segunda-feira, 28 de março de 2011

Os marcos do caminho

“Para me endireitar
para fazer jus à saudade
para praticar verdades
nas linhas dessa
vida demais.”

Poema 1 - Poemas que não nasceram

Não tenho fotos com pessoas sorrindo ao meu lado. Acho que larguei as razões entre minhas bagunças, nos cantos da casa. Na gente deu uma loucura de andar entre as trevas, como naquela canção de Francisco. Sob os beijos trágicos, nossas indulgências aconteciam e íamos matando aos poucos o mau hábito de não olharmos pra nós. Ainda que tarde, ainda que mortos, coubemos nos sonhos um do outro. Essa força mágica que angaria temas até os dias de hoje e te faz odiar-me florida e docemente como uma doença que encanta e me faz te querer com raiva e rudez, como uma fuga platônica da realidade que já não nos pertence. Queria recriar o espírito e dar novos tiros em Marte. Pular tuas cercas, atônito, invadindo os quintais da tua tristeza. Apenas para dizer que perdemos o rumo, apenas para comer as pitangas que nascem suculentas quando chamo teu nome. Meu bem, eu queria mais um pouco do que fomos, não para a eternidade prometida, mas para queimar uma pilha de amores modorrentos, com aquela nossa obscura força tectônica de carne e tragédia e sangue trocado nas veias da gente. J.M.N.

Trilha sonora…

Sem rebeldia

Por todas as coisas estúpidas que escrevemos
depois de sentir demais. Ou vice-versa!

Quem diria que eu pediria misericórdia.
Não dava nada pela menina e agora não sei se vivo sem ela. Ela não se rendeu jamais e eu tive que incluir uns três capítulos na porra do livro só para falar de uma estranha. Isso antes de nos consumarmos, é claro.
Primeiro de tudo: não sei como dizer adeus em polonês e nem sei se quero aprender. Segundo, o livro do Isidore Ducasse não me sai da cabeça...
As tais rebeliões internas e coisa e tal, e os personagens se misturando uns com os outros feito líquidos instáveis. Terceiro - e pior. Todo dia, as seis da tarde, tê eu em pé, na porta do trabalho dela, esperando ela sair e me dar o primeiro beijo do dia. Já se foram quinze e cada vez que os conto - os beijos - perco um pouco do auto respeito e vivo para esperar o dia seguinte.
Tudo tem sido estranhamente desordenado e sincero entre nós.
Mistura de desatino com ficção barata e flores roubadas das cestinhas matinais dos cafés da praça central. - "Teu cheiro amor". Nem é assim.
Ela tem problemas em me entender e isso deixa as coisas cada vez piores.
Tanto melhor, pois vai chegar o tempo em que eu também não vou mais querer entender nada e ai... Perfeição. Nada mais.
Dez pras seis.
To eu aqui. Na frente do trabalho dela. Um frio de rachar. Nem escuto mais os meus segredos e minha própria intimidade. Deve ter se extraviado e pulado para junto da intimidade dela numa das nossas noites intersticiais.
As vezes, também, penso que posso pensar por ela, mas quando dou conta... O contrario. Só o contrario.
E se for assim?
E se eu estiver estabelecido na certeza dela como nem eu mesmo sei se posso estar na minha própria certeza?
Já se cantava ha tempos: quem tenta fugir faz sempre o avesso. Então...
Só tem outra coisa em que penso tanto quanto nela.
Na escrita. Na literatura. Nos romances escritos vidas antes de nós.
Talvez isso venha em primeiro lugar. Talvez.
Sísifo e seu trabalho. Eu e minha ânsia. Subindo e descendo as costas de Anna.
Uma vez mais.
Um dia mais.
Como qualquer amaldiçoado que não tem futuro e talvez, pior, tenha tido seu passado anulado por uma maldição bizantina. Tempos antigos e arremedo das lembranças também fazem parte do jogo.
Nem fodendo eu caio na tentação de ser perpétuo para ela. Ela que se vire para eu querê-la para sempre.
Quer saber?
Foda-se suas costas perfeitas.
Seu silêncio que me intercala melhor do que o melhor dos interlocutores.
Adeus – em português mesmo – para a pintura que começamos ontem na parede de seu apartamento e nada mais de café sem açúcar. A fortaleza da vigília que tome outro rumo.
Seis da tarde. E eu aqui.
Parado na frente do trabalho dela.
O primeiro beijo do dia. Já são desesseis.
Posso, enfim, inaugurar a espera pelo dia de amanhã.
- Vamos pintar hoje? Ela pergunta num abraço.
- Claro! Comprei o azul turquesa que você pediu.
Eu sou um mentiroso. E um fraco. Não disse uma palavra.
Não antecipei nenhum dos seus gestos.
Tô quase congelando para fazê-la quente e não dou a mínima para minha
faringite que só faz piorar. Não me rebelei em voz alta. Não disse não a essa quase dependência. Mais um dia. Menos de mim para os outros.
E por mais hoje. Só mais hoje. Um foda-se para todos os escritos. Eu quero a carne dela. J.M.N.

O homem que não tem fim

Para C.S. Lewis

Perpetuou-se enfim. Engendrou frivolidades e competências na mesma medida. Espaçou a tomada de consciência sobre o que ficou para trás. Usava-se do passado nos banhos noturnos e lá somente. Ampliou-se nos ritos oníricos. Fez marcas na areia molhada e nela se desaguou, antes fonte, líquido. Remodelou ofícios a se adequar para ela e se misturou, entre prudências e desmesuras, ensejando horizontes, uma outra atmosfera. Quis a pele e a tristeza dos dias descalços, feito os andarilhos atrás de anciãs esperanças reacendidas. Foi na tropa que abriu o caminho. Enfeitou pontes pelo prazer de embelezar as passagens que unem e desfilou impávido por entre os vários mundos que conquistou. Contorceu-se em risos brancos e com sol. Estava mais amplo na hora de se ausentar. E se untou com o cheiro dela, múltiplo que era das coisas do coração. Na estação certa se entregou qual tempestade e banhou lugares ermos porque já podia instigar o cio. Feneceu amado e tornou-se um lume. Híbrido como merecia, pois intricado nos fatores dela. Um homem de peito completo e querer desmedido, que já não está, mas refere-se. Homem que não é mesmo um, que se redobrou, encantado, em vias lácteas celestes, um sem número de vezes, enganando um fim, que não lhe chega jamais. J.M.N.

Meteoros

Havia meteoros caindo sobre a cidade. As explosões rentinhas ao chão. Alguns chamam estrelas cadentes, mas a morte das estrelas é bem longe dos olhos. Não havia barulho, destruição. Era como um choro sideral que encontrava o chão. Lágrimas astrais arrebentando incríveis contra o chão do lugar. Aquelas luzes não traziam presságios, exageros. Do avião sentia o perfume da terra, as estranhezas do olho cumprindo saudades secretas. Todas as outras luzes a mercê dos astros que explodiam. E senti os megatons de força. O impossível da amplidão que entrementes vem em mim no silêncio do medo de dizer ou sequer admitir, que ainda preciso dela para me convencer que existo. Vi a pista de pouso com suas luzes artificiais indicando que a viagem acabara. A ausência nasceria mais uma vez, com sua face de escrava, cuja esperança é ver os outros mantidos, presos ao um destino comum. Ausência de furor, de agudez. Em minha cidade findaram meteoros extraviados que reinaram nos olhos de uns quantos, que formaram a história do cosmo e no fim da pista de pouso, viagem morta, o pequeno sonho que vinha acontecendo em mim, tomou o mesmo rumo dos megatons liberados. Eu finalmente senti o peso de chegar àquele lugar sem a força do pensar que me aterrava, que me fazia reconhecer precisar dela me esperando com o peito em brasa, uma brasa mais celeste que a dos astros derretidos. Chegar nesse lugar sem ela é como não chegar a lugar algum. É como um corpo celeste que cumpriu seu rumo e encontrou o leito frio de um imenso rio, molhando-se e apagando-se para nunca mais. J.M.N.

sexta-feira, 25 de março de 2011

En último mes

Para minha querida amiga Noemi Cubas, com saudades.

En último mes, día treinta, como es mi costumbre yo fue hasta el puerto, pero non adelante. Non aquello desembro. La mar se fuera de min, aquellos días. Yo estuve en las planicies, pero non adelante en el horizonte incierto. En los espacios infinitos que me causaban tus ojos amarillos y serenos, tu voz sumida y la calmaría de tus brazos. Yo estuve en tus labios, pero non estuve solo. Muchos otros labios estuvieran entre nuestros besos. Yo estuve maldito. Un rasgo en la eternidad prometida. Yo estuve en Granada y Sevilla, ornando mis pensamientos de contos y amores turcos. Piedra, prisión, captura de mis pasos y respiros. Hasta el Sol estuve ausente aquellos días de derrota. De sentimientos encorralados. En que estuvimos distantes, represados en nuestros odios densos. En locuras enredadas en las calles del campo lleno de otros quereres. Estuve en espera. Quedado. También a procura de nuevos caminos. Un infierno de solitud e tierras mojadas. Sin tus cantos yo no soy nada. Sin las ondas e ares de la mar, yo no se antever pasión o gestos largos. Soy pequeño, encarcelado. Hoy, estuve nuevamente en el puerto y escribí estas palabras por sobre la rampa de subida, la puente entre aquí e otrora. Estuve diantre de la mar e ella cumplió su sacramento en mi alma. Escribo estas palabras mirando el norte, lejos de distancia de ti y de min. J.M.N.

O despertar do poema

O poema acorda
Feito as sementes da sesmaria
Investidas dos coros e canções lusidias
A embalar as dores para além do chão

O olho escuta
As miragens distintas do teu corpo
em riscas desferidas por pincéis azuis
Como se fosse natural este tipo de perfeição

O julgo despede-se, reverte-se num apelo
Como se as provas não fossem evidentes
E demasiado puras,
fossem as coisas que me disseste anteontem

O poeta cria
Refeito dos abismos antigos
Nascido de ventres novos e coxas graudas
Como se fosse o mais novo inquilino

Da casa que antes fora só tua.

J.M.N.

Memórias Paternas 6

Um dia desses...

- Sou um inútil!
- Para com isso, sei que jamais disse algo para que pensasses assim!
- Cheguei a essa conclusão sozinho, não faço nada direito.
- Não queres fazer! Isso é outra coisa!
- Como é que eu faço pra querer pai?

Não soube responder. Mas fiquei com a impressão de que a resposta correta tem alguma coisa a ver com a falta. Como escolher o que deixar de lado aos quatorze anos?

J.M.N.

Criatura

Ela não anda, ela baila. Destila fineza nos passos, onde quer que esteja. Atrás de si uma penca de olhos admirados. Esses olhares não têm sexo, não encontram rumo, sabem que desejam. O que desejam? É uma incógnita. Talvez alguma coisa, dentro deles mesmos. Tão usual como o sangue correndo nas veias, tão inerente à fisiologia como o peristaltismo e a regulação da temperatura pelo suor. Sabem que depois de ela passar as coisas estão do avesso. Contrárias em si. De dentro pra fora. Ultimando as expressões de querer e ter raiva em admitir que tudo o que ela causa é demasiado para sua estrutura humana tão simples. Uma força da natureza evocada apenas em determinados ambientes. Esses lugares são ultrajantes, são perigosos para os instintos simplificados pela vida diária de trabalhadores e trabalhadoras que não pensam em mais do que ter um salário no fim do mês. Vai além das aspirações de carreira, de subir na vida, de aprender uma nova língua e sair daqui. Depois que ela passa é tudo cinza e destemperado. E a gente fica esperando que venha de novo. Arrancar as cabeças pelos movimentos tão bruscos, abrir lugares na existência, os quais, acreditávamos, não estavam à nossa disposição. J.M.N.

Trilha sonora…

terça-feira, 22 de março de 2011

Lavadeira

Para Raimunda Olivar, lavadeira em São Geraldo do Araguaia

Na beira do rio ela batia a roupa na pedra. E cantava. Aquelas músicas antigas, como cantavam a mãe e a avó. Cantava Que tem Maria?, Navio no mar, Iemanjá eu virei rainha. Cantava com a força toda da garganta. A roupa batida era colorida, as brancas ela esfregava na bacia, com pouquinho de água rás. Junto com a força de lavar a roupa vinha essa força como que de falta, como que de fúria calada por alguma coisa que o mundo lhe fez. Mas não era. Porém a pedra devolvia em resistência, desgastando a roupa mais cedo. Vestia suas saias puídas e ia para a quermesse. Mas ia acompanhada pela família, andava entre as barracas, fazia adeus aos amigos da praça e rezava para Aparecida. No outro dia, era dia da roupa alheia. Raimunda cantava bonito, embalando as outras bocas que cantavam e lavavam roupas e corações no rio. Foi quando eu andava lá pelas divisas do meu lugar que eu conheci Raimunda. Pediu minha camisa para lavar e disse que o faria no dia seguinte, na beira do rio. Quando ouvi aquela mulher cantar, tive certeza de que estava escutando reza, de que me subia uma esperança pelo peito. Batendo minha roupa na pedra, Raimunda me mostrou que ainda existe gente que canta, ainda existe gente que usa a voz para ter força no mundo. J.M.N.

Sem pudor e sem pecado II

Toma, engole essa reza, para com os mitos, me abraça e acaba com esse inconveniente que me impede de ser tua. Que casamento nada! Te quero agora, senão nunca mais. Com força para não ter dúvida. Entra em mim de uma vez seu estúpido. Já estás nos meus poros, na minha língua, na minha saudade que não consegue sustentar essas semanas sem te ver. Que queres que eu diga? Que não desejo? Como assim o que é isso, porque agora? Não é de agora. É de sempre. Ando tua desde o primeiro beijo, ajeitando minhas partes de mulher para não acordarem diante da mamãe, diante das pessoas da tua casa. Mas não aguento. É esse toque que me preenche. Não tô pedindo nada de graça. Pelo contrário, vou te cobrar abraços, anos de carinho, nada mais. Apenas enquanto me quiseres, pois não quero querer sozinha. Apenas porque sei mais de mim, não quer dizer que sou perigosa. Sou essa pessoa que descobriste e cuja vida apontou para esse momento. Ou sou tua hoje, ou entrego essa vida para outra pessoa que não vou deixar ninguém me dizer quando e como eu devo amar. J.M.N.

segunda-feira, 21 de março de 2011

The shape of my heart

Para Clara, também juntando uns pedaços

Meu coração de novelo e cicatrizes cansou. A olhar para essas marcas peço que ele me deixe contar os anos que ainda tenho. Se for possível um cruzeiro pelas ilhas gregas e aquele mar azul que eu vi nas fotografias. Olha o céu passando num azul de depois da tempestade, aquela imensidão que me espanta quando olho atento. Fico feliz pelo espaço ocupado dentro do meu peito por este coração reconstruído que me deram às portas da desistência, quando não tinha mais quase ninguém na fila para apanhá-lo. Enquanto aquele ano estava coberto de neve e as cores do que sou e sinto não apareciam por que eu estava acostumado, tantas coisas se passaram por fora desse meu músculo vagabundo e recauchutado. Microcirculações, ideias suicidas, gordura nas veias e dores irradiadas ao braço esquerdo. Como em presságios o cara bate em ritmo de entrega. Agora cede, é o que eu sempre digo. E ele cumpre a ameaça. Quando olho esse coração tão cheio de marcas pelo sol do dia em que vive exposto, tenho saudade de um tempo em que se escondia, mas não, não trocaria hoje por nada. Mas, por hora, se houver alguma crescendo e que possa ser chamada de amor, peço que não cresça e se eu encontrar que me tira o ritmo das pulsações do peito por agora, não me deixe mostrar o que ainda cresce por dentro de mim, ok. J.M.N.

Trilha sonora By Noah and The Whale…

Topografia

Por qualquer lado que a gente jogue o olho, aquele lugar é um lugar triste, sem tempero, sem as fases da lua para dizer se haverá maré ou peixes que pescar no dia seguinte. Não tem mais cheiro e não se ouve pássaros batendo asas e cantando o que cantam os pássaros na hora de voltar para casa. Eu diria que é um canto do universo que só aqueles mais sozinhos visitam quando em seus passos iguais e monótonos, pois caminhados sozinhos, se cansam. É um intervalo entre qualquer retidão de caminho, aquele lugar tão cheio de nada e com nada parecendo, pois as formas e as cores deixaram suas vidas ali e foram tomar desenhos e formas e paisagens em outros lugares mais ajeitados e condizentes com seu colorido.

Eu tento chamar aquele lugar de um nome, mas ele não atende. Tento que outras pessoas se acheguem e deem um pouco de esperança aquelas pedras que vicejam cheias do pó de nada que ali se multiplica. Mas a verdade é que esse lugar se encontra muito além dos lugares com nome e muito aquém da vontade de ser habitado por gente, por qualquer gente que como homem e mulher e filhos e bebês de colo, vivam seguindo suas vidas retas e com destino pronto em promoções. Aquele lugar dá um novo sentido aos lugares do mundo inteiro que tão pouco se acham nos mapas e têm tão pouco de memórias quaisquer que sua geografia parece um desenho abandonado num pedaço de papel muito branco e sem dono.

Eu de fato não sei explicar como aquele lugar tomou conta do que antes estava ali e se chamava por um nome que agora parece impronunciável. Porém tenho que cumprir o destino do narrador e dizer a todos que este lugar come os sonhos da gente, mofa as lágrimas pelas alegrias que passaríamos. Esse lugar toma o tento da gente se a gente não se esconde rapidinho. Seu mapa mostra o avesso do que foi um dia. É uma topografia nula daquilo tudo que acordava e dava um contorno alegre aos nossos dias.

Apesar de tudo fiz uma placa para esse lugar tão dentro e tão fundo das minhas coisas de agora. Escrevi bem grande com letras negras e bem desenhadas um nome nessa placa. E esse será o nome do lugar de agora em diante. Seguirá por muito tempo tendo esse nome pintado em preto bem na sua entrada, o lugar. Esse nome que me enche a boca de água e saudade, que me engasga por ser tão presente e difícil. Porque tem coisas que mesmo ausentes ou acabadas, mesmo sem forma ou geologia dão uma imensa saudade e se apossam de incontáveis alqueires bem no meio da terra da gente. J.M.N.

Antes de dormir

A casa cheira a vultos. Não são de ninguém, esses ectoplasmas.
No entanto, amadurecem, à medida que dou passos para dentro dos cômodos vazios. Olho-os com olhos lassos. Há indulto e cansaço nesse pé-ante-pé no qual me conduzo.
Vou lembrando planos, memórias gastas, algumas anestesias e muitas culpas. Porém nenhuma que me seja única e tão imensa que me impeça de continuar os dias.
Os vultos são sombras de objetos derrubados. Uns sobre mim mesmo, outros sobre a mesa da sala de jantar. Todos são fragmentos de história, iconografia perfeita para romances e anedotas. Sou cercado por eles. Sou interrogado. Entre medo e desculpas eu me vejo sozinho novamente.
E respondo que esse sou eu. Um modo gasto de dizer as mesmas coisas de sempre.
Aprendi que é isso que se deve dizer – a verdade: e este sou eu inteiro, volto a afirmar. Não ser ninguém não cabe agora. Sou alguém que matou mais um, que tem mais uma bala na agulha.
Sou quem espera para encontrar felicidade num copo de leite gelado madrugada adentro e nas linhas que ameaçam se tornarem mais eu do que nunca.
Mais um malandro morreu.
O tiro fui eu quem deu.
Sinal da cruz pelo defunto. Comes e bebes por eu voltar a Santana e seus moradores de mentira.
Estou entrando pela janela do tempo, porém esta é minha casa, digo ao espelho.
Ninguém se lembra de mim.
Os vultos da casa agora ficaram à vontade. Estão dedicados aos seus testamentos. Depois haverá barulho e sorrisos e boas memórias.
Enquanto isso não vem, fico apenas deitado na cama, pensando nela e no cheiro que me deixou nos lençóis. Fico pensando que se não disparo a tempo, todos aqueles fantasmas teriam razão para caçoar de mim. J.M.N.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Cartesiano

“Creio que a verdade é perfeita
para a matemática, a química,
a filosofia,
mas não para a vida.
Na vida contam mais a ilusão,
a imaginação, o desejo, a esperança.”

Ernesto Sábato

Sempre preparado aos esquadros e às réguas de cálculo que tudo dimensionavam para si – seu mundo numa equação euclidiana. A verdade, contudo, rajava em seu peito uma cócega que era infinitamente mais rudimentar e selvagem que os números que em seu universo explicavam, inclusive, o amor. Seu exemplo de perfeição era a soma idêntica de dois números dois, formando o quadro arrebatador da igualdade. Jamais disse três mais um, ou dois e meio mais um e meio. Sua adição precisa infernizou sua vida que teimava em apontar outros caminhos e esfregar em sua cara que sempre ra possível pensar diferente, mais isso não era para ele. E quando soube que iria morrer dentro de dois meses, perguntou ao médico: como você sabe que são dois meses? Eu não sei, disse o médico. Era apenas uma conjectura. E finalmente ele viu a beleza da imprecisão. Sabia que morreria, mas não quando, ao cabo de dois meses, dentro de dois meses, a contar? Talvez a doença lhe tivesse soprado seu único vento de vida afinal. E saiu sorrindo do hospital, tratando de somar suas memórias ao canto dos pintassilgos e outros passarinhos que nem conhecia. Antes que fosse tarde demais. J.M.N.

Paternidade

Depois da casa feita, da viagem de lua-de-mel, das primeiras bodas em companhia dos amigos veio a notícia: ela estava grávida. Manhã nenhuma se comparou àquela junção específica de palavras que o acordaram para um tempo que ainda não era totalmente seu. As viagens foram canceladas, a porta da rua ficaria fechada para o mundo por uns tempos. E assim começou a guardar os avisos de sua idade e de sua nova condição. O primeiro deles é que teria um nome comum ardendo em seus ouvidos, dali em diante, seria chamado de pai. J.M.N.

Descoberta

Quando sonhou com Vindinha pela última vez, Alfredo ficou furioso. Viu-a com outro no sonho. Mexe daqui, mexe dali se ajeitou para um telefonema às pressas. Foi então que percebeu que não teria sinal. Que, aliás, nem telefone tinha. Que não tinha luz ao redor e fazia um calor desgraçado. Alfredo percebeu que iria ficar bastante enfezado por uns dias, até se acostumar com a ideia de que os sete palmos de terra sobre sua cabeça, iam impedi-lo de tomar satisfações com Vindinha, quer pelo sonho, que por outra coisa qualquer. J.M.N.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nha Crioula

Para Romine, com saudade

Como ela descobriu meu corpo, não sei. Como fez para entrar em meus segredos ainda me foge do entendimento. Mas ela em seu sotaque estrangeiro de amor notável veio a mim dentro de uma tarde vazia, nas margens do rio da minha terra, enquanto sonhava em voltar às praias do seu lugar. Mim ká falá nada crioulo, escrevo na minha língua o gosto da língua dela sobre minhas horas naqueles dias que vivemos subjugados pela pertença estranha nascida de nossas caçadas pela pele um do outro. E depois disso me deixou essa herança que partilho agora, originando as serifas de minhas letras vivas, como um rastro compassado de lembrança, saudade potente em lábio marrom, em nudez escancarada e possessiva. Ela me teve com sua boca que jamais saia de férias. E como fui deixar seu rumo não sei. Mas as ervas de sua mão cozinhando me caem às vezes, lembranças sensitivas de nossos encontros. Tudo cheirava ao redor daquela mulher. O mundo tinha gosto de litoral perto dela, os beijos nutrientes como uma cachupa rica. Manera que bo nome minha negra? Grita tua identidade daí de onde estiveres à cata dos ancestrais. São os mesmos meus os reis morenos, as mulheres negras que me liquefizeram a pele dando nosso contraste. Reage à minha saudade e me fere mais uma vez com tua mão de pluma que me dizia sempre estar me esperando, que dizia me amar com tão pouca coisa sabida a meu respeito. Intene sodadi de nha terra. Aquela terra que era teu sono tranquilo depois de nós, aquela terra que foi andar de volta a casa e jamais voltou. Tenho um pedido Nha Crioula: Trazême só um cartinha pá ká pesá na bô mala, avisa se minhas linhas te assustaram ou trouxeram ventos de boa memória. J.M.N.

Para escutar lendo...

quarta-feira, 16 de março de 2011

Saudade

Quando nasceu o dia e a noite percebeu que não viveria sozinha na aurora dos tempos, aconteceu de Deus soltar um sorriso sacrista. Ele tinha inventado um monte de coisas com apenas aquele contraste entre a luz e a escuridão. Tinha sido uma sacada genial. Tinha definido o tempo de vigiar o mundo e o tempo de ver-se por dentro no sono. Tinha encontrado um meio para esquecer a dor de quem passa o dia com fome, pelo menos por umas horas durante a noite adormecida. Deus tinha criado o manto celeste para dar amparo às lagrimas dos anjos e dos aldeões que perderiam suas terras no decorrer do mundo. Tinha assustado de uma vez os monstros detrás dos armários. Tinha tornado divinas as imagens das mulheres lendo nos púlpitos das igrejas. Tinha destilado com tamanha perfeição as cores da aurora que os filhos terrenos podiam ver nascer o dia e sentir o mesmo fio de cor que o filho Dele sentiria no dia de seu nascimento. Deus, sobretudo, tinha dado aos homens a possibilidade de descansarem uns dos outros apagando metade do planeta e deixando a outra metade acesa. Só não contava, o genio primo, que o clamor do dia pela noite e vice-versa, que essa nostalgia perpétua que se desenha no cume do toque dos dedos celestes quando as fases da existência permutam seus destinos, seria a metáfora permanente da saudade, com lembranças que lambem os extremos dos dias, ratificando as distâncias e aumentando o sem número de vezes que temos de olhar bem dentro daquilo que está tão próximo mas se esconde até que outro movimento do mundo traga de volta a dor ou a alegria do que aconteceu. J.M.N.

terça-feira, 15 de março de 2011

Porque eu também sou ridículo

No verso da foto, um lugar, uma data e um beijo. Tua boca ali, parada no espaço branco, nas costas da paisagem que abrigava nossa imagem feliz, cabelos ao vento e o sol do velho mundo a banir incertezas em nossos rostos. Fico olhando isso e me sentido ridículo. Tão pequeno porque fiz de tudo para destruir essa moldura de eternidade que a foto retrata. Mas aí, sinto o mesmo fulgor incrivelmente reconfortante daqueles dias, é como reviver o sabor da foto num abraço sozinho, mas nada triste. E fazes parte deste incrível quadro que a sorte me deu anos antes. A foto, tua boca, o lugar secreto a que recorro sem precisar ler onde estávamos. O sono que anuncia tanto cansaço nesses dias de trabalho duro e muita sede. É ridículo saber que não vens. Natural até demais essa certeza. Fiz por onde. Mas não há dor ou sabor de derrota, apenas um frio que vem de vez em quando. Entre os cantos da foto, somos ainda e para sempre. Imagem sagrada do tipo protetora e eterna. Tua boca atrás cravada, beijando meu passado e sussurrando esperanças, móbiles e coisas afins. Um lugar, uma data e um beijo atrás para dar fundo à minha solidão e a imagem estancada no instante perpétuo, faz-me rir e crer que existo. Ridículo como tantos, Como Álvaro de Campos em suas cartas. Eu escrevo sobre o amor porque o tive desde sempre. J.M.N.

Trilha sonora…

A divindade da entrega

Ando há dois dias sem ele. Imensa a vontade de chorar essas lágrimas longuíssimas que me brotam desde os seios, desde a arquitetura da pélvis. Nada entra à luz do instante, refratária e desbriada como só eu agora, a verdade pouco busca no meu riso, mas se farta dentro da escuridão do que sinto sem controle neste exato momento.

Perdida. Às vezes indo murcha radicar-me nos braços mornos de alguém sem textura, sem estofo, esperando a convocação integral daqueles abraços celestiais que me encharcavam ao simples fecho. Um corpo entregue à memória celular dele. Química própria para uma infinidade de desalentos.

E essa ausência dele me deixa nua, muito cheia de mim. Acontecida entre vocábulos que dominam todas as mulheres e que apenas nessas horas despidas, com a dignidade em frangalhos, reconheço. Um dos mais bonitos é o termo tua – forma condensada de toda, de estrela, de esquecida. Aniquilada por gosto e vontade. A coragem derradeira de quem se beija para saber beijar o outro. Essa entrega que é mais para si.

Ando há dois mil anos esperando que volte. Que regale meus ouvidos com a porcentagem exata de inexistência servil que me fratura, que recoloca meus ossos no corpo que é apenas dele. Cápsula de toda sua bravura. Essa figura reticente que encara o espelho. Espantada com os lábios a esperar a vida pequena de uma promessa.

É nesse entorno, nesse preclaro intuito de ser inteira, que me declaro, vou às últimas consequências e posso escolher morrer nos braços dele, que me falta há dois dias ou há mais tempo, pouco importa. Essa condição raríssima que o universo que concedeu como fêmea – sou toda tua, reunida na mais excludente das entregas. Por que eu posso.

Pensando nisso, o que ninguém mais no mundo tem, fico achando que, afinal, Deus está do meu lado. J.M.N.

Sobre as palavras de ontem

Quando pairavas secreta na saudade eu apenas negava e pronto, estava pronto para outro dia. Quando foi para me acostumar a não te chamar pelo apelido, mas sim pelo nome, achei que a formalidade se encarregaria de te apresentar a mim de outra maneira e que isso, seria o caminho natural para que eu pudesse viver em paz. Quando um dia te vi no trânsito, saindo da tua nova casa, arrumada para o trabalho cantando aquela música que te mostrei anos antes, achei que era apenas um erro na composição austral do dia e que toda a agonia por não ter o mesmo caminho teu, dissiparia como a chuva que espera morta no para-brisa do carro. Mas quando acordei chamando teu nome, certo de que alguma coisa iria me acontecer caso não te ligasse às três da manhã para dizer que não te esqueci, pensei que era tarde demais para existir sozinho e resolvi te convidar para um café, depois um tango, depois aquela viagem a Paris e então a dor aconteceu num outro plano, pois palavras de ontem só são possíveis porque dentro de mim, ainda aconteces diariamente. J.M.N.

domingo, 13 de março de 2011

Notas esparsas sobre o Oscar (VIII)

Vou aproveitar que o Oscar já aconteceu e que eu estou atrasado com as minhas notas sobre os filmes pra fazer um post só com os três filmes que estão faltando.

O Vencedor (The Fighter)

A paixão do brasileiro por boxe é um sentimento quase sazonal, condicionando-se à presença ou ausência de um ídolo do momento. Foi assim com Éder Jofre, Maguila e mais recentemente Acelino Popó Freitas. No entanto parece muito mais constante o nosso gosto por filmes de lutadores. O caso mais famoso, acho, foi a série Rocky que teve cinco filmes, todos estrelados por Sylvester Stallone, que depois falou umas coisas aí do Brasil que nem vale à pena mencionar. Numa palavra: gosto de filme de boxe porque os caras apanham muito e depois vencem. Os filmes de boxe são quase todos sobre superação. Nos dão esperanças de que no final a gente pode levar a melhor.

O Vencedor não foge à regra, mas o diretor David O. Russell amplia seu olhar para uma superação que é anterior à vitória nos ringues: a superação de si mesmo, no caso o personagem vivido por Mark Wahlberg que se livra da sombra do irmão Dicky (Christiam Bale), famoso no passado por ter derrubado (apenas derrubou, não venceu) o lendário Sugar Ray Leonard, mas hoje apenas um dependente químico prestes a ficar famoso de novo, agora por um documentário sobre o vício. Micky, o irmão, consegue também escapulir da adoecedora lógica familiar que fingia não ver que o passado do irmão já não era mais uma realidade.

O Vencedor ganhou o Oscar de melhor atriz coadjuvante e melhor ator, para Bale. Esta parece ser uma inesperada história de superação também. Depois de atuações, como diz meu irmão Zeca, “esmirradinhas”, Bale consegue compor um personagem de forma convincente e até assustadora.

O inverno da alma (Winter’s Bone)

Uma injustiça colocar O Inverno da Alma pra cumprir tabela no Oscar. É um grande filme, com personagens densos, uma fotografia linda e tem na trilha sonora a assinatura de Dickon Hinchliffe (membro fundador do Tindersticks). Fazendo uma comparação meio absurda, eu diria que se Vidas Secas de Graciliano Ramos fosse um filme passado no frio, pareceria com o Inverno da Alma. Digo isso não só pela secura que habita cada um dos personagens, mas também pela presença alegre de cachorros em quase todas as senas. Os sorrisos, nas poucas vezes que surgem, são enviesados ou sarcásticos. A única pessoa que é esperada é um morto.

A história é passada numa miséria que está dentro das pessoas e em torno delas. Ree (Jennifer Lawrence) é a filha que procura o pai, ou seu corpo, caso contrário perde pra justiça a casa onde luta com uma mãe doente e dois irmãos pequenos. O pai foi preso por tráfico de droga e, depois, morto pelos traficantes do local. O final não se pode dizer que é feliz. Termina bem, porque aquele lugar, mesmo depois de terminado o filme, parece permanecer eternamente esquecido pela felicidade.

127 Horas (127 hours)

127 Horas (127 hours)

Uma injustiça colocar 127 horas pra cumprir tabela no Oscar. Claro que não pela mesma razão de O Inverno da Alma, mas porque esse filme é muito ruim.

Baseado na vida do alpinista Aron Ralston (vivido por James Franco) a história é rodada na paisagem deslumbrante de um Cânion em Utah. Claro que lá acontece um acidente no qual o protagonista ficará com o braço preso por uma pedra. 127 horas são suficientes pra que Aron se arrependa de não ter falado pra ninguém onde ia, não ter atendido o telefonema da mãe, ter comprado ferramentas de baixa qualidade entre outras “tomadas de consciência”. Ou seja, é um filme repleto de lições de moral. Ideal pra emissoras como a Globo. Taí, 127 horas tem perfil pra fazer carreira na tela quente.

WDC

"Mulier"

Você é quando já não me escuto, quando sou menos que um átomo perdido entre o caos da matéria. Você é quando eu sou repelido, acontece depois de eu ser dizimado todo dia enquanto faço guerras, acidento automóveis, persigo políticos.

Você me ocorre quando eu tenho medo da vida e sinto falta do útero primeiro. Você me reduz ao seu querer quando eu te coloco na mais destacada órbita planetária dos sistemas. Você é meu sol quando o Equador se esvai dormindo e as terras descobertas pelos patriarcas se enchem de mares de saudade e vintém.

Você não é meu oposto, mas antes o posto que eu quero ocupar. Endereço de ilhoses e flores ornamentais, de crochês e delicadezas diárias que eu jamais saberei compensar com beijos ou carinhos.

Você é quem me viola os segredos abrindo meu peito para as verdades que não suporto mais fazer dormir. Você me toca e eu me denuncio. Você me arranja uma canção e eu trituro minhas mentiras com os dentes. Sou feito para engolir o que você me der.

Você vem e acaba com minha virilidade. Tem gente que duvida que eu me recomponha. Você é a única que tem certeza sobre a minha volta erétil, minha língua dura, meus dedos de retirar entranhas.

Você é tudo o que eu quero e preciso e por isso mesmo te evoco em minhas rezas mais escondidas, esperando que não venha antes de eu sentir que posso; que não vá antes de eu ter lhe dado tudo. J.M.N.

Livre arbítrio

Marita Gonçalves era emprestada para a casa dos Milard. Tinha sua vida presa ao ir e vir da vassoura, dos panos de chão sob os pés rachados pela soda cáustica que tinha de passar em determinadas partes da casa. Foi assim que sua mãe lhe entregou à Dona Georgina Milard: tome, me devolva quando não precisar mais.

Foi para um mundo que não desejava pela insuficiência de amor próprio da mãe, pela deficiência congênita de ser a filha de uma pessoa tão subserviente. Entregue feito um objeto, Marita resolveu guardar a raiva sendo a melhor faxineira do mundo. E tomou de assalto o carinho dos patrões. Cuidou de seus filhos. Viajou com eles.

Muitos anos depois do empréstimo de sua mãe, Marita resolveu sair para ver o mundo através de seus próprios olhos, sem a escolha dos outros. Fazer os roteiros que aprendeu nos livros. Dona Georgina fez de tudo para que ela ficasse. Já atendia pelo posto de governanta da casa. Não teve quem a fizesse ficar.

Depois de um ano por ai, resolveu voltar para a aldeia onde ainda morava a mãe já muito velha e doente.Marita se instalou numa casa próxima à de sua mãe e ia cuidar dela todos os dias até sua morte. Jamais perguntou porque sua mãe havia lhe entregue daquele jeito, porém, perto de morrer, a senhora Gonçalves confessou que era por causa da necessidade daqueles dias e também por não saber muito bem como lidar com a menina.

Marita mandou rezar a mais bonita missa que já houvera na aldeia.

Alguns meses depois de sua mãe ter morrido, voltou à casa dos Milard e disse que estava voltando para casa, pronta para ficar.

De vontade própria, desta vez, fez questão de dizer.

J.M.N.

De esfarrapar e cerzir

Vivo querendo saber o que fazes, por onde escutas os sons que deixamos nas paredes da tua casa e da minha. Sei que eles vêm. Para mim e para ti. Em constância não definida, em ondas sobre-humanas captadas apenas nos intervalos das tuas conversas com outrem. Vivo querendo encontrar as mesmas marcas de servir e ser que tínhamos em nosso pertencimento furioso e mundano. Pernas, braços, esôfagos arfando enquanto nos dávamos. Onde existe esse tipo de efeito? Onde se recupera essa aura terrivelmente esfomeada e liquidante? Vivo querendo amar de novo tuas pernas, tuas marcas de nascença, o feitio dos teus braços e a arquitetura delirante dos teus prazeres. Encontrar-me no interior do teu dentro. Mais fundo que toda tua dor, mais parte da tua anatomia que a feitura divina previu. Vivo lidando com a falta, com a embalagem vazia de um presente que me foi dado por um larápio, cuja recolha sabia ser inevitável. Vivo querendo me empanturrar de nós dois com a fome de oitocentos e vinte um dias sem praticar o vício de ser teu. Extinguir-me-ia se preciso. Furtaria se preciso. Mendigaria nas avenidas largas da coragem que tinha ao teu lado. Sobretudo, eu provaria que somos dois lados de uma mesma moeda, farinha do mesmo saco, bastardos do mesmo celestial desejo de completude. Escaldados pelas muitas vidas que escolhemos viver em paralelo, surrupiados pelos dublês que escolhemos para tomar lugar em nossas farsas. Provaria que não era tempo de ir, que não era certo rasgar os acertos, jogar a toalha. Provaria teu gosto de saudade lancinante, de afasia diante da descoberta das semelhanças que nos entrelaçam e fazem suar às descobertas. Estaria pronto em menos de uma hora, de pé ao lado do carro, perguntando pelo destino da viagem, pelo rumo a ser tomado e ficaria febril e leve ao te ouvir dizer: me leva até onde der, amor. J.M.N.

Escolher-se

Um dia acordei e decidi que não deveríamos mais estar juntos?
Não, não foi assim. Não decidi absolutamente nada. As coisas foram se encaixando e aconteceu. Como tinha de ser. Como tinha de tentar na única existência que me apresentaram até agora.
Veja as coisas que alcançaste desde então. E eu, o que eu conquistei. Não fazes a menor ideia de o quanto estou feliz em mim mesmo, dentro do que posso.
Nessa altura da vida é tudo o que se pode querer. Estar-se. Escolher-se.
Mais adiante sabe lá o que acontecerá.
Minha mãe anda preocupada com quem lhe guiará os passos hesitantes da velhice. Eu disse para que não se preocupasse, que os passos da senilidade eram os mais certos, rumo ao sono eterno, rumo ao chão das calçadas, rumo aos avisos de que é hora de apenas embalar a cadeira.Haveremos de encontrar rumo.
Os passos de agora é que são elas. Eles definem a consistência de nosso fim. Quem os guia? Quem nos dá a certeza de que são os melhores? Ninguém. Por isso é bom seguir vivendo.
Eu não decidi nada, monchère, as coisas foram acontecendo e eu me encontro aqui e você ai onde está. Onde estamos? Talvez querendo as mesmas coisas indizíveis de casal, os mesmos pactos inconcebíveis de nossa nação a dois, talvez aceitando que queríamos as mesmas coisas e falhamos na escolha de nossa língua materna.
Em qualquer das hipóteses, rezo por ti e por mim. Não aquela reza que me ensinaram na escola, que essa já esqueci. Mas, algo assim... Aconteça o que acontecer duvidai/ lembrai que não há certezas permanentes/ nem verdades de vida inteira/ duvida da vida para que ninguém duvide de ti/para que ninguém diga que não viveste.
Sem amém, apenas dias se passando como deve ser e esse sabor de descoberta que apenas os loucos, os famigerados e os que escolheram viver-se, conhecerão. J.M.N.

Cartas a ninguém (28.02.2011 – 23:47 p.m.)

Mamãe me julga pelos anos que passei odiando as pessoas. Papai talvez ainda sinta esperança em me alcançar depois de Jacarta e do Tennesse. Dois mundos distintos – minhas culpas, meus medos. Entre eles a solidão constante das linhas. E como escrevo aturdido e veloz enquanto penso em pedir perdão, comprar uma casa e sonhar o que todos sonham. Resolvi escrever meu testamento.

Não tenho muito a deixar. Meus discos, meus trapos, meus livros e papéis anotados. Toda minha confusão consignada nas histórias que escrevi e deixei nomeadas em grandes pastas com os nomes delas. Verás que todas já se foram. Todas se tornaram gente demais e comeram meu personagem. Lutei, mas, no final, a tal realidade vence sempre. Porém ainda tenho aguas para enfurecer com minha dureza e persistência.

Escrevo do centro do mundo, querida, de dentro da máquina do tempo que instalei para uns passeios. Corpo e alma infligidos ao que parece. Toda vez que rodo o botão do passado é como se não fosse comigo. Tinha umas trinta dimensões chocadas contra o fundo da minha última parada em mil novecentos e noventa e dois. Justo no beijo que demos em sua cama. Quando decidimos ser apenas bons amigos.

Ou nos amávamos ou morríamos de vez um para o outro. Foi o que fiz. Atirei. Rápido em sem remorso. O problema é quando evoco a engenhoca a me levar futuro adiante. Nada feito. Dá sempre um sinal de defeito. Um tilt que ainda espero, seja reparado pelo fabricante. Pensando bem, talvez essas coisas estejam fora do contrato. Não li as letras miúdas. Apenas comprei: máquina do tempo em perfeitas condições, dizia o anúncio.

Tô num beco sem saída amor. Não sei se peço para deixarem tudo como está ou choro aquelas últimas lágrimas de arrependimento que tenho. De uma amaneira ou de outra, estarei chegando em setenta e seis já, já. Malas prontas para ver de onde eu vim. Uma máquina antiga para ainda fazer os retratos que nunca fizeram de mim quando era inocente.

Me deseje boa sorte, meu anjo, parece que o dia em que tudo aconteceu estava ventando muito e tudo era bronze e silêncio. Ah, deixa pra lá. Tenho apenas uma pergunta mesmo: o que eles estavam pensando quando me puseram aqui? Volto antes do anoitecer para te contar o que diziam de mim enquanto eu chorava recém-nascido.


Sinceramente,

J.Mattos

A última dose apagou o amor da gente

Espirais. Até o final um limite permanente. Desde aqui desse precipício, eu penso que o amor da gente era pra ser bebido delicadamente, não em goladas extensivas e urgentes. Na beira do sono uma lembrança: agarrar-se aos braços que fogem. O maior desafio é lembrar quem iniciou o fim. Talvez não seja essa a resposta que procuramos. Essa calma reveladora de agora me espanta. E apesar disso, sem você parece que não sei onde ir. Grita um norte. O amor é difícil que nem a cura de um câncer. E vivê-lo é aquela destruição diária das defesas da gente. Daqui deste precipício olho o fim, mas não tenho medo. Você jáestá em Além, a cidade dos anjos, comunicando que não ficará sozinha. Vou a mais uma volta ao mundo. Dobrar o Bojador, panos da mala, rezas, maleitas, Lúcio Cardoso, meu confidente maligno. Depois de morto não deixarei que façam pó de meus ossos. Lembro de mim, preparando um banho. Você na sala mexendo na sua consciência, refazendo um caminho que não era digno de suas vivências, de sua suavidade. Não tive outra chance, senão não lhe deixaria jamais e eu precisava disso. Depois da falta de ar, um drink. Aquele que acabou com as virtudes, que nos fez perceber que o amor morava apenas em instâncias intocáveis de nós. J.M.N.

Tempo em si

Existe muito da minha história suspensa naqueles arcos de curiosidade que os olhos dela faziam quando buscavam respostas. Há tanto mais de minha iniquidade em sua solidão compartida de agora. Tempo que está inimigo de caminhadas a dois, de momentos de encontro e recordação.
Em suas buscas e certezas há tanto de minhas próprias convicções. Onde não pareciam ter tido efeito nossos soluços foi justamente onde se instalaram as mais resistentes certezas de agora. Nas perguntas recorrentes, nas veladas indisposições em relação ao mundo. Tempo que está desempregado de continuidade e efeito, tempo que reside apenas no sono de nós dois.
J.M.N.

terça-feira, 8 de março de 2011

Oito de Março

Por elas vamos ao puteiro e construímos catedrais. Por elas nos metemos em DR’s e litanias. Por elas acreditamos piamente em nossas imposturas. Por elas vamos a batizados de sobrinhos distantes. Por elas caímos nas mãos de agiotas e pastores. Por elas fingimos gostar de parentes insuportáveis. Por elas sentamos intermináveis horas em bancos de shoppings. Por elas aprendemos a cozinhar e falar de filme iraniano. Por elas aprendemos a diferença entre fúcsia e rosa. Por elas pedimos, sem constrangimento, o último filme da Barbie ao balconista da locadora. Por elas entramos na academia de jiu-jítsu e decoramos nomes de flores. Por elas escrevemos e somos escritos por elas. Por elas acreditamos que o cinismo não é a melhor forma de encarar o mundo. Com elas o mundo se torna mais suportável. Algumas delas fazem o mundo até parecer belo. Outras fazem a gente querer estar nesse mundo só enquanto elas também estejam. WDC

segunda-feira, 7 de março de 2011

Notas esparsas sobre o Oscar (VII)

A Rede Social (The Social Network)

Li recentemente na Info que as próximas guerras serão travadas também – e em alguns casos, principalmente – pela internet. A interação pela rede mundial de computadores é uma experiência real que tem aproximado e afastado as pessoas. Mas como transportar pro cinema toda essa virtualização dos conflitos humanos?

O diretor de A Rede Social mostrou que esse é um movimento possível e absolutamente necessário. David Fincher conseguiu construir cenas passadas na frente de um computador que se tornaram verdadeiros suspenses. Ajudou muito ter no fundo a trilha composta por Trent Reznor e Atticus Ross. Os diálogos travados à velocidade da luz podem confundir o expectador, mas eles foram feitos pra isso mesmo. A traição implícita, e nunca assumida nem pelo diretor e muito menos pelo protagonista, funciona como uma tentativa de neutralidade que se mostrou muito bem vinda.

Facebook, a rede social inventada por Mark Zuckerberg, hoje só não é maior que qualquer outra no Brasil e em alguns outros poucos países. Mark trabalhou para aproximar as pessoas, mas a cena final – o dono do facebook sozinho numa sala apertando F5 depois de mandar um convite de amizade pra sua ex-namorada – deixa alguns questionamento incômodos sobre a solidão e o poder.WDC

quinta-feira, 3 de março de 2011

Tereza

A minha Tereza, porque no fundo, nada
será maior que minha admiração silenciosa.

Não sei contar muito sobre esta mulher. Nunca estive em seus internamentos. Talvez nunca tenha segurado sua mão enquanto ela sentia dor, enquanto se atrevia a resistir à contração da vida em seu redor, como se a existência ultrapassando suas atribuições de cada dia forçasse sua desistência, mas ela, contida perfeitamente naquilo que os ultra-humanos lhe deram, permanecia, negava um destino frágil e sem luta.

Ela vem de uma linhagem há muito perdida. Conserva a história de nós todos em seus silêncios e talvez ainda verá a expiação de muitos de nós, pois a fortaleza que a mantém neste plano é calçada numa dignidade impressionante, num sustento de aura profunda. Essa mulher tem um Deus apenas seu, creio. Um corpo imenso por dentro e por fora.

Não é apenas uma exaltação estilística, adoração ou confirmação de família. Estas linhas são o reconhecimento de minha miúda expressão de resistência diante dela. Gigante pelas forças que uma natureza decerto extraterrena lhe deu. Maior ainda, pois inegavelmente avessa ao reconhecimento de sua persistência. Um riso entrementes fino e acrescido de força. Uma imagem que vale mais que mil palavras. Muito mais.

Sua benção, Tereza!

J.M.N.

Além dos lugares

Para N., que ficou em silêncio quando soube que era eu.

Sabe a simplicidade de chegar e estabelecer uma série nova de números ordinais e equações dificílimas que no fim, apenas justificam a existência delas mesmas? Um fim de dia com a pessoa mais esquisita do mundo, a qual, no entanto, te faz entender que avida indica os caminhos em finais esquisitos ou cumprimentos em sala de aula. Como se fosse extremamente fácil aportar num abraço longínquo e dizer para aquele ser que nos exaspera que podemos mudar o mundo, que o universo tal como conhecemos não passa de uma piada divina e os números descobertos provarão que esta é a verdade definitiva. Esse sentimento extra que se nos chega quando o olho bate num lugar qualquer do nosso próprio esquecimento, quando e onde costumávamos achar razões para pensar no próximo passo e isso, de repente, se extingue. Um lugar além de todos, onde a música preferida é sempre a trilha sonora. Além das classes de palavras, além dos fósseis alienígenas que talvez não achemos nunca. Foi justamente lá que encontrei. Naquela profundeza que me limpou a luz suja da rua, da sala de aula. Cristal de olhar puríssimo, e neutra forma de pedir socorro. Achei que estavas expiando quando entraste e, no entanto, eu cedi à essa vida toda que carregas às extremidades de tua boca quando sorris e dizes olá. Foi ali encontrado que eu cedi. Além dessa existência escrevi um recado e mandei. Desaprovando e aceitando que estava arcando com uma das piores contravenções de minha função. Entretanto, achei que, de onde estava, algures entre Vega e Belém, poderia me expor ao risco. Poderia perdoar-me por ser inconsequente. Em nome dos teus olhos e daquele sorriso que ainda acredito não ser daqui. J.M.N.

Depois de escrever, escutei esta música, fica como trilha...

Palavras que troam

Nasceu sob o signo de Aires, ascendente ignorado. Não que essas coisas fossem as principais preocupações de Inaldo. Amor e saudade, assim como as novas intenções de Ariadne, vinham em primeiro lugar.

Nascera além de si. Com laivos de aventureiro sem outra vida que segurá-lo na calmaria de uma ventura igual a todos na família. Nada lhe instigava ao sossego. Ariadne havia sido a primeira pergunta concreta sobre suas intenções para com a vida.

Naquele dia ao sair para um novo caminho nas montanhas somadas à costa norte do país descoberto. Inaldo pensou que morreria de repente. Com tanto ímpeto e aventura, partiria num piscar e olhos e ninguém teria dificuldades em espalhar suas cinzas de cima de um dos muitos cumes que conquistara.

Ariadne! Esse seria o grito. Se a morte viesse com a potência precisa de um segundo, gritaria aquele nome. O único que lhe fez pensar em nunca mais subir aos céus e ver com os próprios olhos o que nenhum outro homem ainda tinha visto. J.M.N.

Treva

Para o meu irmão Renato,
que conhece uma história parecida...

Ele morreu cego. Perdeu a visão paulatinamente por conta do diabetes. Naquele natal embalava-se em sua cadeira, rezando baixinho na escuridão. Já não esperava visitantes. Não esperava nada senão o destino.

Quando os irmãos chegaram, pediram-lhe a benção. Única exigência vitalícia que ele impôs. Depois de abençoados a avó veio de dentro e lhes serviu refrescos, um pedaço de pão separado cuidadosamente.

O gosto era como um transe que crescia, ao chegar a certeza de que as coisas andavam para trás naquela casa. Apesar das impressões, havia a imensa felicidade de estarem recebendo visitas. De fato uma surpresa.

Naquele natal, ao saírem da casa de seu avô, os irmãos tiveram a certeza de que o pior de tudo não era a treva contraída, mas o esquecimento. E o acenar solitário de sua avó num sorriso, disparou-lhes o correr de uma dor pela consciência.

Aquilo tudo doía tanto por que os músculos requeridos pelo reconhecer do abandono eram os seus próprios músculos. Era sua própria carne queimando por dentro. J.M.N.

Sono manso

Sonhou que ela estava viva. Sentada ao seu lado na mesma posição de proteção dos seus anos infantis. Tinha cheiro esse seu sonho em sépia e saudade. Murmurava enquanto dormia o nome dela. A proteção chegava aos poucos.

Enquanto sonhava com ela viva, noutro canto da noite alguém não pregava ao olho. Rodando na cama como um gato amedrontado, ela sentia uma falta que não tinha nome nem lugar. Apenas um aviso ecoando no corpo. Algo faltava.

A visita do sonho acabara com um anúncio. Tudo mudaria em breve e nunca mais os sonhos aconteceriam com a presença dela. Suas noites teriam a substância inflamada do pertencimento.

Ela, de repente, sentiu um frio que a fez diminuir sobre si o medo das coisas sem nome que pensava havia dias. Tudo quietou. A noite distendeu-se em seus lençóis mais macia e calma do que nunca. Finalmente o sono cumpriu sua parte na fisiologia de solidão daquela alma.

Ambos desciam as escadas todos os dias. Checavam a correspondência em escaninhos muito próximos. Mantinham o silêncio um com o outro. Mas naquele dia, surgira um assunto em comum: eu te conheço de algum lugar. Uma afirmação. E assim o dia dos dois começou.

Na última viagem para o exterior, perderam duas vezes seu voo de retorno, de tão bom que era conversar sobre a vida e dormir juntos sem medo ou desassossego. J.M.N.