quinta-feira, 28 de outubro de 2010

So I Walked In The Rain

Tinha esse estranho hábito de ser teu. Completamente, como as estações do ano acontecem na Bavária e noutros lugares impensáveis. Era todo junto de tuas condições e percalços, todo certo de ter razão e chão que me amparassem definitivamente. Todo feito de amor e descanso.

Aí aqueles gelos do Atlântico. Como freqüências subatômicas e reincidentes. Fui descendo tristemente do horizonte incondicional que me davas. Regado pelas chuvas do continente, ilhado, com a latitude empenhada em descoberta pessoal e tão necessária. Pouco afeito a partilhar os passos, tão cansado que estava de não chegar a lugar nenhum.

E então abri a porta da casa e saí pela chuva. Acordara as vielas mofadas de minha genealogia mais pura. Amar, eu amava e continuava impreterivelmente teu. Chamava amor ao medo de sentir sem te incluir, pedaço que eras dessa carne corpórea que me arquiteta aventuras e achados. Todo teu por oração e força. Tão mais meu por conta própria.

De que adianta saber dos gostos da chuva atlântica? De que saberá a história de Espanha, ao reconhecer no meu gesto de procura, estar na cidade mais perto à tua, para fazer-me sempre presente? Tão tua que não vergaste sequer em tua espera. Esse momento que era só teu em tua presença. E eu, todo contente de ter finalmente encontrado um rumo, continuava com medo de não acordar jamais.

Tão sentimental que deixei a chuva me socorrer e limpar. Tão acordado para as venturas de ser, que nem quis mais saber por que teimavas tanto em me ver mudado, cabendo na esperança dos teus, longe de mim para sempre.

Escuta amor, estas últimas gotas são lágrimas. E caem de saudade e milagre. Ainda tenho alguns hábitos que apenas eu suporto ter. Dentre eles te amar como sou, até que a lua fique de ponta cabeça. Até que aconteça de eu morrer, afinal. J.M.N.

Para ler escutando…

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Perguntas de Ontem XIX

Eu sou a tua escuridão. Sou a tua riqueza empenhada. As tuas tardes em frente ao rádio lânguido. Sou quando não tem palavras e o silêncio te engasga, são as minhas mãos envolvendo o teu pescoço num abraço lento. Em mim mora a distância que te afasta da razão e te achega ao desatino. Foram as minhas horas que te habitam que te enganaram quanto ao dia e horário daquele voo pra Belém. Veio do meu deserto o sal das tuas últimas lágrimas. Mas não tentes escapar, senhora. Como há de se fugir do que se leva nas entranhas? Como fugir do que está entranhado?WDC

Pergunta de ontem: Que seres habitam a tua noite?

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Micro-romance V

Para Francesco e Nadine, em algum lugar do mundo

Voltou por onde viera da primeira vez. Seus passos ainda estavam lá, chocando o tempo agoniado do escape. Era uma fuga. Era uma animação maior que todas as festas da cidade juntas. Era necessário outro caminho, pensou. Logo, logo não precisaria não, terminou seu sorriso já além do que não podia. E foi. Correu pelo sereno da madrugada, sempre com a carta dele à mão, apertada no peito. Corria que era quase como escapar de si mesma. Às duas da manhã, chegou ao lugar combinado. Ela trazia suprimentos para a fuga. Pão de ló, frutas frescas e água pouca. Ele a estava esperando, calmo e sorrindo para o luar, conjuminando o feitiço dos lábios dela, com as coisas que ainda não conhecera de seu corpo e sonhos. Ela abrandou os passos e correu por trás dele para dar-lhe um beijo. E nisso ele pulou, e a corda soltou-se de sua mão. A correnteza estava forte. O barco foi indo, ganhando força. Descendo o rio como numa corrida de vida própria. Ele se virou num susto e disse a ela, olha nossa liberdade indo embora. Depois de um segundo sem ar, ela virou o rosto dele que estava prestes a sucumbir na noite e disse tranquilamente, a liberdade a gente já tinha, resta saber como viajar nela. Até onde sei, tudo deu certo para eles. J.M.N.

Desavença

Em luta sempre, queria provar-se. Queria ser definitivamente de alguém. Encontrava-se na casa dos trinta. Era linda e desejável. Mais incerta que os desvios da estrada recuperada. Andava ao largo de tudo. Encontrava feridas abertas e as fazia sangrar. Entendia de sulfas e antidepressivos, coisas que delongam as feridas, estancam as vontades como fossem os arcanjos da madrugada toda em elétrica parada. Era um sofisma. Insustentável. Sabia se colocar à disposição, mas ao fim e ao cabo era apenas dela mesma. Sua única pessoa amada. Fosse como fosse, foi desacordada encontrar seu fim. Naquele dia, uma manhã ardida num sol raro, ela entendeu que seria só mais uma conquista. Não era dona de nada. Nem de si, nem dos finais. Estava exatamente entre os condões de outro conto de fadas. E já não queria isso para si. Não queria ser deixada. Não queria ser magoada. Não queria mais ser apenas de si. J.M.N.

Desgoverno

Entrava e saía do meu corpo. Escorregadia, dobrável. Serpente tateando meus sonhos, abrindo caminhos dentro das minhas maiores insuficiências. Dormia comigo e me fazia bem. Acordava e gritava como não houvesse promessas entre nós. Me fazia mal, depois os risos. Nunca arcava com as conseqüências de nada. Tinha pessoas preocupadas em lhe dar o que lhe negaram ao nascer. Era isso que se reproduzia em seus galanteios. Um eco de coisas que jamais teve. Uma mentira muito bem contada. Afinal de contas era aquilo que nos unia. O que não tínhamos para oferecer um ao outro, porém buscávamos. E não passamos disso. Meu corpo pedia sua presença como uma droga muito rara e específica ao funcionamento de minhas esperanças. Ela era tudo o que eu tinha pedido para ter. Era a mais perfeita aparição do que não devia. Mas ai um dia, mordi meu lábio enquanto a amava, desesperado e sensível como nunca, e nesse momento entendi o quanto estava longe dela. Longe de compromissos ou equilíbrio. Vi que o sangue que escorria era apenas o meu. J.M.N.

They have nothing that will ever capture your heart

Sobre a música Downtown Train de Tom Waits
e sobre muitas outras coisas também

Se houvesse trens em minha cidade, certamente viajaria noite adentro, antevendo paradas repetidas perto dos lugares que freqüentas. Porém ando de pés, pelas calçadas esquecidas e lembrando que na maior parte de nossos dias, tivemos boas razões para amarmos um ao outro. E ao capturar teu centro, dei tudo quanto era meu, até o fim. Eles jamais chegarão perto disso.

É como prevíamos. A completude acontece raramente. E nós a tivemos. Colocada em prática segundo uma lógica própria e transida de penas e amores eqüiláteros. Tu dentro da razão compartida dos esquadros e fractais. Eu saqueador de versos e tumbas recém ocupadas. Envolvidos eternamente em nossas faltas. O que me faltava, faltava a ti e a soma disso era o que tínhamos. Certamente não tenho provas de existência melhor que essa.

Se acaso fosse partir novamente, desta vez iria sem te dizer quando, para onde. Porquês não seriam o problema. Mas não posso escrever inverdades. Sobre estas palavras, acontece o livramento tão esperado. E mesmo que ninguém saiba como capturar teu coração e apenas tu, saibas como fazê-lo ao meu, vou saindo de fininho. Minhas mãos em ondas, agitando o escuro da noite, dizendo um adeus que não cabe em tempo algum.

Não há nada nessas ruas que interesse aos nossos corações, não é mesmo? J.M.N.

sábado, 23 de outubro de 2010

Nem semelhança, nem mera coincidência?

Na ponta da flecha tudo que sangra tem cor de anteontem. Derrame rubro que soa baixinho, esquecimento, desatenção, contragosto. E vai tirando das vênulas, fossos e escuridões os descaminhos no qual me encontrei. Apenas uma saudade secreta arde ainda naqueles confins. Há de amanhã fazer mais sentido que esse tempo decorrido no relógio de pulso. Há de ter mais sabor de completude e travessia nossas mãos dadas, mesmo que apenas na memória dessas linhas perdigueiras e treinadas. Ser eu fui como pude e continuo arcando com isso. Como me pediste. Em vez de dor, encontrei limites, porém, mais do que isto, encontrei esperança. E sabe a sucos dulcíssimos minha estréia na felicidade tangível dos dias em comum. Sabe a sol e chuva fresca a eternidade que propus para os olhos dela, arregalados quando confessei que era assim mesmo, não mudaria. E o disparo que fiz alcançou horizontes e agora não volta. Não requer certeza detalhada de amanhã fazer sol. O alvo era o nada, e, mesmo assim, atingi o gral das coisas mais sagradas que, até onde vejo, são as mesmas que deveriam, fazer-te feliz. J.M.N.

Por linhas tortas

Enquanto você não arcava com a vida, eu escrevia um romance. Enquanto as coisas eram simplesmente maiores que os tropeços, eu organizava a escrivaninha para coletar todos os traços e rascunhos das coisas escritas para ti. Foram tantas impressões, poesias e bilhetes que quase não vejo como nos termos perdido. Porém a vida não é feita apenas de palavras. Palavras não se comem, não passam pelo trato digestivo, às vezes.

Posso ter usado demais a faculdade de criar mundos adversos para erguer minhas defesas e quando disseste que as experiências contidas naquilo que eu escrevia eram apenas minhas, tinhas razão. Mas isso não devia ser ruim, pois toda a beleza escrita nasceu dos momentos que passamos juntos e daqueles que me fizeram ver onde eu estava errado e matava com fúria infante, as possibilidades de continuar sendo bem quisto por ti.

Enquanto você esperava, eu voava e alcancei os prados verdejantes de um romance de Faulkner. Fui à cidade mítica apontada em meus mapas enfrentar os pergaminhos da minha existência. Obstinado que continuo sendo por saber o que sou. Como voltar? Não há marcha ré. Precisaria descer do mundo e isso, não faria nem mesmo por ti. J.M.N.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O que me é (III)

A mulher que curou a náusea do existencialista com o amargo aveludado do boldo, tinha um colo de acalmar vendavais. Passava as madrugadas a afumentar os filhos com uma alquimia ao mesmo tempo índia e escrava. Quantos dos sete filhos viessem com o peito morado de catarro ou desilusão, era o quanto ela esfregava aquela mão coberta de pintas e rezas.

Não era de interromper tiração de bustela com remada, mas nunca negou uma lição na carne ou no juízo que, diga-se, os filhos nunca aprenderam.

Suas certezas foram transmitidas como uma ciência particular e inquestionável: não abrir geladeira com o corpo quente. Não comer manga quando atacado de febre. Nas tempestades com trovões cobrir os espelhos e pendurar boneca de papel atrás da porta. Nas gestações, jogar tesoura no chão pra adivinhar o sexo do moleque (se caia aberta, era mais uma sofredora no mundo).

Aceitou resignada quando a rasga-mortalha proferiu seu mau agouro sobre a casa. Depois de um tempo ninguém morreu, a não ser a última infância daquela horda de pândegos. E quando termina a infância, o que há mais para ser cuidado? Mas essa senhora está sempre às voltas com um piquerão de coisas pra fazer. Cuidou então de amenizar esse sangue furioso que, como um arame tenso, uma tripa esticada, une as gerações de uma árvore inquieta. Tornou-se apaziguadora desse amor violento, que quanto mais eles escondem, mais se vê.WDC

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Palavras de Ontem no papel?

Caros Leitores,

Dividimos com vocês uma idéia que nos foi dada por uma amigo, o qual garantiu também ajudar na concretização deste que agora, se tornou um projeto do Palavras…: registrar em uma edição impressa, alguns textos do blog.

Gostamos tanto da idéia que convidamos vocês, seguidores, leitores eventuais ou frequentes e amigos, para nos ajudar a definir que textos deveriam entrar numa coletânea impressa, uma vez que neste pouco mais de dois anos, temos uma produção razoável e a condição de autores nos enviesa constantemente o olhar ao passado dos escritos.

Desta feita, deixamos registrado um convite-desafio a vocês:

Selecionem entre 20 e 30 textos do Blog, especificamente literários ou poemas (reviews de livros, discos ou filmes não entram), e enviem um índice formatado em sequência para: palavradeontem@gmail.com (aqui palavra não tem “s” mesmo) ou para jmattosneto@yahoo.com.br.

Podem mandar indicações de textos avulsos, porém aquele que enviar um índice inteiro e este for escolhido, receberá um prêmio do Palavras de Ontem.

Contamos com vocês para participar e divulgar a idéia.

Atenciosamente,

Palavras de Ontem

Curtas Mensagens e Nomes Sozinhos – finalmente no prelo

Desde que fui morar fora por uns anos no começo dos anos 2000, comecei a coletar seriamente alguns escritos que iniciara nos anos 90, quando tinha mil tardes com nada para fazer e sentia, sinceramente, que iria morrer muito jovem. Coisas de personagem Camuniano.

Fato é que este trabalho de coleta que já acabou há algum tempo, teve sua primeira revisão feita pelo Wagner Caldeira e voltou para a gaveta. Algum tempo depois incluí coisas novas e, desde a última revisão pessoal, conto uns seis meses.

Resolvi encarar um conselho editorial e parti para uma conversa com uma editora para lançá-lo.

Então, anuncio em primeira mão que dentro em breve (espero realmente ser brevíssimo) lançarei um livro de escritos inéditos, chamado Curtas Mensagens e Nomes Sozinhos. E, como não estou concorrendo a nada, deixo uma prova do que será. J.M.N.

Mensagem primeira

Não é preciso falar em reconstrução de fatos, em histórias copiadas, vividas por mim ou outrem. Não se pretende falar de ninguém, tratar de nada específico e mesmo assim, isso poderá acontecer. Não há reproduções propositadas dentre os escritos, não há pesquisa biográfica ou intromissão intencional. Há sim muita fome de dizer, muitos ecos de coisas mudas, muitas noites mal dormidas e pertencimento. Há, nas linhas a seguir, a matéria que reside em tantas páginas do mundo, em tantos olhares de busca, em tantos desatinos e em tantas vidas desconhecidas e, por causa disso, talvez, há muitas coisas que reconhecer e estranhar.

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Mirabília

Quando as horas inoportunas desse sono desperto atraem memórias desagradáveis, lembro-me dela e deixo suas heranças devorarem meus tédios de solidão e o acre sabor do que ficou inoculado. […]

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Selvageria

O sangue deixou-se espalhar no silêncio do ventre e estancou. Elixir condensado da matéria viva que emanava dela. […]

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De mudança

[…] Os vizinhos olham remotos, como se fosse a derradeira platéia de um espetáculo muito antigo. Tão antigo que parte integrante de nossas próprias vidas. Ou simplesmente eles estão ali, entes vizinhos a morrer por dentro diante de nós, sendo encobertos por nossas sombras que vão aumentando, aumentando, aumentando. […]

V Festival Se Rasgum divulga programação

Retirado integralmente do site da Se Rasgum

outubro 19th, 2010 by serasgum

Otto, The Slackers, Dona Onete, André Abujamra, Graforréia Xilarmônica, Madame Saatan e os combinados Los Porongas com Dado Villa-Lobos e Odair José com Dead Lover’s Twisted Heart chegam para a quinta edição do Festival Se Rasgum. Serão mais de 25 shows nos palcos do Hangar (12 de novembro) e African (13 e 14) com o melhor da nova música brasileira.

Novembro é mês de Festival Se Rasgum. E de uma programação especial na quinta edição do evento que conquistou Belém com sua diversidade musical, trazendo entre suas apostas shows que vão do indie rock lo-fi ao ska-reggae, passando pelo brega, heavy metal, pop e guitarrada. O V Festival Se Rasgum traz a Belém Otto, Cidadão Instigado, André Abujamra, Emicida, Graforréia Xilarmônica, Cabruêra, Lê Almeida, Dubalizer, Graveola e o Lixo Polifônico e os shows combinados Odair José com Dead Lover’s Twisted Heart e Los Porongas com Dado Villa-Lobos, além de uma atração internacional, a norte-americana The Slackers.

As convidadas de fora chegam para contracenar com o melhor da nova música paraense, representada pela guitarrada de Pio Lobato; o flashbrega de Nelsinho Rodrigues; o experimentalismo regional com cúmbia de Félix e Los Carozos (projeto de ex-integrantes do La Pupuña); o carimbó da compositora paraense Dona Onete; e dois grandes representantes do rock locais: Madame Saatan – que finalmente se apresenta em Belém depois de mais de um ano – e a veterana Delinqüentes. Além das seis bandas que passaram pela aprovação do público e jurados nas Seletivas: Bruno B.O, Mostarda na Lagarta, Dharma Burns, Paris Rock, Projeto Secreto Macacos e Felipe Cordeiro.

Serão dois palcos onde as atrações se revezarão sem intervalos entre os shows, além do já tradicional Laboratório, que este ano receberá o tratamento do site Música Paraense (www.musicaparaense.org), que juntamente com a curadoria do Se Rasgum dará ao espaço (a boate refrigerada dentro do African) DJs, shows e projetos dedicados à música paraense. A estrutura do Festival ainda abraça a feira de moda paraense, praça de alimentação e Ecolounge (espaço voltado ao descanso do público e à conscientização ambiental), além de  cultura urbana, representada por ações de grafitagem e stêncil.

O evento terá ainda venda de CDs, camisetas e souveniers do evento, além de uma Praça de Alimentação diversificada, incluindo a culinária paraense.

Todas as informações sobre o evento estão no site www.serasgum.com.br. O Festival Se Rasgum integra o Conexão Vivo – iniciativa da Vivo voltada ao desenvolvimento do setor musical brasileiro – e será transmitido ao vivo pelo Portal www.conexaovivo.com.br. O Se Rasgum é filiado à Abrafin – Associação Brasileira de Festivais Independentes.

Complementando: só André Abujamra, Los Porongas e Odair José já valiam o ingresso. Caras o site tá sensacional. Todo apoio que vocês quiserem.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Que os outros embarquem em nossas sombras voadoras

Inspirado na música, Tonight we fly, The Divine Comedy

Hoje escaparemos amor. Vamos direto ao gosto bom dos morangos e da saudade. Esqueçamos alpendres, teias, janelas que não foram abertas. Hoje voaremos, feito mil flamingos intrépidos engolindo a tristeza da tarde com seu grená muito vivo. Um céu de esperança só nosso, com nossas asas sendo invejadas pelos que ficam.

Hoje acordaremos a cidade enquanto escapamos amor. Faremos sons de felicidade irreconhecíveis, pois ninguém saberá do que estamos explodindo. Podemos roubar uns pães para a viagem e leite e frutas doces para cabermos apenas na fome que nossa biologia nos der. Afeitos ao tamanho de nossos corpos, cujas sombras quintuplicadas chamam atenção lá de baixo.

Deixe que corram para mastigar nosso vulto que escapa. Estaremos um no outro em altura e possibilidades. No infinito de um tempo que apenas nos serve água e proteínas. Hoje, amor, faremos ruínas daqueles que pouco sentem. Estaremos dormindo quando o mundo descobrir que nos fomos.

Abra bem os seus olhos, amor, acorde dessa mimese de antanho. Seremos os mais originais dos seres vivos. Veja-os correndo para alcançar nossas sombras. Pouco sabem de nós que os iludimos. Pouco sabem de nós que os insuflamos e inspiramos. Vê amor, correm acreditando que estaremos sobre todos os limites deles, além dos picos mais altos de seus desesperos e esperam sonhar conosco, desejando chegar onde estamos agora. J.M.N.

Para ler escutando…

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Bournemouth Diaries I

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Centro de Bournemouth

A vista de minha janela dava para o mar. Sentava no parapeito toda tarde, olhando o frio se formando na janela e depois seguia para praça central, esperando amigos trazerem café e pães. Pensava estar ausente de mim, como quando deitamos sob o sol e dormimos, ao acordar com olhos distantes pela claridade que mesmo dentro das pálpebras alcança a realidade, estranhamos. Suspensão da realidade. Um estranhamento feliz de ser um garçom com título de psicologia. Lavava louças com a jovialidade de meu filho. Acordava em temperaturas negativas. Cortei o cabelo com um cara que dizia cortar bagunçado. Fui simplesmente um cara numa terra distante. Quando estava em questão minha volta, a única sensação é que não devia. Fisicamente deixei Bournemouth dia 04 de janeiro de 2004, mas a cidade resiste nas fronteiras mais gentis de minha saudade. Assim como as pessoas que me alcançaram por telefone este fim-de-semana, dizendo que estão a esperar que eu leve o vinho para casa. J.M.N.

domingo, 17 de outubro de 2010

Cartas a ninguém (16.10.2010 – 07:41 a.m.)

Montpellier, 08.12.2011

Querida,

Menti.

E acreditei que o fazia por ti. Por mim. Fazia por alguém, afinal. Mas fiz por ser esta a condição nossa de cada dia. Menti, pois podia mentir. Só isso. Simples e duro como assim escrevo. Mais que toda a confissão, está plantada nestas linhas de agora, a única razão para eu ter feito o que fiz. Tinha todo direito de ir e vir. De fazer-me. De deslocar minha afeição para uma outra boca faminta. Para a dona do infeliz tesouro de mãos macias como o assoalho do paraíso.

Antes disso já estava em dívida com a verdade, uma vez que me tinha, porém não me exercia. Agora vejo uma tarde vazia com outros olhos e não espero o telefone tocar. Tudo tem um preço. Ser o que se é! Ato mais desumano que uma mutilação proposital durante a guerra. E preciso convencer meus pés que afinco e dor são bons quando estamos em paz por dentro.

Não sei como fazer diferente, meu amor. Não sei existir sem mim. E este ser que me reclama o tempo inteiro é tão maior que minhas preces, que já as deixei apenas em registros por onde passei. Na Lusitânia, deixei minha genealogia em silêncio. E voltei. Por sobre todos os avisos de ficar. Voltei para ser o que não era e já quase sabia. Menti que voltara. Não voltei. Mas aquilo – ou aquele – que deixei por lá, já não o quero.

Mas queria te dar mais um beijo. Mais uma noite inteira dentro de ti. Queria te ouvir dizendo que somos feitos um para o outro, na conjugação presente. Pendo mais para o lado do Mediterrâneo agora. Uma costa ensolarada para fazer pães bem frescos pela manhã. E ao deitar do sol, no fim da tarde, pensar no cheiro que teu corpo me deixava depois de estarmos. Pensar que meus atos todos foram dentro da minha poesia apenas, que não te causei dor.

Queria, pois, voltar a mentir. Sob um céu naturalíssimo de sonhos, aguardando voltares com o café.

Sinceramente,

J.Mattos

Um nome na pedra

Pardais cantam pousados por sobre ti. Estás dentro, bem dentro de tudo quanto me rege. Infatigável e prenhe como um ser vivente, mas és memória, outrora, passo dado quando eu morria de amor. És maior que os maiores cálculos de rim. Me dói agudamente pisar em teu nome quando acordo em susto. Dói como um novelo desfeito às pressas, sem saber para que serviria sua linha; deixou de ser e se espalhou agoniado. És meu noivado permanente com a morte, com a inocência sempre negada. Vejo meu pai deitado à tua porta, esperando nascer. Vejo minha mãe catando conchas nas tuas praias, sem sentido. A frater acometida de inveja, idolatria torta e mastigada.

Teu nome é mais que aviso. É um marco na légua primeira de mim. É subescritura de um romance antigo, ditado por histórias inacabadas. Eu procuro a estrada, o caminho. Segui-lo, apesar de ti me faz maior e mais exato. Quando acordei no dia de hoje, não eras uma pedra em meu caminho. Eras parte de tudo que carrego comigo. Não há perdão, pois não precisa haver. Não há derrame, pois minha circulação e minha pressão sanguínea se acostumaram à tua presença. Cansado e desperto, cantei uma música que aprendera com a desculpa de ser eternamente infantil. Isso libertou meus olhos. Cravei minha bandeira em teu coração. Qual fosse novidade para teu temperamento de estada, de permanência, me deste silêncio.

Teu nome abordado por meu grito foi apenas o começo. J.M.N.

Para ler escutando. Porque nem tudo é o que parece ser…

Quem me soube antes de mim

Liguei para quem podia escutar o que quero dizer. Não era para acontecer resposta. Apenas o silêncio. Falar nessas circunstâncias requer um eco que apenas se sente dentro, no epicentro do sentir, pulsar vibrante que é saber-se igual a outrem. Liguei para saber-me infeliz no estar, no permanecer. Uma causa que não resguarda brilho ou moral de jeito algum. Ficar só por ficar. Para ter meu quinhão na promessa dos outros. No ocaso de vidas sem ímpetos ou realizações. Liguei para escutar sins. Enquanto eu falava todo o plano para ser gente e completo, ouvia lembranças de tempos antes de eu ser isso que acontece estragado no espelho: estava tudo escrito, não tem remédio. E ao lembrar de quem me disse isso, fiquei feliz. Afinal, havia quem me soubesse em 1986. J.M.N.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Dívida

O que devolver a ela? A pergunta me cala. Sempre ornado de desamparo, mas não agora que ainda me pergunto. Quero retribuir tudo quanto fui feliz. Quero unidade. Vitória é palavra caduca, não tem forças para me premiar. Eu vejo pouco, a inundação chegando. Quero dar de volta o que ela me cantou noite a dentro, pernoitando em meus sonhos acordada e eletiva como uma matéria indesejável para si, sem saber que era imensa dentro dos meus olhos e do meu silêncio. O que devo retornar à sua ilha? Um bote salva vidas? Uma corda para a força? Tenho essa dívida de juros altíssimos que me desconcerta. Por ela eu faria qualquer coisa. Como não sei rezar, geminar camas e dividir cobertores deixo a canção. Cansado de esperar o que dizer. Está dito, pago minha dívida sempre à espera. J.M.N.

O que estava ouvindo ao escrever isso, ao confessar minha dívida…

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

ww, ponto, como assim?

Ela escreve de uma terra que não sei se existe de fato. Terra em que celulares falham e tudo cheira a mato seco. Lá longe tem um tempo em que nos cometemos. Crimes de ultrapassar limites. Abertamente impedidos. Mais assim que antes dos tempos. Beijo na chuva para que não acontecesse esquecimento e depois caminhos atrás do que era certo. Mando agora uma mensagem, nessa rede de cyber-fuga e acasos, atiro certo para que saibas: te soube sempre. Dentre as melhores lembranças de um ano atropelado. Melhores cheiros que a noite sempre lembra. J.M.N.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Quando eu resolvi me esquecer

Sem dó nem compaixão me esqueci. Dia cinco de mês e ano quaisquer. Em meio ao abraço, desaparecido. Promessas de eternidade quebradas. Amado eu já tinha sentido ser. Porém não naquela altura. Tinha esquecido qual era o gosto de saber-me. De qualquer jeito, acabara ali minha unidade com meu antes. Deu-se um salto no tempo em que tinha para relatar-me feito história acontecida. Não disse nada. Você não me obrigou e mesmo assim eu fiz um discurso de abandono. Fiz meu monstro literário nascer bem ali. Escrito a sangue no primeiro dia de meu esquecimento.

Você não tinha culpa. Não tinha peito. Sequer uma cama para abrandar minha luta. Não tinha fósforo para o incêndio. Eu me despia e era seu apenas isso. Um nó no peito. Dó de não me ter por perto. Endireitado como um esquecido. Como um violado. Minhas palavras nasceram sem mãe nem pai. Deuses e Diabos contribuíram. Carne de primeira aquela sua. Jamais voltei. Perdi o terço. Minha avó sabia quando me indicou Santo Expedito. Estou preso em mim. Esperando do lado de fora, entrar. E vejo saindo os arrependidos, os mal vividos. E eu não saio nunca.

Você não tinha jeito. E eu não tinha direito de ser sem mim, antagonista desta vida inteira. Tanto quanto eu, você era sem ser. Não tinha trejeito que recompusesse. Eu sabia tão pouco sobre mim e mesmo assim, fui adiante. Vê se me esquece. Cresce e desaparece. Nunca mais volte ao passado que lá eu sou apenas meu. O que escrevo, escreve-se e fala sobre amanhãs e postais. Meu monstro dorme insuperável e eu, apenas esqueço uma ou outra palavra. Meu bicho, se você não sabe, é uma mulher que nunca existiu. J.M.N.


Para ler escutando...

Porque santificado é o corpo que me rendeu descanso e paz

Antes de ser dela, era apenas um lugar distante isso que chamo de amor em seus ouvidos agora. Era uma serventia oblíqua às impossibilidades de um passado raso, logo atrás deste meu descanso de agora.

Antes de entornar meus pesadelos em ralos colossais para fora da cidade, eu costumava defender a única certeza que tinha com tamanho afinco que não suportava dizer que ela existia ao meu lado. Mas está lá. Está aqui.

Dorme, quieta e profundamente em meus braços. Açoitada por uma caminhada apenas. Sua dor é sabida e gerada de um dia na procissão que não acredito. Respeito os dons de quem sente pelos seus pés cansados e inchados de agora.

Ela é real e simplesmente sente. Como eu já não sabia que era possível. Cobra o que tem de cobrar e dá tudo o que tem. Ela renovou meus créditos com deus. Fez de mim um porto. Talvez não o mais seguro, porém um muitíssimo desejado.

Minha felicidade consiste em cuidar do seu cansaço. Entre o bem e o mal de nós todos, há sempre a divindade de velar o sono de quem se ama. Além disso, apenas escuridão e desapego. Sinto saudades do corpo dela doído ao meu lado. Sinto saudades de uma pessoa, enfim. J.M.N.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Desengano

Havia essa pessoa que me atirava flores quando eu passava. Sempre disposta a entregar-me olhares e beijos. Ela tinha uma voz que me incomodava e dava plenitude ao mesmo tempo. Uma pessoa que me enchia até o limite. Olhava para minhas pernas e dizia que eram lindas. Ninguém jamais havia me dito aquilo daquele jeito intenso e pagão. Ela sabia que eu precisava de tudo.

Um dia essa pessoa deixou escapar que tinha uma sede extra de eu ser só dela. Como um exclusivo ser que se rende à força do cárcere e desiste. Deixou escapar isso enquanto eu ainda jazia entre suas pernas. Uma convicção que me deu esteio, mas que também desfez a miragem que eu erguera de mim mesmo.

Nessa noite eu quase não dormi olhando o sono ela. Tive a convicção de que se partisse para mais um beijo como aquele, estaria perdido. O dia amanheceu e eu resolvi simplesmente traí-la, sabendo que assim, era ela que ficaria em dívida consigo mesma. E não eu. J.M.N.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Palavras de Outrem II

Para Inez Donati

Inez Donati está na minha vida desde tempos imemoriais. É esposa de um grande amigo de meu pai, o Rubens, cujos filhos cresceram comigo até quando a geografia permitiu, pois a família mudou-se para Sampa em meados dos anos 1990. Tia Inez, como a chamo ainda hoje, é a responsável por minha primeira aparição no teatro, aos 8 anos, no espaço do SESI, em Belém, peça em que minha mãe fazia um leão e eu, um cachorro cuja fala foi mais improvisada do que seguida tal e qual o script previa. Ela me convidou para o lançamento de seu livro infantil em Belém e me presenteou com uma bela dedicatória (guardo pertíssimo de mim o exemplar). As lembranças da família Donati estão entre minhas galerias preferidas da memória. Hoje, Inez nos dá conhecimento de um texto seu datado de 1971, o qual foi inscrito em um programa de talentos do banco Santander recentemente. Comoveu-me muitíssimo a história e a pensa de que esta pessoa faz parte daquilo que tenho de mais caro em minha formação cultural. Queria abrir este espaço para um olá saudoso e para deixar com os leitores do Palavras de Ontem, as palavras de Inez no conto A Safira. Sigam o link é coisa de primeira. J.M.N.

A Safira – clique aqui

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Legião

do Livro sobre a Ciência do Esquecimento

Estejam convocados(as). Esta partida é mais para dentro que para adiante. Não tem porto nenhum e o ritmo quem dita, são vocês.

Estejam entrementes. Soltos. Dormentes. Estejam onde estiverem, mas venham. Amanhã sopra o vento do oeste e nada há que se esperar.

Estejam certos(as) que algo encontraremos. No mais puro ardor de um delírio qualquer estará o tempo. Este ser que não nos deixar pregar os olhos sem antes derrotar as rotas.

Estejam bem dispostos, pois que a batalha anunciada será titânica. Não haverá mortos, pois o amor se encarregará dos féretros e, portanto, estaremos a salvo.

Estejam atentos às palavras. Elas trarão os mapas. Farão as guias. Serão as léguas primeiras de nossas conquistas. A poesia se tornará uma nação e os poetas, os legionários.

Cantídio.

Micro-romance IV

Faz muito tempo que ando nesses prados. Já sorri para pássaros e outros bichos, mas agora tenho os passos atados pelo calor e pela água que respiro em gotas tangíveis, coloridas ao sabor de tardes mutiladas. Nenhuma casa e pouca bagagem. Além da vida, é claro.

Ela sabe melhor do que ninguém o que é ser cruel. E se basta. Passou a vida a escrutinar minha presença em seu sonho encharcado de valsa, amargo e beijos sem destino. Heroína de si mesma, ela dormita atravessada em minha pálpebra. Ouvia nela a expressão mais triste da poesia e tinha a madrugada inflamada de tanto pensar ser dela.

Uma ou outra liberdade me concedia. Eu o rei da casa de nada. Monarca das contravenções vespertinas. Os seios das empregadas nos quartos proibidos. Ferro sabor na língua que descobria que a paixão sabe a ferrugem. Ela sempre esperou meu primeiro dia de homem feito. E foi a primeira que me despejou deste lugar.

Não sou mais meu. Quem dera fosse de algum passeio, ou lago, ou quem sabe pudesse ser de uma porção de gente que se despede da terra para nunca mais, assim teria o corpo de caminhada, de resistência à fome dos presságios. Estaria legitimado a procurar menos trânsito, menos barulho de cidade.

Eu pago o preço por tê-la violado. Por ter feito sua loucura solta, danando-a espreitar meus cadernos em busca de outros finais. Eu pago o preço por tê-la feito nascer no corpo, dentro de si, para sempre insuperável. A estrada que se destina a me consumir inteiro. Pago o preço por ter como pagar. Por estar convencido de que posso pagá-lo.

Ela está bem melhor agora. Cheia de graça, suficiência e saudade. Andando de mãos dadas e sentido que deixou algo para trás. Eu com o nada conversando, redobrado em sendas e invernos e postais. Tudo no lugar errado. Como a vida permite estrear. Como deve ser, no fim das contas. J.M.N.

Arqueologia da reconquista

Há um sítio em mim, no qual evito escavações, arqueologias. Há neste lugar secreto e dolorido uma marca que ninguém há de entender. É como um risco de faca que pouco sangrou ou mereceu cuidados e mesmo assim, atualiza a dor mais constante de minha carne e de meus sentimentos. É neste canto ferozmente defendido e atávico, que recordo as coisas mais infantis sobre mim e meus anos passados, as perdas maiores e mais infelizes que tive. É onde assinei o trado de paz com meus olhos, consumei núpcias com minha loucura e firmei amizade com a solidão que todos temem e atacam. Não é um bem ou um tesouro. É um pedaço. Um furo no manto que se teceu sobre meu frio. Por onde passam dragões, carteiros, memoriais e palácios. Uma galáxia minúscula que contraria a regra física em toda sua extensão. Lá neste canto, nesta fusão de energia e lágrimas e amor ofegante, cabe você. O único elemento que jamais escapa ou falta. A única explosão atômica que não canso de repetir. J.M.N.