antes do fim? J.M.N.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Capsula pedral

À guisa de infinitos sentidos bem dentro.

Envolto no corpo da pedra, quieto, enlevado por silêncio e calma. A pedra se consuma infinitamente sobre meu aspecto e liga. Sou um cobertor biodegradável para ela.

O verde me acompanha de perto, quer tornar-se história da pedra a qual encapsulo. Mostro o leite tirado das suas eras. A pedra me retribui com uma buganvília caída ali perto.

Em estado de para sempre é que amorno meus dentes que se abrem às vantagens da vida. Sou da pedra, momentâneo infinito parado na terra. Quem me morde é o ar de em redor.

Nada prende essa instância universal de todos os caminhos – a pedra. E, no entanto, ela dura o tempo de uma perda ou um amor e mais a frente. Deixo-a agora sob a lua que se pende nela.

Eu desgarrado dela, não fujo, não faço cena. Ainda estará quando arco-íris e potros desvendarem a vida. Vou andando bem quieto...

... que essa possibilidade de tranquilo, nasceu naquele abraço que parecia nunca terminar entre a gente. Foi a pedra e sua sabedoria que abriu o caminho em que vou agora. J.M.N.

De olhos bem abertos

O canto era como um imenso choro descendo a estrada. Muitas vozes tristes, porém não apenas por aquele momento. Eram tristes as vozes desde sempre. Desde que nasceram as pessoas que as tinham, que cantavam naquela manhã fria no interior do sertão cearense. Eram vozes que se arrastavam no tempo, desde que os avôs e bisavôs daquelas pessoas foram esquecidos pela água no sertão.

Aquilo pode fazer um bruto morrer de pena. Aquelas vozes escorridas na tristeza que vinha antes delas. Vozes que tinham entidade própria e que pareciam estar muito além daquelas mulheres que as portavam. Aqueles finos elementos de carne e humanidade. Perdidos nos confins daquele sertão e marcadas para sempre nos juncos de seus sonhos mais sozinhos.

A cantiga tinha as palavras adeus, vida, amor, saudade e morte. A cantiga entoada como uma argamassa de serenidade naquele desespero que era viver de pó e sapos, do sertão. A cantiga estava agora em todas as casas, em todas as vozes e mesmo aqueles que eram de fora, saíram às ruas para cantar e de olhos fechados, pedir aos seus deuses, santos ou ancestrais que olhassem por aquelas vidas tão finas que andavam num cordão de despedida, rumo ao cemitério da vila.

E foi então que ele viu a razão do canto chorado, da passeata com dor franzina que aquelas mulheres faziam rua acima. Os homens na roça se acostumaram a precisar de apenas mais um dia suado e duro para esquecer o acontecido. Era comum. O que ele vira, a criança morta nos braços de uma mãe tentando resistir ao vício de enterrar seus rebentos. Aquele vício que a falta de tudo lhe dera. Ela cantava sem lágrimas, puxando o cordão de vozes até a cova pequeníssima.

A criança de olhos bem abertos parecia escutar a cantiga que ia ficando compacta enquanto tantas vozes se somavam aquilo que se tornara uma perda de todas as mulheres da vila. Apenas mulheres se arrastando. E crianças que ainda não caminhavam direito, indo ao encontro da terra grená, desatentos ao corpo inerte que servia de razão para a cantiga que agora comia a fraqueza dele e o fazia entender o que era a morte e o que era a vida.

Quando tudo sumiu no silêncio da tarde, atreveu-se a perseguir a mãe e dar-lhes os pêsames. Ela o olhou de baixo a cima e disse: precisa não moço, essa tá nos braços de Deus. O burro da cidade ainda a tentar entender as compensações do lugar, perguntou à mão porque a criança ia de olho aberto à sua cova – nunca fez mal a ninguém, não teve tempo, ganhou direito de ver Deus olho no olho.

Elementar a pureza da resposta. A vida lhe pareceu ainda mais cheia de mistério e a cantiga que aprendera naquele dia de morte, salvou-lhe do desespero muitas vezes nos anos seguintes. Tinha as palavras adeus, vida, amor, saudade e morte. J.M.N.

Micro-romance XI

Durval Pedro duvidava que ela teria coragem de ir contra seus pais. Apesar disso, esperou na volta escura da estrada, na noite combinada, na hora exata por Patrícia. Ela deveria aparecer de vermelho e segurando uma pequena lamparina de mão.

Passou a madrugada ao relento. Repetindo que jamais entregaria o coração novamente e que todas as mulheres eram mentirosas e fracas.

Caminhava ofegante de raiva pela rua principal de Cascatoal, quando percebeu uma comoção generalizada. Muitas pessoas corriam em direção a um ponto que ele conhecia bem. O número 34 da rua Mãe de Deus.

Desde a cabeça da rua pode ver que todos choravam e quando a multidão o avistou passou a gritar seu nome e lançar todo tipo de detrito. Foi quando decidiu correr para fora da cidade e a multidão foi atrás.

Correu por doze meses sem parar e quando já acreditava que não tinha perigo atrás de si, parou num bar para beber água. Foi quando Gusmão, irmão mais velho de Patrícia apertou-lhe a garganta e olhando-o no fundo dos olhos, disse: ela matou nosso pai. Disse que o fez por que te amava. Agora é sua vez de perder a vida.

Durval Pedro não pôde deixar de sorrir, mesmo com avida se esvaindo de todos os seus músculos. Quando sentiu que a gravidade era a única saída, deixou-se cair e começou a cantar baixinho, a música que fizera a Patrícia.

Ela, afinal, era o grande amor de sua vida. J.M.N.

Palavras de Ontem indica…

Um livro

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Infeliz coincidência com sua morte, esta indicação servirá também como homenagem.

Antes del fin (1996/2002) é o livro-testamento do grande Ernesto Sabato. Autor de obras ficcionais incríveis como o Túnel (1948), Sobre Heróis e Tumbas (1961) e Abddón, o exterminador (1974), o escritor argentino nascido em Rojas, encanta pelo profundo humanismo demonstrado nas páginas deste livro, assim como uma utópica (e para ele, imprescindível) defesa do resgate da profundidade das relações humanas, da contemplação do belo, da busca pelo divino.

Em pouco mais de cento e setenta páginas, lê-se um Ernesto pleno de seu estilo ora ensaísta, ora romancista, ornamentando as sequencias de descobrimentos e reflexões sobre si mesmo e sobre o mundo com pérolas delicadíssimas como na sequencia em que descreve, logo no início do texto, “as modestíssimas mensagens que a divindade nos dá de sua existência”.

Mais adiante tão comovente como reveladora é a passagem em que o autor declara acordar sempre sobressaltado durante a noite, apensar naqueles que já foram, a ter como certo de que sua alma foi limpa pela experiência da ficção e que quanto mais pensa sobre os caminhos sombrios para onde segue a humanidade, queria ter mais tempo e forças para envidar novas ficções que o ajudassem a enfrentar a marcha.

Ernesto fala de sua educação, da relação com a mãe, de sua profunda dúvida em relação às políticas extremistas de qualquer país. Fala sobre seus sonhos de juventude, de um certo desapontamento com as figuras icônicas de sua geração e de sua profunda preocupação com a falta de sonhos e utopias das geração atuais.

Apesar disso, em nenhum momento, seu pessimismo descritivo se separa totalmente de sua veia de romancista e ao recobrar a beleza de suas memórias com o encantamento de passagens escritas como se feitas para prêmios literários, ficamos com a certeza da grandeza de pensamentos deste escritor que, com toda certeza, embarcou de volta no trem de sua infância, deixando-nos a todos um legado que deve ser intensamente revisitado e compreendido. J.M.N.

Morre Ernesto Sabato!

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A literatura mundial fica sem mais um de seus grandes representantes. Ernesto Sabato morreu sábado, 30 de abril, prestes a completar 100 anos de vida. Nascido em Rojas, a 24 de junho de 1911, Ernesto seguiu sendo assim chamado por conta de um outro Ernesto (provavelmente um irmão de sua mãe), morto no exato dia de seu nascimento.

Em seu livro-testamento (Antes del fin, 1996/2002) diz ainda ter nascido no mesmo dia de San Juan Bautista e que, como em sua infância, parecia estar sentado no mesmo banco esperando o trem que o deixou em La Plata para estudar, busca-lo e leva-lo de volta a sua mãe, Juana María.

Mais do que um escritor brilhante, Sabato era um pensador ativo e sua obra ensaística é extensa e profícua. Seus livros constam entre aqueles que permanentemente estão em minha cabeceira, especialmente Sobre Heróis e Tumbas (1961) e agora, recém lido e relido de uma só investida, seu maravilhoso Antes del fin.

Qualquer homenagem seria pouco a quem como Ernesto, defendeu os direitos humanos, participou ativamente da luta contra a ditadura na Argentina e, mas do que poderia medir, influenciou legiões de escritores e amantes da boa literatura.

Palavras de Ontem finaliza esta nota de pesar com uma citação sua, não apenas por mera formalização de despedida, mas por crença pessoal e por admiração profunda:

“Só os que são capazes de encarnar a utopia, serão aptos para o combate decisivo, o de recuperar quanto de humanidade tenhamos perdido” (Antes del fin, p. 172, tradução própria). J.M.N.