quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A casa de muitos dias e o adeus antes do fim

Leve-me para casa. Tantos dias se passaram e eu não sei mais o que está por trás do silêncio. As ruas daqui têm a estranha faculdade de reaver nossos passos. Ando solto por dentro, mas algo ainda me atrai ao chão desta terra que desde sempre não me comporta.

Volte a dar as cartas meu bem. Tantas coisas a dedicar violetas, cavalos marinhos. A beleza púrpura sob o sol incrivelmente quente daqui e a propriedade de os frutos do teu ventre caberem em mim também.

Enquanto preparas uma volta triunfal, apenas escrevo cartas e canções, fazendo com que os ruídos provocados por tua ausência tenham outro nome que não saudade. Tenham outro porto que não a solidão.

Enfim, me arranco aos pedaços. Caem minhas armaduras. Atravesso um semi-sono destituído de descanso, rosnando, punhos loucos pela batalha. Amor, casa comigo, no fim do ano? Ou pelo menos deixa eu te levar para ver as ondas que eu pularei na promessa de ser teu um dia.

Tua passagem por mim, aquele dia, foi um gatilho doloroso e rebordado em cacos muitos de tantas e tantas ironias, pensamentos e descuidos. Agora que me ouço por completo sei que deveria ter partido bem antes do nosso fim. J.M.N.

Para ler escutando…

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Quando ninguém mais pode fazer a dor passar

A noite não termina. As notícias do jornal do dia transformam-se em miudezas: aquele assassinato terrível; um menino na rua que pede colo, alento; pessoas morrendo de fome em algum lugar da África Setentrional; acordos políticos que levam o país à lama. Nada está em seu lugar. E, ainda por cima, o sabor dos alimentos causando náuseas, pedículos de desgosto tachando a língua de caminho, via aberta ao interior que dói imenso.

É quando se acostuma a falar adeus. A negar-se. Quando toda a pressa é pela próxima hora de claridade e sentir na pele que tudo não passou de um sonho ruim. Ninguém mais entende. O telefone não toca. Não há palavra suposta que possa amainar a tempestade que apenas cresce dentro da gente. Nem Deus, nem o Diabo. Cantos, sagrações ou espetáculos. Nada faz sentir menos pior.

O encontro desse momento é com a imagem. É com a dúzia de boas lembranças que acordam junto com todo escuro daquele estado. Um filho que toca guitarra e se inaugura homem. A Torre de Belém que ainda resiste ao tempo e às nossas falhas. Um amigo que liga distante e diz que sua falta é maior que tudo. Uma rosa tatuada nos braços esquecidos recentemente. Pão rasgado com suco. E mão benta que tirava mau-olhado com sussurros de reza secreta. Uma espécie de forma para amuletos perenes e desejáveis.

É quando a poeira senta. O dia vem. O riso tímido acrescenta músculos esquecidos na face. Na língua nasce um doce em lembrança de amor. A tortura dos órgãos de dentro é apenas a espera do alimento matinal. E a gente senta refazendo as escalas da fuga de trás pra frente, até chegar ao ponto que nos fez querer ir embora para sempre. De repente um pensamento imediatamente maior que nosso próprio medo: faz sentido lembrar isso tudo. Faz sentido, simplesmente. E a gente, num passo curto, inicia novamente o caminho de buscar-se, dia após dia. Eternamente. J.M.N.

domingo, 26 de setembro de 2010

As bodas do poeta

O cálculo estava correto, era hora de nascer. Não houve luz a mais que a do sol. O dia dormiria tranqüilo. Porém ele já estava. Fazendo acordos impensáveis com as palavras. Há tempos nasceu o poeta. Que ainda não se acredita tido. Possível estudante da arte de se encurtar. Como todo grande homem não precisa que lhe digam que é grande. Arauto mesmo de minhas letras mais mortais, apenas as canta no silencio evidente de quem sabe o que se quer dizer com o desejo pela morte. Um mundo inteiro que chama de sabedoria. A sua tem sete anos e parece que já lhe sabe melhor que ele mesmo. O poeta está parido, mas não acabado, não foi consagrado ou escolhido. É poeta por destino de chama que o consome tanto. Poeta, poetinha mais que amigo. Veio ao mundo e põe as roupas de ser amado. Imensamente. Eu não estava lá quando foi nascido o homem, mas estive e sempre estarei quando o poeta reclamar meu silêncio e tiver o que me ensinar. Como esta sua última pérola: uma guerra onde todos parecem estar alistados. Eles sim, poeta, você não. Ainda bem. J.M.N.

Hoje é o dia (ou “a Torre sob o sol interminável”)

Calma, já vamos começar a descer para a Torre. O grande rio trará o vento que precisamos. Vê lá longe, aquelas árvores que cercam a passagem para o mar? São as mesmas que irão se despedir de você quando esse dia chegar. A cidade está amena. Conhecemos o mosteiro. As curvas, os túmulos que visitamos. Pessoas que atravessaram nossos espectros amantes sem perceber. Deixamos lágrimas nas reentrâncias das pedras do lugar. Logo vieram os doces. Pastéis, canela e açúcar. Uma vida inteira pela frente. Julguei ali ter te atrelado ao meu sonho. Estava enganado. Vem, a Torre é logo ali. O vento frio te deixava mais afeita a carinhos. Uma primeira foto. Essa imagem morrerá comigo. Veio de Belém a nau que me fundou/o calado ao meio/cortava a água, feito certezas/nem vi o quanto me perdia de ti. E foi assim que cantei. Chegamos ao fim das sombras. Por trás de nós apenas o sol ibérico sorrindo. E uma torre que contaria as melhores histórias dos meus dias. J.M.N.

Resposta

Querido irmão,

Não sei se ainda há eco de algo aqui dentro, meu amigo. Escrevem-me de longe, de tão longe que parece outra língua, essa língua que me dizem ser a mesma que sai da minha boca. Minha retribuição é o silêncio quase sempre. E-mails, cartas, mensagens sempre têm como respostas uma frase vaga que, bem lá no fundo, quer dizer que cada um tome conta de seu rebanho, porque meu pasto anda tristonho e cheio de nada.

Não foi o caso da tua carta. Ela trazia a tua versão do horror diante da vida que eu também sentia. Do desejo escapista e definidor que era meu desde antes de lê-la. Ela batizou a minha parte sombreada, sendo ela o rol doloroso dos meus despojos de agora.

Não sei eu o que te dizer até agora. Talvez não seja pra dizer nada mesmo. Pequei por não avisar que a li sem chorar ou me preocupar. Pequei por não dizer que até sem intenção somos irmanados e que breve estaremos juntos, com café ou cerveja, e um longo período em silêncio para colocar os desassossegos em dia. WDC

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Micro-romance III

“Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras.
Se pudesse, diria a ela que fosse embora;
mas tenho uma mulher atravessada na garganta.”

A noite - Eduardo Galeano

Tinha em suas mãos nada menos que todos os ímpetos dele. Modelava-o feito balata. E feito um guache colorido se usava dele para pintar seu dia. Tinha fuga e desamparo o sorriso dela. E certezas, à guisa de planos e festins. Era uma pessoa destinada a ser amada até as últimas conseqüências. De maneira inconseqüente, idem.

Pela primeira vez tinha tanto que não cabia. Não se coube, afinal. Hoje é sabido. Pela primeira vez tinha votos de eternidade sentidos no mais fundo céu de suas ilusões. Não se permitia saber-se adorada. Tinha um império a dois nos braços dele, nas palavras mudas que saíam respiradas quando ele velava seu sono.

Ela ficava desajeitada quando ele tentava dormir em meio a seus pesadelos. O agrado sonolento que lhe dava não era suficiente para acalmar seu medo de perdê-lo, de perder-se. Sentia-se secretamente perdida – avião sem sonar.

Saia todo dia a trabalhar e ligava uma, cinco, vinte vezes para confirmar se ele ainda estaria à sua espera ao fim do dia. Interpretou tantas tragédias e sátiras e outros teatros, tantos cordéis e ventriloquismos que cedeu à surpresa de ser amada tanto. De encontrar-se em meio ao romance eterno que era a vida dele, sem medidas finais para dar-se e esperar cada vez mais.

Tudo, tão intensamente, que não compreendia.

Tão devotadamente que seus limites libertários e instintivos desnutriram-se e a fome passou a ser por descobrir-se, convocar-se novamente a um poder de azeviche. Ela enterrou suas chances na mesma terra prometida dos punidos, com aléias para campos de girassol e barrancos para infernos magistrais. J.M.N.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Palavras de Outrem I

Algumas vezes transformamos em posts, algum comentário de nossos seguidores, amigos ou visitantes anônimos. Desta vez, nosso grande amigo José Aremilton de Oliveira nos brindou com um pequeno texto, fundo e denso, como constumam ser os textos de excelentes escritores. Este nosso amigo, inclusive, já teve uma de suas obras publicadas em edição de concurso, com menção honrosa. Tive a grata satisfação de estar presente neste dia. Seu texto é um comentário sobre a postagem “Micro-romance II”. J.M.N.

“A memória daquele que ama guarda certas cenas do outro amado feito relíquias raras. Nela, é como se tais imagens não fossem simples banalidades corriqueiras, cotidianas. É o caso de um gesto, de um modo de sorrir ou – como no caso de nosso herói – de uma forma de sentar. O corpo do amado é um objeto repleto de ornamentos. Vale a pena observá-lo porque ele é a prova tangível dessa sublime existência. É o exercício de contemplação a que se entregam aqueles que amam, no ritmo tácito e imperturbável que estabelecem com o amado. Fora desse diapasão, a mesma cena, o mesmo gesto, tudo perde sua aura mágica. Torna-se uma “metáfora corpórea desajeitada”. Mas se a partida do outro amado não implica “sua sepultura, suas cinzas espalhadas” é porque a memória amante ainda é um delicado relicário, onde a figura do amado ainda exige reverências e atrai certo êxtase devotado. Sim, na memória daquele que ama jaz toda a estética da ausente figura amada.” (Arê)

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Ehrenwort

Relíquia que só abrasa intransferível saudade, queda sobre meus olhos cansados uma porção de sono bem perto dos deuses para que eu faça um pedido
Um pedido apenas
Que me seja revelado onde e quando ponho fim à carta de escrevo com o sangue próprio dos agradados da noite, da procura aventureira pelo cordel dos arruinados de amor
Onde estará a derradeira linha de chegada dessa competição desleal e inglória?
Onde estarei eu depois que me forem dados os aplausos do fim?
Caso me procurem os credores, direi que prefiro estar em teus braços, permanentemente endividado e indisponível. Dama da noite que se assemelha á minha própria imagem do espelho
Afinal, é de semelhantes, que se faz voraz a fome
E dos mesmos atestados abstratos, rótulos secretos, maneiras terríveis vicejam a investidura para correr pelo mundo confirmando-se, sendo inteiro até na hora da morte. J.M.N.

domingo, 19 de setembro de 2010

Micro-romance II

Sentava de um jeito próprio. Arrumava o corpo delicadamente depois de já pousada na cadeira. Era disso que eu mais me enchia nos momentos em que ficava apenas observando sua existência. Momentos assim antes de perder a cabeça, antes de espantar a suavidade e tornar-se uma pessoa realmente desagradável. Era assim que eu a via. Era também assim, com dívidas e dividendos que eu a amava surdamente.

Estava sentada do mesmo jeito seguro e fixo daqueles dias, porém sua metáfora corpórea era desajeitada. Senti naquele instante que estive nela tanto quanto ela esteve em mim. E ainda que por cima de tantos desastres, soubemos, um de cada lado, que havia miasmas e filigranas juntando nossas vidas. Eternidades em fios finíssimos no meio dos olhares apagados e sozinhos que nos prestavam homenagnes irreconhecíveis.

Vi que se queria vingança entre os seus. Que um estava pronto para matar e morrer por ela. Assim fora sempre. Mas me detive em amá-la quieto. Odiando sua passagem por minha vida. Amando ter conquistado o que ela me oferecera e, definitivamente, respirando um ar livre de qualquer tormento ou insígnia espúria – um ex-amor validado e fundo.

Depois que a tarde caiu pesada sobre meu corpo, a única imagem que advinha das náuseas mais secas e dilacerantes de minha solidão sem fim, era sua imagem. Seu busto urticante e franzino despedindo-se da razão como a qual eu decidira me reconciliar no exato momento de nosso fim.

E vi que não lhe cavei sepultura, que não houve cinzas espalhadas pelo vento de minha imaginação. Curiosamente, ela foi a primeira que mostrou se poder continuar com a vida sem matar lembranças ou despedaçar objetos deixados pela casa. Ela foi a primeira que me mostrou ser o amor um romance de mil personagens malditos, de mil soluções e enredos, como é a vida para aqueles personagens que dispensam seus criadores. J.M.N.

O que acontece quando se revê um grande amor?

É quando se engole a seco a comida, desejando-se não estar naquele lugar, sob o julgamento de seus olhos ferozes, sob o pretenso abrigo de quem apenas chora ao seu lado sem dizer verdade nenhuma. Um dia que se transforma em pressa, seqüência ordinária de horas e minutos. Os seus olhos não participam da realidade em redor. Tudo tem cheiro de dissabor e vontade. Mil perguntas guardadas e flechas prontas para ferir e acabar com tudo. Lembranças de mensagens antigas. O que sempre se teve em mente explicar, mas não deu tempo. A última e devastadora confissão de quem tentou fazer tranqüilidade em um campo minado. Também no peito que sangrou em silêncio, um corte fundo até os ossos. É desconcertante ter um mundo de coisas a sentir e dedicar, mas apenas fazer caber na boca, o alimento prejudicado por uma presença que atiça o melhor e o pior dentro da gente. J.M.N.

Sempre tantas coisas a fazer

Para tudo que nasceu em mim entre a costa sul da Inglaterra
e as alamedas de Coimbra, e continua a ecoar

Sempre tantas coisas a fazer. Gostar de doces novos sabendo a pele morena. Recompor o álbum de fotografias. Deixar de gostar do beijo de sempre. E entrar para toda vida no hall dos abandonados. Tomar elixir de esconder os anos. Olhar certo para o meio das pernas de alguém. Sempre tanto atropelo, tanta via congestionada. O dia-a-dia se resolvendo com um adeus. Saber dela nos braços e outro enquanto compro livros. Encontrar um bom par de pernas para admirar e escrever um poema. Desejar estar morto no fim do dia. Ter raiva da desatenção do chefe. que te expõe como um peão escartável o jogo. Ter mais raiva ainda do amigo que jamais entendeu a sua carta suicida. Sempre tantos danos causados, sempre sessões de tortura. Um ano inteiro pensando no fim. Encontrá-la na fila do aeroporto, do outro lado do mundo e dizer que sente muito, enquanto ela faz o check-in. Morrer de overdose num bar na Dinamarca prestando atenção no porto de uma cidade linda. Escrever para parentes enterrados, para avós sobrenaturais que invadem o sono e cobram caro terem sido seus ancestrais. E não saber o que dizer quando ela pede para ficar em sua casa. E querer ensinar-lhe a fuga quando finalmente ela usa a palavra amor. Sempre uma fossa guardada no bolso. Sempre um rodeio para chegar aos seus confins. E o som da sala toca Beethoven e rock inglês na mesma altura. Estou costurado a um passado mais dos outros que meu. E nessa convergência de danos, surpresas, encontros e agravos, pergunto como posso te amar, quando a noite teima em crescer dentro do meu coração? Sempre tenho boas respostas para perguntas assim. Mas acho que hoje, vou deixar o destino me pregar uma peça. Vou deixar a história em suas mãos. J.M.N.

Para ler escutando…

Notas de rodapé #8

É algo que já não consigo disfarçar. Uma raiva crescente de tudo. Desde que rejeitei ser o que os outros queriam, sinto-me estranhamente livre, porém raivoso e cruel comigo mesmo. A ponto de enjeitar carinhos e cumprir mais cedo as tarefas apenas para desistir do dia antecipadamente. Não sei do que cansei. É como um romance sendo escrito entre as muitas dúvidas que me irrigam. Um a um meus medos dissipam, mas ainda não tenho certeza de ser isto uma benesse. E se nos olhos alheios não fixo meus quereres, talvez ainda não esteja pronto para querer algo além de mim. J.M.N.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Micro-romance I

Era pouco mais de uma vida. Tinham sido entregues um ao outro no espaço tempo daquele lugar. Ruas alagadas por todo lado e a cidade resmungando seus filhos descuidados entre mau cheiro e umidade.

De repente fazia sentido partir. E fazia mais sentido partir sozinho, debruçado em literatura estrangeira. O ar viscoso das ruelas e esconderijos empatando a respiração da carne havia tempos e o naufrágio do olhar de esperança, devagar e longo, sabendo a abandono e isolamento.

A comida com o mesmo gosto de sempre. A pergunta veio como um tiro, te importas se eu me mudar por uns tempos? Não lembraria a resposta, mas sim a cara que ela fez. Uma irritação interminável de ter que responder. Apenas aferiu que era tempo e, hum, hum, vai.

Pouco tempo depois a poeira tomava conta das cartas de amor e das roupas dele esquecidas em seu armário. Fora do tempo, a lágrima dela parecia mais por si do que por ele. Onde estavam os dois?

Ela dentro da mesma questão uterina e agravada, serei completa? E ele no pandemônio das entregas de si a tantos cuidados e pouquíssima referência... ainda vou fazer de importante na vida! Isso tudo passou e as mesmas dores de coluna persistem. Bem na frente da janela de cada um, milhões de oportunidades. E a espera que passem, sob o olhar de espera um do outro. J.M.N.

O que mais ser?

Minha dúvida é apenas uma rua sobre a qual quero teus passos diários a descrever caminhos.

Meu grito é apenas o descuido de não ter sido aceito ou ter sido rejeitado de maneira rude e meu sorriso libertado sem mais razão, apenas sinal de afeição e entrega, em vez de um sono sobre o ódio desavisado dos medíocres.

Quando sou rijo e sem rodeios, sou aquele que sangrará ao teu lado desde que a luta seja justa e tenhas braços quentes para quando vier meu medo.

Minha lágrima representa a oportunidade de sofrer e estar refeito para refazer quantos mais estiverem duros, sem quase estrutura para andar de cabeça erguida.

Meu grito é a música entornada das bocas a reconhecer que a fome é a mesma em todo canto.

Caso queiras que eu seja qualquer outra coisa ensejando não me aceitar. caso a força desta minha entrega de agora não chegue a obter teu carinho, ainda assim, estarei sob o mesmo manto de estrelas que admiras e isso, simplesmente, é a melhor razão para olharmos na mesma direção. J.M.N.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

No chão dos astros, à distância

Minha vida era uma festa mal começada, iluminada, mas sem canções, sem os guizos de anunciar chegadas. Minha vida era uma única via sem cruzes ou deformidades. Era um paraíso de mesmas formas, venturas iguais. Eu vivia de porta aberta a esperar uma invasão, um assalto que fosse me cobrar o que eu não tinha. Tinha formas mais repletas de sentido e mesmo quando me sentia amado não estava entregue de todo. Quando te vi passar com os passos nobres e esguios, anunciando a boa safra de grãos e cheiros e enfeites, pude entender que minha vida não começara e essa razão repentina me fez abandonar a segurança de minha casa, pôs-me a correr pelas ruas lamacentas da cidade, escorrer nos dejetos dos becos e a freqüentar as casas baratas por onde soube que passavas. Minha vida era uma moratória interminável, uma dívida milenar. Naquele dia em que te vi passar vendendo inutilidades me botei disposto a sonhar, como jamais havia feito em meus dias. E te encontro em tantas ruas, com tantos homens a vender teus quitutes e entregar tuas formas que não cedo à vontade de me aproximar. Talvez alguns seres sejam como tu, forjados à maneira de impossibilidades, prontos a mudar nossas vidas sem jamais ofertar vizinhança. J.M.N.

Cântico do não estar

De escuros e verbos e mil formas da tua face
Forjei minhas notícias
Meu amor morreu de coração exposto
Um bandido capturou seu pedido de fugir
E encontrado à estrada, à míngua
Deixado por mim, em estado lastimável
O verão trouxe apenas o calor
Meu amor estirado no chão
Eu sabia que ela gostava de anil
E como ninguém lhe disse pare
Caminhou direto à língua gigante do mar
Pagou com sua vida, pela minha covardia
Eu que tanto amei sua beleza
Fiquei interditado na sua ida
Uma vaga aberta, meu peito desafortunado
E, para sempre, entregue à sua ausência.

J.M.N.

Uma noite há 15 anos (ou Sábado no Caverna Club)

É isso ai! Coisa Pop Apresenta nº 4 aconteceu conforme já havíamos anunciado. Mas não foi apenas uma noite sensacional. Foi a conclusão de um sonho despertado em meados dos anos 90, quando um bando de caras que apenas gostavam de música pensavam em fazer festas com bandas autorais e DJ, dentre estes cara, estava eu. E o Coisa… foi justamente isso, um retorno.

Não havia muita, muita gente, mas quem importava estava lá. Tivemos altos papos com o Angelo Cavalcante do Veia Pop, amigo esbarrado desde os idos da década passada. Aliás o Veia Pop passou oficialmente à categoria de site e está excelente, tanto na apresentação quanto no conteúdo. Marcelo damaso e sua inconfundível verve foi companheiro de deleite também.

Tivemos ainda o grato reencontro com o pessoal do Suzana Flag que estavam lançando o novo CD, o qual, com certeza merecerá espaço exclusivo no palavras. Podemos ouvir coisas novas em: http://www.myspace.com/suzanaflag, porém, bom mesmo é ver o trio no palco.

Elder F. juntou-se ao Joel, Suzane e  Ricardo e formou novamente o Suzana do primeiro disco. Nostalgia pura. Na cabeça muitas lembranças de pessoas que por alguma razão não puderam estar lá (Clara Matos!!!) e outras que a vida levou para outros cantos do globo ou da cidade (Velton Coelho, Ricardo Lago, Alex, Rui Oliveira, Tereza Canto e Arthur Maldone).

Mas não tem nada não, a verdade é que somos feios, mas temos a música, como já disse Leonard Cohen e, portanto, teremos sempre espaços assim, enquanto coisa, veia pop e palavras de ontem forem atos e tradições de caras que gostam de se reunir para escutar música e falar da vida, além de assmuir as pick ups quando dá. J.M.N.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A minha salvação

Normalmente eu choraria. Destruiria o que viesse primeiro em minhas mãos e depois sentiria uma culpa gigantesca e traiçoeira que me levaria da aptidão à comédia, ao mais barato folhetim de jornal antigo. Um estrago de violinos e oboés como sons ao fundo.

Ensaios nunca faltaram. Minha morte se anunciou algumas vezes. Mas não naquela noite. Não dentro daquele cheiro que me deixou noutra esfera. Deitado calmamente junto aos pardais do outono. Aquecido e retumbante como os sagrados tambores dela.

Daquela vez eu simplesmente olharia o fundo do poço como um outro qualquer. Não seria escuridão ou lágrima ou deserto de abandono. Garrafas de vinho secas, não seria. Não seria déspota, medíocre ou raivoso. Seria eu. Pequeno ou grande como fosse. Seria eu.

E bastou um segundo de sua lembrança morena. Um beijo reticente no início de tudo para eu explodir e fervilhar discursos de amor eterno em marata. Peito expandido. Um crucifixo veio e partiu. Meus braços cerrados em abraço são da imanência, como minha carne de beijar e sentir medo. Tudo apostos no mundo real.

Naquele exato dia em que pensei que findaria num cataclismo secular e brutal eu, na verdade, vivi. E vivi para ver nascer um dia de amparo e sono tranqüilo. Com minha fala pedindo colo sem quase volume algum. Em seus braços morenos eu reconquistei o credo e meu missal saiu do fundo da gaveta. Oro. Rogo para santos anjos protetores mais uma graça: que meu corpo escapulido de prisões e batalhas possa sempre viver mais que meu desespero para trazer na contração potente de sua lembrança, a minha salvação. J.M.N.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Eu vejo a vida da janela de um avião

Contigo eu não perco, eu ganho. Basta a fala dela de manhã para eu ser uma verdade. No sonho dela eu caibo. Sou como sou truncado e desimportante. Mas para ela sou maior que o céu. Cobre meu suor e meu cansaço a coisa dela gostar de mim. Porque sou levitado para dentro dos seus olhos que encontram o amor pela primeira vez. Não quero reconhecer enganos ou festividades para amores de outro tempo. Ela me olha e basta. Descobri que sou leve do seu lado, que sou usado. Mais indômito que suas possibilidades e que isso não a acomete. Não soa como doença, mal amar. Ela me disse que não anda querendo saber quem eu fui, só importa o que eu quero ser do seu lado. Foi a melhor liberdade que já escutei. Vejo a vida da janela do avião. Tudo tão pequeno lá embaixo. Ela não me espera, ela voa comigo. J.M.N.

Por tudo isso que sinto e se realiza…

Perguntas de Ontem XVIII

Por que vens e argumentas que houve aflição, desonra? Por que traduzes tudo a partir de tuas coisas tão vis e secretas? Acorda! Bebe a água pura e limpa as feridas. Está na hora de mandar tudo ao espaço. Enfrenta o encontro olho no olho. Antes de perguntar a razão das tuas feridas, pergunta o que foi que deixaste morto no peito alheio. Não espalha apenas a versão corrosiva de tuas derrotas. Não esquece que toda guerra tem sempre mais de um perdedor. Aquilo que não está em tuas vistas também foi desfeito. Aquilo que não diz respeito às tuas dores, apesar de não aceitares, existe e é história para alguém. J.M.N.

Pergunta de Ontem: por que tuas dores são maiores que as do outro?

A majestade do esquecimento

Lembra de quando era tudo verdade e as coisas saiam de nós, feito disparos de canhão, prontos a enfrentar tudo e todos que estávamos. Era um barulho só. Muito frio das histórias passadas, porém nada ficava em nossa pele. Sou bom ou ruim? Não sei dizer. Na verdade busco a glória de ter vivido. Escrever um livro sobre cada um dos acontecimentos daqueles meses. Muito raro o sorriso sobre aquele tempo, agora. Talvez o que procurasses não estivesse em mim e, de certo, o que eu procurava não estava em ti. Mas é quando menos esperamos que descobrimos estas coisas sobre nós mesmos. É feliz para mim ser desimportante agora. Saber que estou num outro plano de ti. Tua indiferença é apenas mais uma mentira. Como tantas e tantas coisas em tua vida. Como tantos e tantos apelos do meu desejo. Volto aquilo sem medo ou culpa. Volto sabendo que esqueci o pior e que agora, moram em meus escritos e diários, as melhores façanhas que realizamos. J.M.N.

Para ler escutando e acompanhar depois

Feriado da pátria/92 – Memórias e Melodias

Fernando Pessoa, em seu poema minha memórias e meus dias, disse: “[..] Mas tu, memória, condizes/Com o que nunca existiu.../Torna-me aos dias felizes/E deixa chorar quem riu. […]”. Minhas memórias soam gratas, mesmo as mais doloridas, quando me lembro que sempre houve música e literatura nos meus ais e, principalmente, nas bem aventuranças. Nesta segunda-feira modorrenta em que não pude viajar por causa trabalho, comecei o dia lembrando do feriado da pátria de 1992, quando tudo era assustador e maravilhosamente novo e sempre havia uma canção para enfeitar as descobertas e tornar mais fácil revivê-las futuramente. Afinal, que mais somos, senão vida e memória?

Memória 1 – Tudo cabia nestes versos. Cantava para ela, mesmo que seu nome fosse outro que não aquele da música.

Memória 2 – Trancado num quarto cedido no primeiro dia do feriado. Sozinho eu descobria Adélia Prado, Gustav Flaubert e Manoel de Barros. O ouvido ainda muito arredio às identificações. Esperava a vida mudar escutando The The, pensando que num dia qualquer, tudo se trasformaria.

Memória 3 – Toda gente escutava axé. O melhor presente dos últimos tempos… um walkman, mantinha-me a integridade dos ouvidos. Indo para a praia do Atalaia, em Salinas.

Memória 4 – O primeiro encontro. Tudo aconteceu muito rápido e tortuasamente, como vento nas asas de uma borboleta.

Memória 5 – O último dia e o desencontro. Haveria de durar para sempre aquele dia na memória. Não como um infortúnio, mas como o dia que tudo havia mudado.

Até a próxima… J.M.N.

Território

Durmo as noites inteiramente agora. Durmo e me lembro daquilo que passeou atrás de meus olhos durante a ausência. Há tranqüilidade, firmamento. Existe cheiro e antigamentes no meu sono. Deito cansado e acordo ativo. Circulação refeita, todo impulso controlado. Existe calmaria e atrativos nas primeiras horas do dia como nunca antes na vida. Os planos acordam, estão refeitos. Muralhas e campanários para as minhas cicatrizes. Tudo soa e resulta. Uma terra reconquistada esse meu dentro de agora. Pronto para a busca novamente. Pronto para abusar de mim mais uma vez. J.M.N.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Enquanto eu traçava meus planos

Não havia nenhuma cobrança. Era uma espécie de culpa. Justificada apenas em si mesma. Não soube reparar este tipo de mal em sua existência. Depois vi que não era minha responsabilidade de todo. Fui correndo aos campos violetas me isolar, fazia parte da cultura intimista e estúpida da época. Ela dormia aborrecida enquanto eu traçava meus planos. Enquanto eu desistia aos poucos. Estava do outro lado de tudo. Muito aflito e corrigido em curso de colisão. Tinha dezesseis anos. Uma porção de eventos amaldiçoados. A raiva de não ter sido encontrado. Até que um dia ela bateu minha porta e me chamou para tomar um café. Uma vida inteira aconteceu naquela escada, há muitos anos. Eu era um servo. Hoje sou um amante destas lembranças. Ela passou por mim e tinha o mesmo cheiro de fruta silvestre. Chamei seu nome e ela atendeu com o mesmo sorriso imenso de outros tempos. Onde estiveste esse tempo todo? Foi o que ela me perguntou. Vivendo daquilo que me deixaste sonhar. Foi o que eu disse. J.M.N.

Essa era a sua música