segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Amor natural

Há dias em mim, uma raiz se esgueira. Passa pelo centro do meu corpo e se agarra profundamente. Vai até os confins de minhas vênulas, de minhas bainhas de mielina, toda reticente e sem caridade, não se desvia. Vai causando males, tratando o bem como uma puta – ardorosamente e finito. E por esta razão comprime minha pensa na vontade de ser muitos num único segundo. De ser todos numa simples frase poética.

Esta inclinação para pesar é antiga. Esfrega-se pelo corpo como se esfrega nos adoráveis sozinhos a poesia. Uma vida que desempenha os ouros e as moedas, por ser tão somente íntima e única, exclusiva e pragmática, como o teto para o desabrigado, como a sede para o andarilho do deserto. Uma sensação simples e horrenda de ser a última coisa que se precisa nesta vida.

Quando o calor subir, despencarei do céu como chuva. Calado, mas com sílabas em gota. Irei colando aos poucos a roupa dela em sua pele. Despentearei seus cabelos castanhos com meus dedos fluidos. Nada de natural nisso. Estou preso como um grande cedro no chão da morte, mas como uma grande língua d’água em seus cabelos. Uma contradição. Aterro e o soro da Terra em um único plano. Não sem conseqüências, entretanto. J.M.N.

A geografia dos encontros

p/ Sara Giusti

Sei que da tua boca não escapuliu serelepe uma promessa, mesmo assim leva as chaves de casa. Sei que não precisarás dela em outra cidade, mas eu precisarei, pra ver no portão um inequívoco portal de estalos e espantos.

Lembra sempre de cuidar mais dos teus cabelos que da tua cozinha. Te dedica com afinco aos estudos e depois ao trabalho, mas não deixa nenhum dos dois te devorar. Torna os homens teus companheiros, e não servos ou senhores. Não cries dívidas com o amor. E nunca te abandones. Tá bom, sei que tudo isso já sabes e que muitas dessas lições fostes tu quem me ensinou, mas deixa eu ser mãe até os últimos segundos antes da tua partida. Não me tira esse direito.

Aqui nessa casa fará falta o teu entusiasmo com a descoberta de uma nova cor ou de um pano novo. Fará falta as tuas notas vermelhas, esses abraços rubros com quais nos enlaçávamos em aulas madrugada adentro. Fará falta as tuas paixões fugazes pelos meninos e teu amor inapelável pela vida.

Vai, toma a benção do teu pai. Não, ele não está concentrado no jornal. Quem dói por dentro não enxerga nada fora. Ele, certeza, está tentando encontrar os algoritmos que comandam as despedidas. Quando achares que deves descansar um pouco da tua aventura, tua cama terá colcha cheirosa que trocarei todos os dias da tua ausência, teu lugar no sofá ainda será um eco das tuas formas. Se ainda te apetecer, meu colo também estará aqui, tentando vencer calado o martírio que é te esperar. WDC

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dona Empregada

Tá vendo essa? Ensinei a ser mulher, dizia Patrão Cirino apontando para a Nonata, filha da Ceiça da farmárcia. Getulinho que bebia uma cerveja ao lado do velho, só sacudia a cabeça, hum hum. Toda manhã de sábado era isso, uma lista interminável de amores inaugurais do Patrão. Seu Dito, dono do bar, ria com o canto da boca e não dizia nada.

Num sábado destes, ouvindo os exageros de Patrão, para quem a responsabilidade da fuga de Mirtinha, a fantástica filha do Neco da padaria, tinha sido sua. Seu Dito resolveu sentar à mesa. E com seu copo em punho foi apontando: e essa Patrão?, ensinei que a vida é dura pra quem tá em baixo, e essa? Fiquei cinco dias fazendo ela emagrecer... E assim ia.

Lá pelas tantas, passou Dona Empregada, que ganhara esse nome em seus dias áureos no cabaré Monserrat, na Vila Pequena. Servia muitíssimo bem àqueles que bem lhe tratavam. Já tinha oitenta e tantos, andava com duas muletas, porém sempre cheirosa e arrumada. Seu Dito não perdeu a oportunidade. Sabia do que tinha acontecido entre Patrão e Dona Empregada. Disparou apontando o queixo para a dama...

... E essa ai Patrão, qual foi o feito? Patrão, finalmente viu Dona Empregada no balcão tomando sangragalo, mandou para dentro o último gole de cerveja e levantou amassando o boné entre as mãos que já suavam, essa ai me ensinou que eu tinha muito que aprender na vida, e saiu do bar às pressas, rumo ignorado. J.M.N.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Aos Pedaços

Quando tua mão artesã juntou meus estilhaços e montou um mosaico tenso, de imediato acendi minhas cores pra que o meu peito fosse a única paisagem diante do teu olhar. Ao perceberes minha loucura, me juntastes num conceito que limita e expande. Não te recusei um abraço porque sabia dos poderes reordenadores que tem a tua pele. Te envolvi num beijo sabendo que a partir do doce da tua boca eu não mais me estranharia.

A partir de ti, não fui mais música atonal. Depois de ti, fui valsa. Antes de ti, arquipélago. Depois continente. Antes poesia concreta. Depois soneto. Por ti não estou mais espalhados pelos cantos. Por ti não sou mais nuvem que choveu.

Vou te confessar algo. Estar no teu cabelo era tão bom pelo cheiro quanto pelo gosto de perdição.

Quando te deixei no terminal, já entrei no carro com algo demolido dentro de mim. A minha ternura, a tua submissão e outros achados impossíveis estavam sendo levados pra um museu de lembranças. Eu tinha sido derrotado. E minha única guarita era saber que o amor é uma espera, uma longa escavação por ossos e diamantes inventados. WDC

Para ler ouvindo....

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Cartas a ninguém (21.01.2011 – 2:33 a.m.)

Lá pelas bandas de Montevidéu, atrás de Eduardo Galeano.

A noite já vai alta. Parece que o relógio esquece que estou aqui. Amanhã é um dia que preciso conhecer antes que venha, pois sairei ferido. Não faz mal. A boca do tempo me beijou. Um beijo suave e flamejante como quando me acordavas com medo do escuro. Uma saudade cheirando a lêvedo e azaleias, como os canteiros de onde nunca estivemos. E mando postais.

A cidade inventou um frio que existe apenas para uns poucos incautos que estão sozinhos de si. Pulôveres? Já os vi pela rua, sob o sol degradante sobre o verde daqui. Natureza empedernida a gritar sua maioridade, bebendo gordamente a chuva, mexendo na estrutura das ruas, doidivanas. Como se eu próprio não pudesse comprar bebidas, fumar em lugares públicos, planejar um assassinato.

A natureza manda recados, invejar é sua busca. Inveja a perda de todos nós, por isso só come os restos, não vem ao banquete, enquanto todos planejam matanças uns com os outros. É uma senhora que espera. Sangra seu verde quando andamos. Eu germinando sentado no fundo do quintal. Os anos passando à porta do céu de minha boca.

O aviso final: Estou ficando para paisagem, Querida. É isso que me grita a idade. Os pés em raízes adentrando a terra molhada desta terra que me esqueceu. A outra frase que tenho é que tudo vai dar certo. Assim eras por natureza. Uma otimista. Eu fiz questão de odiar isso mais do que todas as tuas outras qualidades.

E por fim, amor, do fundo do coração me espanto querendo saber mais desse teu gosto pela memória de certezas, pela oferta de substâncias secretas embaixo dos limos de minhas desgraças. Queria, amor, poder saber dessas coisas são tão tuas, como é da natureza, o verde que brilha enquanto a água torra sob a virada do clima.

Mas não vejo mais os pássaros na árvore diante do prédio. Perderam a bússola. Ou eu a perdi. Agora queria beber a chuva, mas não posso. Jamais serei tão natural assim. Minha pele sente os dias virando e a tempestade renovada como os raios de sol. Tudo bem! Sei que as poças formadas serão extintas pelo calor, ou pelos carros que passam correndo.

Antes disso, Querida, não ousarei olhar dentro desses espelhos fulminantes e transitórios feitos da água da chuva e das falhas no asfalto. Eles parecem brincar com a pessoa que anda sobre seus vitrais passageiros.

Dorme bem,

J.Mattos

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Presente de aniversário

Para E.S.T, em seu lugar no paraiso.

Havia pedido um casal de girafas como presente de aniversário. Detalhou que as queria com mais pintas marrons do que amarelas. Também pediu, para formar o conjunto perfeito com as girafas, agulha e linha para fazer-lhes uma manta.

Era um menino taciturno e criativo, que raramente apanhava sol. Seu internamento na casa de repouso Iduañez Cortéz, aconteceu no dia trinta de setembro, há vinte e cinco anos. Sua primeira observação foi um nome estrangeiro para seu novo lar. Onde andam os loucos deste país?, pensou.

Todo domingo, Dona Tota leva-lhe revistas e as novidades do mundo. Ainda hoje pede perdão ao filho por aquele ato impensado. Ele apenas ri e se diverte com as figuras das revistas. No fim da visita regala Dona Tota com um longo abraço e diz fininho, a mãe é a melhor do mundo. É como um tiro. Porém Dona Tota o recebe como parte da pena que se auto impingiu.

No último domingo, Dona Tota chegou como de costume às oito. Veio o enfermeiro e depois o médico. Explicaram-lhe que o estado de seu filho se agravara. Como razão para o que acontecera, ou parte disso, o médico disse que ele voltou com uma fixação que havia abandonado havia anos. Pediu as tais girafas de aniversário, junto com a agulha e com a linha. Porém ninguém percebeu que tudo tinha uma explicação.

Ele queria que as girafas contassem para ele como era o quintal da casa de repouso, o qual nunca via, pois a janela do quarto era alta demais para alcançar, mesmo na ponta dos pés, sobre a cama. O quintal era o reino dos piores, haviam-lhe dito. Como ser pior em um quintal? A agulha e a linha eram para refazer o lençol em cachecol, para as noites de frio em que seu colega de quarto não lhe deixava dormir.

Dona Tota apertou o coração e teve um breve descanso para sua culpa. Seu filho, porém, não precisaria mais de girafas para ver o quintal atrás da casa de repouso. J.M.N.

O sono dos dois

De um lado do sono ele canta luas azuis e universos além da cama, uma eternidade de conquistas ao lado dela. Ela, em sua vela ensinada pelo tempo, rufa tambores na expectativa do salto. Adiante dos olhos de ambos, um horizonte e um abismo, dois marcos de salvação. Não são os mesmos de anos antes. Olhares não aglutinados. O ar que emana dele tem aroma de pertencimento, fulgurância faminta de pedras fincadas na pele da terra, na pele de seus erros e insconstâncias. Ela viceja argumentos de entidade, faz-se leve, não guarda sobras e come o vento aberto das campinas, como a esperança em si sobre pernas e músculos procurando ter-se. Cabe dizer que soluçam ainda. Que passeiam juntos. Que, quando acordados, culminam-se esperando os telefonemas, as mensagens, as brigas normais, as lembranças e um tempo plácido, porém distante. O sono, entrementes, ferido. Mesmo na presença de sua conquistada tranquilidade ele resvala. A mobilidade inconteste de seus poemas e frases se junta em felizes cenas, porém não basta e ele entende que o sono é a perfeição desfeita de seu passado. Tem medo apenas de morrer sozinho, ignorado ou esquecido por quem um dia precisou dele mais que tudo. Ela está, contudo liberta, apenas não sabe. Deixou os grilhões no alpendre quando a noite chamou seus olhos ao escuro revelador da manutenção do óbvio. Quer ilusões. Cercanias coloridas e sandálias muito macias para seus passos. Ela sonha como se estivesse acordada e a dor de cabeça que sente desde que acorda é a paisagem do que ela já conquistou por dentro, fazendo força para cobrir seu dia. J.M.N.

Vida e morte, amor!

Cândido se encontrava morto e às portas do céu teve a visão que jamais havia tido em vida. Voltou ao corpo que lhe abrigara por mais um minuto e meio, apenas para contar o que vira.

“Era você que emprestava vida a tudo que eu fazia. Minha raiva maior do mundo era quando não estavas ou quando tinhas mais trabalho que amor para me dar. Isso eu pensava. Mas descobri, naquele verão há dez anos, que teu amor era maior que tudo e já não tinha mais raiva do mundo. Apenas aquela sensação de que gastei muito tempo com o cenho franzido e frases brutas vida afora. Sempre que dormias, ficava uma centena de minutos adorando teu sono. Foste e serás sempre a mulher que eu amo.”

E subiu novamente.

Na missa de sétimo dia, Virgínia, a filha, contava para um amigo próximo que o pai, mesmo depois de ser declarado morto pelo médico, voltou para dizer umas coisas. Ela não sabia de quem ele falava. Se de sua mãe, morta havia cinco anos, ou de outra pessoa qualquer.

Virgínia, contudo, soube dizer que o que vira nos olhos de seu pai declarado morto, jamais vira anunciado em nenhum de seus noventa e dois anos de vida. J.M.N.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Quando esta mesa está posta

Quando esta mesa está posta, pela dança da fumaça acima da panela de arroz, medimos o tamanho da espera. O número de pratos nos diz que teremos agregados e vizinhos. Não há lugares marcados, mas o lugar escolhido sempre denuncia o nosso humor para os presentes. A cabeceira pros mais contentes. Os lugares improvisados em pontinhas da mesa para aqueles que a vida não está sendo tão generosa. Com o tempo, todos saem falando roxo a língua de açaí.

Quando esta mesa está posta, logo a matriarca entra, vinda direto do marulho do rio, ostentando o sorriso como um brinco de jade. Entra, uma outra mulher, transformada pelas cantigas noturnas dos netos. Entra uma nova mulher, invertida pelo tempo, filha dos próprios netos.

O pai também chega. Recusamo-nos à ofensa de sogro ou tio. Ele não merece. O lugar que todos guardaram pra ele é aquele canto reservado aos pais e às pessoas vitais. Suas compras exageradas, sua calma exagerada, vestígios do exagero de amor que mora naquele peito cheio lugares confortáveis. Quando a mesa está posta, ele logo julga que a comida está daqui, e puxa o mole da orelha num gesto perdido no tempo. As agrugras de Juca Medalha no som, os braços abraçando o próprio corpo numa dança solitária, os olhos fechados e um sorriso de quem um dia fez dos bailes a própria vida.

Quando esta mesa está posta, o complexo arranjo de sofrimento e culpa se contrai e se desfaz na barriga do vento que logo mais embalará a sesta de todos. Quando do peixe sobrar a espinha, quando do feijão sobrar a saudade, quando do arroz sobrar a solidão do fundo da panela, quando da carne sobrar o cheiro, quando do macarrão sobrar a curva; o mundo estará satisfeito consigo, nosso crimes perdoados e nossos filhos sossegados. A vida, desobrigada da busca de um sentido, será então vivida com seus doces e seus amargos. A vida, todos a sorveremos com fome e coragem. WDC

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Aos reis magos, uma história

“A memória guardará o que valer a pena.
A memória sabe de mim mais que eu;
e ela não perde o que merece ser salvo.”

Eduardo Galeano

Os sinos tocam. Lá fora o barulho das felicidades caminhantes dos namorados, das famílias em festa que, com suas janelas abertas, assopram o calor das festas para fora de suas moradas. Na cave da casa, em seu quarto escuro, ele sente a ausência de todos, os sons como que sugados para os confins do pensamento das pedras da calçada. A casa antiga com tantos fantasmas dormia sossegada. Ele não. O convite para ir a Lisboa nunca aconteceu. Teria de ficar. Sozinho com suas garrafas de vinho a cumprimentar os reis magos, escrever cartas de amor e cartões postais para aqueles que estavam longe. Havia, porém, um único pensamento salvador. Era uma imagem conformada em tantas noites de frio constante, de estudos exaustivos, de saudades excruciantes. Era a imagem dela chegando naquelas terras do outro lado. Vinda cheia de abraços e cheiros inconfundíveis. Era uma imagem que se prendia às ruas por onde ele passava todos os dias, anexava-se nos cantos das casas que escolhera para morarem juntos e viver futuramente. Uma imagem de desejo e convicção. Estariam finalmente dentro de um mesmo plano. Atados a um destino. Era a melhor imagem que podia ter. Uma imagem de amparo e eternidades. Apenas uma imagem. Ela foi e voltou sem atracar-se. Levando o mapa das terras recém descobertas. Ela voltou e com ela a respiração plana das tardes lindas de Coimbra, as ruas perdendo o sentido dia após dia. Ninguém jamais soube daquele natal em que o mundo parecia outra dimensão e ele padeceu de esquecimento e frio. Algumas vezes o cheiro avassalador de quarto vazio embota-lhe a vontade de permanecer. Algumas vezes pensa que foi a melhor espera de sua vida. Ainda hoje, tem a impressão de jamais ter saído daquele quarto e quando esse desespero se achega, como antes, é a imagem dela saindo dos paramos da memória que vem renovada e eterna lhe causar a vida que necessita para mais um dia sobre a Terra. J.M.N.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Micro-romance VIII

à memória de Frederica, uma personagem

Madame Desnass sentava toda noite diante das fotos sobre o piano e pedia à sua criada, Suzane, que tocasse algo de Debussy enquanto tomava seu licor de avelã.
De olhos fechados ia de volta aos quadros das fotografias e tentava cheirar os ares daquelas realidades congeladas no tempo. Apesar de muitos momentos felizes retratados, Elise, sentia o travo da solidão ao recordar quem já não podia estar, ao lembrar aqueles a quem afastou por imprudência ou por demasiada reserva.
Fosse o que fosse, terminava com uma lágrima negra caindo dos olhos sempre muito pintados. Uma beleza que escorria de si, como a realidade escorre quando os sonhos se assenhoram de nossos dias.
Ela, talvez, se tornasse uma fantasia. Adorada por alguém a quilômetros de si.
Porém na noite que se tocou Clair de Lune, sua lágrima estava limpa e não havia licor de avelã para acompanhar sua tristeza. Ela pediu que Suzane repetisse a música enquanto começava a dormir o sono sem amanhã e quando a música acabou não havia nenhum sinal de sofrimento pela sala.
Suzane disse anos depois, que chegou a pensar que alguns rostos nas fotografias sorriam de dentro das molduras, como que aliviados de não precisar servir mais às memórias tão tristes daquela mulher. J.M.N.

Era esta a música que Suzane tocava…

Adorável

Sem pressa a angústia prestará o serviço de acabar com a paz. Uma sentença que não estava dita, porém existia em tudo que ela tocava. Eu não preciso vender minha alma. Não era necessário acordar com a calma roubada, com as feridas em carne viva. Mas ela precisava disso. Precisava saber que mais alguém morreria com ela aquele pouco de vida destinado à possessão e à loucura. Não se encontrava com o espelho havia anos. Pura e simplesmente por jamais ter-se inaugurado como gente. Alma integralmente, sem carne que sentir os golpes, sem nervos alcançáveis por cirurgias mal feitas. Saltava de corpo em corpo devastando a história alheia e, no entanto, servia o melhor coquetel de realidade possível. Era um fato para cada beijo, descortinar duríssimo e feroz dos limites de quem fosse consigo. Seu papel no mundo não está claro. Talvez não haja. Para mim, foi a mais profunda experiência de perdição. J.M.N.

Para escutar lendo…

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Sem pudor e sem pecado I

Estou cansada hoje. O dia dobrou-me os anos vindouros. Estou indo deitar mais velha que minha velha e morta bisavó. Todos os ossos doendo. E os olhos cansados do mesmo. Estou indo recitar poesias da época do império para ver se o sono vem. Muito antiga e sem mim que eu sou agora.

Ainda tenho na mão a flor que ele me deu. Ficou tão presa sob meus músculos e força de trabalho que secou e ficou preta, preta. Acho que foi minha pele tomando a cor da florzinha amarela que ele me deu, que eu senti às dezesseis horas, depois que ele saiu do escritório. O tempo virou detalhe.

Não houve nem um bom dia, nem até logo. Meu pai ainda prescreve aqueles velhos remédios aos dentes podres do pessoal de quem ele trata. Vejo nisso uma certa vergonha por não ter sido quem poderia ser. Meu pai nem percebe que eu ando me libertando aos pouquinhos.

Agora acabo de rezar um terço pela metade. Parei para inventar uma prece de trazer o bem de volta. E foi assim:

... deixa de ser mau meus Senhor, não faz passar mais as horas sem um beijo dele no meu beijo. Não prende essa alegria bombástica que é meu corpo dentro do abraço dele. Ele ontem veio com aquela mão sabe-se lá de onde e me apertou um canto que eu fazia questão de guardar para a benção do meu pai, e foi como uma porta se abrindo por onde me esvai inteirinha.

Vou pedir sem pudor e sem pecado meu Paizinho... deixa ele vir novamente com aquelas mãos de abrir paraísos dentro da gente, deixa. J.M.N.

Para a moça que perguntou de mim

Que tão boas sementes plantamos às vezes com os olhos. Andava pela sala sem o propósito de estar, fazer presença, acontecer como um convidado especial e, no entanto, ela perguntou por mim. Reduzido aos meus instintos, sem meu semelhante junto de mim, sem a guerra ganha contra aquilo que sou ou que fui recentemente. Ancorado em deltas longe de casa, ao acaso, este demônio mais certo que o fim e ela, ela perguntou por mim.

Nas trincheiras da guerra que ela trava entre saber-se perdida nos abraços glaciais que ele produz, a linha costurada da família sobre si, sobre seu destino atando em nós minúsculos sua vontade, suas esperanças, mas mesmo assim, ela perguntou por mim. Sua pele dormida entre a distância do Saara e os laranjais de sua terra, seus olhos cor de mel, entre a certeza e a galhardia de ter sido entregue como prêmio, como espólio, mas ela encontrou tempo para perguntar por mim.

Ela que sem dizer nada com olhos voltados a mim, fez meu ano acabar com um raio de nobreza e ciência de que a quentura que sinto, afinal, anda nos corações por ai. Ela cujo encanto desatou os últimos nós que me prendiam ao que os outros desejaram de menos para mim, meus sinceros agradecimentos. Minha mais profunda devoção e poemas, em sinal de uma espera que talvez não se complete, mas que escreverá tantas linhas como se fazem raios de luz em seus olhos. J.M.N.

Micro-romance VII

O corpo estava pronto. O melhor terno escolhido, a melhor gravata.
Um cheiro leve de sândalo exalava daquela figura morta cujo rosto todos os presentes não esqueceriam nunca. Depois a banda municipal fez sua parte. Uma salva de tiros até.
A esposa não descerrou nenhum véu, jamais se viu uma lágrima vinda de seus belos olhos cinza. A tarde exalava bronze e sabia a finalmente, com uma chuvinha fina deitando o cheiro de terra sobre todas as orações do velório.
Enquanto muitos esperavam ansiosos, a descida do caixão para deixar o homem ser comido pelos vermes em paz, apenas aquela mulher de vestido verde, completamente inadequado aos humores do féretro, demonstrava não querer que aquilo acontecesse. Um choro profundo e doído rolando de seu rosto maltratado, mas belo. Escondia-se atrás de uma árvore.
Foi o filho mais velho que partiu para cima dela, tentando expulsá-la do cemitério. A mãe o trouxe num abraço e sussurrou algo em seu ouvido, o filho despencou da raiva, olhou para trás e abanou a cabeça em sinal de aceitação. Todos lá, olhando a cena.
Depois do caixão baixado e tantas flores por sobre o homem que ali acabara a mãe foi em direção à mulher. Ela relutou, mas, por fim, cedeu e acompanhou a senhora envolvida num semi-abraço de amparo. A cabeça baixa, a postura de quem deve alguma coisa. A mãe disse-lhe as últimas palavras e ela ficou sozinha um minuto em frente à cova aberta.
Como não levara flores, ajoelhou-se e apanhou um punhado de terra. Entoando o Santo Anjo, atirou a terra sobre o caixão, levantou-se, agradeceu à mãe com um maneio de cabeça e seguiu em frente. Tudo acabado.
Fiquei ainda um longo momento olhando e pensando no que presenciara. O destino tem suas mais próprias formas de se pronunciar quanto aos seus enganos recentes, foi o que concluí.
Foi então que a mãe veio fazer seu último gesto.
Aproximou-se da sepultura já pronta, com lápide, epitáfio e tudo, e escarrou.
Não havia fúria, nojo ou vestígios de impropérios em seu ato.
Não me causou náusea aquele gesto, mais antes, uma certeza, era a demonstração do que não haveria de ser revelado jamais.
Talvez fosse o expurgo da memória mais íntima de dor. Quem sabe um naco de sua alma machucada que encontrou uma porta de escape.
Quem sabe, afinal, a dor em si, o medo imperioso e avassalador de estar livre para ser quem ela jamais havia sido. J.M.N.

O primeiro dia

Havia uma carta na soleira da porta. Sem destinatário ela vinha de todos os cantos da Terra. Trazia o calor dos desertos, o verde das florestas, o frio das calotas polares. Era uma carta esclarecedora e cheia de nostalgia em suas brevíssimas sentenças. Trazia a contenção do destino em palavras, a sabedoria do tempo em suas vírgulas e mais a destreza de comunicar uma liberdade iminente dentro de um único jogo de palavras. Os verbos escolhidos em pretéritos pungentes. Carregando em seus ventres a imperfeição do que se viveu, a dor do que se experimentou. Toda a natureza dos passos que vêm acontecendo nos terrenos desconhecidos de agora. Uma década de flores específicas. O primeiro dia do ano entrou em minha casa assentado nas palavras infinitas daquela carta. Chegou de um passado recente e longínquo ao mesmo tempo. Chegou trazendo nuvens claras e saudades, mas também o conhecimento tardio de tantas coisas. Aquela carta trouxe exceção à tristeza, fez nascer o ano de maneira mais tranquila. J.M.N.

Belém, 01.01.2011