sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Na memória dos postais

Dentro das linhas apenas o nome e a mensagem curta que atravessou mares e desertos para iluminar uma manhã nublada. Ademais, apenas o endereço onde chegar. De um lado a letra reconhecida de quem mora dentro da gente com a mesma importância orgânica de quem já se foi há muito. Do outro lado uma foto, um centésimo de segundo - tempo e luz de algum lugar. Uma mistura única entre a poesia da imagem que descreve pertencimento e faz viver, novamente, a textura e as vozes de um tempo congelado num cartão postal. A gente fica olhando aquilo. Olhos na foto, dedos nos sulcos delgados da escrita. Lembrando de quem possui aquela letra e tem o poder de nos deter todas as vezes que apanhamos no fundo da gaveta, a tal lembrança enviada de longe. É um correr sem amarras dentro do peito. É viver feliz e sem tempo, no mesmo instante em que se percebe que tudo agora tem o cheiro da memória. J.M.N.

Histórias para depois do sono IX

Ouve-se falar de danos, de desespero. Ouve-se falar que alguém perdeu o juízo de tanto pensar, de tanto querer. Sabe-se que, algures, pulsos foram abertos em seu nome e soluções de cianeto devoradas numa febre que não passa nunca. Jamais voltaram para contar se é verdade, se tudo passa depois que se vai. Antes que tudo anoiteça em definitivo, decidi me perdoar e viver meus infernos aqui mesmo, onde posso sentir os beijos e lembrar do gosto delicadíssimo dos olhos dela amanhecendo ao meu lado. J.M.N.

Memórias paternas 1

Aos 8 anos...

- Pai me dá uma mesada?
- Para gastar com o quê?
- Com uns brinquedos na porta do colégio.
- Você não tem vontade de comprar outras coisas?
- Hum... não, não, só os brinquedos mesmo.
- Algo me diz que tem outra razão de ser esta mesada.
- Tá bom, eu quero guardar para comprar uma passagem para onde tu moras.

Do outro lado do Atlântico um telefone ficou mudo, pessoas viram alguém que chorava copiosamente numa cabine telefônica. Era dezembro e fazia um frio indescritível. J.M.N.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Perguntas de Ontem IX

Ela te esperava ouvir. Vinha de longos dias essa vontade. Ela te pode matar ou fazer viver entre seus dedos, entre seus suspiros. Não quero ouvir seus suspiros, são como pedaços se desprendendo para nunca mais. Então fique com seu odor, sua voz enraizada naquele ano. Fique com o cio que lhe era servido no mero toque de braços. Mas eu liguei, sabendo que assim ela queria. Não ouvi mais do que sua voz desperta e longínqua. Então agora que todos sabem, espera. Espera que algo virá dos lados de lá. E se não vier? É claro que virá, nem que seja a pergunta que tanto temes que ela faça e que, talvez, queiras tu mesmo fazer a ela. Então eu espero e o faço da maneira que apenas sei fazer agora... em silêncio. J.M.N.

Pergunta de ontem: o que queres dizer com teu silêncio?

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O resto da vida e mais seis meses

Apagou as luzes. Finalmente o escuro era em outro lugar. Sentiu como uma responsabilidade se esvaindo, contra a vontade da história. Fazendo seu nome significar outra coisa. Fazendo certezas se tornarem meros acasos e à respiração, acontecer incentivada pelas denúncias de que ela ainda não saíra inteiramente de seu corpo. Então escutou a música. E tudo que poderia esperar silenciou. E veio justamente aquilo para o que não se prepara jamais. Ele está tão cansado. Muito mais do que suporta confessar. Ligara para dizer que esperava tanto que fosse ela. Mas ai percebeu que as tais linhas que recebera pelo correio, falavam de esperança. Cuidavam, mesmo na distância do anonimato, de quem as recebia. As linhas eram parte de um ato mútuo de entrega e espera pelo retorno emanado de estrelas em linhas descrito com a fluidez de um surto mental, ou simplesmente, escritos de amor. E foi ai que lhe fez falta a faculdade do vôo, a visão noturna. Seu corpo desistiu muito antes de si. Quando eu acordar, estarei melhor, pensou. E a imagem dela descrevendo as coisas naquelas linhas se desfez e finalmente ele se esqueceu de quem era. E entrou no templo já muito sozinho. Sem nada esperar do que sentia. Será preciso muito tempo para ele nascer novamente. J.M.N.

Muitos atos de desespero

Acho que estava certo. Pensei que eram apenas calafrios as passagens da morte por mim. Mas o risco é sempre um vento frio e traiçoeiro que se parece com muitas coisas desse mundo, inclusive um longo beijo, até mesmo a raiva contida. Na hora da estrela quero estar perto. Para fazer este testemunho ter valido à pena. Se assim vai ser, apenas o destino dirá. E apesar das estrelas cadentes e do céu em chamas, todos estarão lá. Mãos dadas na hora final. Tudo o que imaginas acontecerá no mesmo instante e ainda que agora entendas as linhas desses longos escritos de dias nublados, tua incompreensão reinará no ponto final. Atendeste. E isso a que me dedico debaixo da árvore dos meus desencontros, acontece sem a mesma envergadura dos meus anos de infância. Porque já não tenho a ilusão de saber tudo quanto perguntas. J.M.N.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

O pacto de Orfeu

Não acorda ainda. Já vai já. Essas imagens são melhores que as de antes. Não precisa de cobertor, o frio daqui é apenas saudade. Não, não força os olhos. Sente esse cheiro remoto sem medo. Nada vai acontecer. Prometo. Não insista ainda. Olha as longas tardes nos braços dela, morrendo desgovernadas entre suas coxas. Começava tudo num abraço preguiçoso. Ainda não posso te deixar ir. Seria como deter as tuas suspeitas e precisas tanto delas para o fim. Sente esse gosto, detenha-se. Olha bem nos olhos dela, agora que já não podes fazer isso em outro canto. Bebe a cor, o fundo das imagens que ela percorre. Acelera novamente naquela estrada, segure-a protegendo do acidente. Ela irá saber que foi amor. Ela sabe no fundo que não passa nunca. Tem cheiro novo nas curvas dela. Tem um novo rumo para tuas descobertas. Toca, ousa, desencontra. Ela sai do banho, uma ostra ferida trazendo suas pérolas. Aquelas que ganhastes por merecer fazendo riscos duradouros na carne dela. Finge que morreste. Vê se ela chora. Esse escuro é fora de ti. Ah, o quente do beijo, uma oração. Tua urna egípcia de guardar as cinzas que ela deixa para trás, depois que dorme. Sentes agora o calor da tua casa. Comunga. Unge. Derrama teus milhões de metades e pede-lhe novamente aquele filho. Agenda uma viagem e parte. E volta sonífero e louco pelas pernas dela. Já as batizaste. Já a denominaste por aquele nome curto e incisivo. Vou te deixar ir agora. Estás suado. Não fica preocupado, esses instantes estarão aqui quando voltares. J.M.N.

Redescoberta

Soube que foste lá. No exato dia em que eu completava anos. Pisaste novamente naquele território. Ela me disse que estavas esperando uma amiga. Disse-me assim, sem que eu perguntasse. Nunca pergunto nada. Não falo mais do que o necessário. Faço minhas compras e vou embora. O pão teve um gosto diferente naquele dia. Lembrei disso hoje pela manhã. E meu dia começou diferente, quase completo. Sei de coisas que gostarias de saber também. Como nossos sorrisos, como jantares em cima da cama. Algo mais, a saber. Coincidências? Acho que a idade me impede de acreditar nisso. Ainda bem. J.M.N.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O caminho do que serei

Já é um chão tomado, meu coração. Tem as marcas daquilo que será minha última morada. E penso num fim pomposo, com ajustes a fazer e pessoas a retomar. Preces eu deixei nas poucas igrejas por que passei. Um bocado do sagrado amor de endividar-se nos abraços em descoberta. Minha língua de falar se fez em frestas e mantenho o costume de ler as horas em quartos de tempo, para saber que se passaram muitos momentos em que pensava em ti. Meu coração é como um quadro pintado e retocado pelo artista noturno que não se contenta com sua obra. Não ter final é um desespero. Sou como um flagelado daqueles áridos poentes em terras de lá. E quase não encontro norte, meus passos mortos. Já tem tema, minha vida. Um inconstante acomodar de delatores e imprudentes. E tu. Cuja armada me tomou as últimas léguas. Cujos tratados dissolveram minhas certezas. E cuja boca inseriu em meu céu os teus dizeres. Anti-palavras de matéria insondável e pura, envergadura de deixar-me inconsciente. Teu beijo enlaçado, urdidura final de minhas paixões. Caminho sem saída por onde andei a encontrar o que serei. J.M.N.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ser como Sofia III

- Adivinha o que é isso.

Arregala aqueles olhos enormes e produz um som ínfimo fazendo um biquinho. Preciso colocar o ouvido bem próximo à sua boca pra ouvir.

- É o som de uma concha por dentro? Arrisco.

- Não, é uma mosquinha chamando pelo nome do pai. Agora essa.

Ela deita no chão em posição fetal. Reparo como a minha menina cresceu.

- É uma pessoa que acabou de perder um grande amor?

- Não, é um caramujo que viu o senhor com um punhado de sal e resolveu imitar uma pedra.

Ainda preciso aprender muitas coisas sobre a vida.

WDC

Jarro com lírios

Sei que a tua madrugada insone é dedicada aos teus anjos, por isso a tua presença arrasta um cheiro de asas doloridas. No entanto, aqui nessa epiderme desacostumada a afagos sutis, sinto a tua gratidão pelo bom dia, pela graça, pelo elogio. Agradeces silente num abraço breve e num sorriso de lado. Não és dada a gestos em excesso, mas tua presença ameniza o ambiente, como um jarro negro encerrando lírios recém colhidos. Teus passos têm endereço, sempre. Jamais vou te ver vagando, uma pena. Queria te encontrar sem destino por aí. Perguntar a tua pele sobre a alegria dos negros nas madrugadas da fazenda de meu bisavô. Perguntar sobre os meus santos protetores, sobre os meus atabaques, sobre quem fechou meu corpo para determinados prazeres, como a dança. Qualquer dia almoçamos novamente, e da janela vamos ver o mundo em chamas, viventes transitando por calçadas solitárias, reparadores tristes, namorados ardentes. Então brincaremos que somos amantes, marido e mulher, sócios num grande negócio, completos desconhecidos que sentaram na única mesa vaga de um restaurante lotado. A cada pessoa contaremos uma história diferente. Viveremos intensamente essas biografias inventadas, quem sabe assim apressamos o tempo, e nos tornamos parte da existência um do outro. WDC

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Iluminação

Claro que não podias ter escrito. Minha teimosia, às vezes, me desespera. Ainda bem que aprendi um ofício. Uma simplicidade de arrumar a mesa, fazer a recepção. Posso estar dentro de casa e protegido receber meus amigos, aguardar que falem bem de minha comida. Escolher um dos discos espalhados pela casa e voar nas horas que nada me prende a este mundo. E vou seguindo a descobrir que não sou perfeito. Que muitas vezes dediquei os melhores anos a coisas que não compreendia e das quais tinha medo de escapar. Não, não poderias ter escrito o que me calou. Há injúria demais castigando teus belos olhos, drenando o tom de me possuir em tua voz. Parte delas é para mim, sei disso. Outra parte, talvez, queiras deixar ao que não se apresentou ainda. Mas virá. Impavidamente como uma descoberta muito esperada. Poderá vir durante o sono. Durante as horas de vigília desencontrada nas tuas madrugadas. Poderá ser que nem as linhas que chegaram a mim, tangíveis como as verdades de um amor de manhãs preguiçosas e contas a pagar, de emblemas e erros crassos, mas sempre em construção... significando apenas o que seu nome quer dizer. Definitivamente não poderias ter te permitido aquelas declarações todas. Ainda não estás convencida de que somos apenas humanos e como todos, temos avessos e direitos, peles e fracassos. Medos e desejos. Queremos, às vezes, ter os cuidados que jamais tivemos. Que os apelos e sentimentos dilacerados transitam entre mais braços do que só os teus. Talvez ainda não me tenhas visto direito em tua história. E não, eu não devia ter ligado. Explorando as últimas forças deste exílio indesejável e longínquo, no qual acordo todo dia com uma nova dosagem, por vezes num sorriso trêmulo que fortifica tudo em redor e me consome, pois, enfaticamente, mostra o avesso do que cresce em silêncio. Ao menos encontrei um freio. Um espaço de existir mais decente e limpo do que aquele que me podes conceder agora e escrevo minhas despedidas sem a dor daquele dia, sem a vergonha do inexplicável borrando minha imagem no espelho. Escrevo sabendo que esses ditos agora, servem apenas para te manter constitutiva, como algo que, ao fim de contas, estava dentro de mim desde sempre. J.M.N.

Quatro Haikais muito amadores e outras miniaturas

.
O não dela
como morte atrasada
inaugura a madrugada

..
O que nos cabe
maior do mundo: abraço
residência de minuto

...
As tuas pernas
distraídas traçam
meu rumo incerto

....
A hora de voltar
aconteceu secreta
queres saber?

__________________________

I
O medo quase morto
se despede
desprendem-se dele
sins e nãos

II
Não escrever
descreve um estado
do qual não se faz parte
nos faz metade

III
Queria apenas saber
o canto que a faz voltar
resiste o vento
a trazê-la de volta

IV
Como me sinto?
não importa mais
do que como sentem
os passarinhos presos

V
Escuto árvores te chamando
vozes verdes e de frutas
teu doce alimenta ainda
tudo o que sinto no caminho

VI
Como gelo a noite
me persegue, eu grito
e não vens jamais
é como uma morte
quase como estar
ao teu lado

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Perguntas de Ontem VIII (ou O depois já chegou?)

Um começou o outro afinou-se. Tantas coisas em comum.
Lembranças e ritos. Dúvidas e martírios. Como tem de ser.
Este texto é o primeiro nascido a quatro mãos.

Wagner C. e J.Mattos

Depois eu fujo. Depois eu vejo. Depois te encontro, quem sabe sinto. Depois te abraço e me aqueço. Depois do terço cometo outro pecado. Depois do almoço, refaço minhas fomes. Depois te encaro, como um solfejo. Depois ponho ruídos no branco da tua epiderme. Depois invento motivos pra teu olhar voltar-se das planícies enluaradas. Depois ponho as pratas pra devorares as minhas noites. Depois os esquifes já não serão problema. Depois te dedico o meu epitáfio. Depois tuas frestas serão meu espaço. Depois tuas belezas serão afrescos. Depois minha lágrima será perdoada. Depois a razão será conhecida. Depois a razão já não servirá para nada...

Pergunta de ontem: o que farás quando o depois chegar?

“Eu escrevo e me livro de mim e posso então descansar”

Por causa de Clarice Lispector e por causa de outras tantas coisas desse dia.

Mesmo dizendo não, ouvi teus sins mais remotos. Essa é a única vantagem de nascer multiplicável. Em que mortais combates te enredaste, para chegar àquele fim de nosso diálogo? Eu por cá deixei as lanças e os aríetes e corri nu em pelo à frente da batalha, do reencontro. E mesmo que em nostálgica acústica da longeva linha telefônica, os sons líricos da distância construíram plumas e transmutaram meu silêncio em um pedido desesperado de confirmação. Em uma nota altissonante de ventura. Porquanto quis que me dissesses a verdade e foi justo ela que faltou. Aprendi a usar impossíveis – meu maior tesouro de agora. Únicos que somos nos labirintos porque passamos, dois entes vagos a desenhar o escape inglório daqueles beijos, recusamos ver. O medo ainda torna. Aqueles elos anatômicos e invejáveis pelos quais nasceram nosso reconhecido pertencimento e a verdade que ora deixamos de lado fazem moções. Protegem os pequenos costumes que procriamos. Você disse que empenhava sua palavra. E que garantia ter estado em silêncio durante todo o tempo. E digo reconhecido nesse pranto de ainda, que teus sons, então, se desprenderam sem que soubesses, pois estão todos pousados nos alpendres por onde descanso. J.M.N.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Então eu soube que estava só

Ao menos uma certeza. Assim posso dar continuidade à despedida. Encontrar canções que signifiquem este estado fracionado em que me encontro. Sei que a resposta dela é legítima. Como legítimas são estas lágrimas que não coagulam. Este tremor de uma febre poética tão desumana e devastadora que me aflige desde aquele dia. Liguei ao meu irmão para chorar e existir da única forma que sei, maneira esta que não nasce em qualquer braço. Na totalidade de meu tempo. No acúmulo de minhas instâncias. No frêmito pesaroso e destituído de proteção que inaugurei com ela. Ou que talvez tenha sido desde sempre o meu e ela tenha, sem perceber, permitido que eu o ativasse em potência máxima. Dito isto e sabendo que, afinal, ela não andou em meu endereço, posso tomar o avião. Posso seguir viagem. Posso confirmar as vozes que me assopram de muito longe, que esta terra por sobre a qual ainda piso, não tem mais minhas pegadas, pois meu peso e significado se anularam. Porque, simplesmente, já não há nada meu nessas planícies. J.M.N.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A tudo que continua existindo

Ser aquele que ama é o maior dos medos. É maior que as estradas perdidas dos lugares mais inóspitos desta Terra. É prestar socorro quando ninguém mais quer prestar. E suicidar feliz a vida inócua e realizada. Andar indigente mesmo tendo casa, comida e roupa lavada. Ser o ente que te envida é tratar de morrer antes da morte. De andar por sobre as pontes feito um perdido. Lasso nas manhãs de segunda a sexta, vivo no sábado, abandonado ao teu gosto em todos os domingos do calendário. Ser aquele que te multiplica é a razão de ser desta agonia infinita e da ínfima certeza dos meus passos. É cruzar os mares a bordo de pássaros errantes e sentir os ventos do Atlântico inaugurarem cicatrizes em meus mapas. Espero que venhas e dirijas as distâncias para fora do raio de meus sonares. Quero me encontrar, rumo certo e constante, entre as cobertas de teu estado mais avassalador, mais descontrolado. Quero que amarres meus sapatos, que brinques com minha insegurança. Quero te ver por entre meus contornos vasculares. Quero deter-me na mocidade de teus enganos e admirar tuas desfeitas de mulher. Sempre presente, quero adorar-te a uma perigosa distância, vendo-te retocar a maquiagem, esperando que encontres o sapato certo, a seda de insinuar teus predicados. Ser aquele que espera é ser dentre uns quantos aquele que soube dizer bem perto de tua alma tudo quanto menos entendes, mas desejas. Incessantemente. Com a estúpida impertinência de quem não tem mais nada a perder. J.M.N

O outro lado do sim

"Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!"

Florbela Espanca – Ser poeta, 1923

Sei que ainda nada disse. Não houve uma entrada triunfal em teus domínios. Ninguém em teu condomínio acordou com um louco gritando suas saudades em noite de segunda-feira, cheio das dores do trabalho árduo. Envolto pelos gostos e torções que tua presença invisível em minha anatomia ainda procria. Sei que não há telefonemas ou lambaris declamados em notas tristonhas, suadas, conforme fosse a unção do nosso encontro. Sinto que esse bem é mais longo e conspícuo do que odes ou tercetos áureos. Sei que a nobre função que exerço é muito menos importante do que o gosto de um beijo teu. Ainda moro naqueles instantes. Naqueles mesmos que reproduziste em teus escritos. Ainda escondo a inconformidade com o desencontro e o desespero de me sentir sozinho ao teu lado. Noites e noites perguntando em que era poderíamos, enfim, ter paz. Pedi para que me cuidasses. Nunca fui bom em fazê-lo. Tive de aprender aos murros. Internado na mais profunda escuridão de meus calabouços. Fui desde sempre interditado pela promessa de que sempre haveriam de me socorrer. Jamais foi assim. E ela que partiu nos meus vinte anos me levou a última noite de proteção. Quando fechou os olhos, metade do mundo se foi. Te contei isso como um segredo que jamais partilhei com ninguém. Um saber que condenava quem mais amei à minha ira, aos meus destratos. Acho que esperava entendimento, acolhida. Nada disso importa agora. Ando a despertar sem a razão ao meu alcance. Ando a morrer pelas mesmas mãos que me fizeram renascer. E isso sem jamais ter ousado esquecer o que vivi. Mordi os pomos da idade e do sono. São silvestres como a nossa imperfeição, como nossos desejos. São arautos do que ainda está por vir. E virá com a certeza de que nada mais nos servirá, senão fazer bem um ao outro. J.M.N.

A memória do corpo – Excertos

I

Porque em meu olhar há razões que o coração não freqüenta, meu pedido agora é de descanso. Reconheço. Há nos meus cantos acordos muito antigos com poentes. E frases e sombras de figuras diversas. Ainda mais a presença. A tua. Legislando sem sapiência a condução do destino de meu respirar ofegante. E te encontro. No rebordo daquilo que nem sequer os loucos chamam de sono. Sim eu quero. Aquilo que dizes ainda estar disponível em teus atos. A força imensa do que somos ainda. Eu aqui entornado em vontades. Tu ai, resistindo à entrega. Hão de ser possíveis aqueles instantes todos novamente? J.M.N.

[...]

O que ainda tenho, no concreto desses encontros lancinantes e tão breves, que possa fazer as vezes de barro na construção de uma morada delirante no meio dessa cidade líquida? De pedras mesmo, quase nada. De sonhos e fracassos, um número próximo ao infinito. Não faz parte de meu arsenal sequer a memória dos elementos que compuseram o nascedouro dessa paixão. Talvez um vestido amarelo e a aterradora constatação que ela era a única mulher que ficaria linda dentro dele. Ou uma esquina que se contornou com o único intuito de se perder comigo. Uma madrugada velando uma insônia anunciada ao pé de uma cama coberta de ais. Não houve um beijo ou uma declaração de amor com uma promessa de volto logo e pra sempre. Não prosseguiu nem encerrou. Não pus dentro dela nem um filho nem uma bala. Mas eu tenho esse teclado, que vou espremer até que daqui saia um final, ou um significado. Ao fim e ao cabo, tudo dá no mesmo. As sucessivas fugas dos meus abraços e despedidas forjaram esse vazio íntimo do qual extraio essas linhas, não sem uma renovada dor juvenil. E com qual magia ela resumiu todo meu memorial de paixões impossíveis! Desde a moça de riso longo que me fez concluir o curso da primeira comunhão até a febre adolescente por aquela cujos olhos mudavam de cor ao longo do dia. Fora isso, o que ainda resta são os trocos da história: um livro por devolver, duas músicas pra mostrar, um poema do Quintana, uma rosa minúscula de papel dourado que levo pra todo canto e umas palavras engaioladas como passarinhos selvagens.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Perguntas de Ontem VII

Não, eu não poderia tê-la deixado amarrar os meus cadarços. Isso não. Já não basta essa risada pendendo a cabeça pro lado direito que me deixa sem direção? Já não bastam esses dedos magros que procuram vacilantes as minhas costelas num abraço que me faz querer esvaziar por dentro pra esperar a doce ocupação daquele corpo frágil? Já não basta esse jeito de arquear o lábio inferior quando ela vai falar algo engraçado e que me deixa absolutamente sem respostas? Não, eu não poderia tê-la deixado amarrar os meus cadarços. Não pelo ato em si, mas pelo laço. Enlaçado que estou, seria necessário uma vida e mais um pouco para desatá-lo.

Pergunta de Ontem: De que detalhes é tecido um grande amor?

sábado, 6 de fevereiro de 2010

De Velas e Ventos - Lançamento

Antonio Maria é amigo de longa data. Foi a primeira pessoa que me chamou de escritor e me enviou um e-mail dos mais emotivos a este respeito. A ele, este espaço no Palavras de Ontem, para celebrar sua nova música, a qual já inspirou o texto que segue. Antonio gentilmente aprovou o texto e publicação de Velas e Ventos... A vocês música da melhor qualidade feita aqui em Belém.

Saudade é um vento que sopra pra dentro

Frases invisíveis e ventos tangíveis. Cadernos e cadernos preenchidos com a substância do que se foi. Algumas vezes para nunca mais. Algumas vezes para daqui a pouco. Saudade é instrumento de se desfigurar. De acabar com as idéias de ser e estar. Mas também cobre o frio dos portos distantes, acolhe em meio às partidas. Percorre as águas, do mar do que fizemos e mais aquelas do que ficou por alcançar. E pássaros esperam e pessoas se completam enquanto a saudade se revolta e se inscreve atrás dos sorrisos, grafa impiedosa a face do estar. Seus ventos alísios, prontos como páginas ou canções de naufragar inflam meu peito, provocam enfartos, conspiram secretos os caminhos do olhar. E quando menos me frequento, quando menos dou conta do que sou, mesmo com meus papéis em dias e o espelho ecoando meu corpo, apenas saudade me faz retornar. J.M.N.

Para ler ouvindo...


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Enquanto tuas perguntas nascem (ou De quando vemos nossas impossibilidades)

Não se engane. Ele também chora. Mas entendo que a presença de minha lágrima tenha deixado dúvidas. Toda história tem seus pontos fracos. Os meus, como bem viste, convergem a uma dor focada, muito específica em cima daquele homem. E como decidi mostrar quem sou não sei. Mas posso garantir que este ato libertador foi imensamente celebrado por meus órgãos, pelo ritmo de meus pulmões. Estou em paz agora. Querendo apenas saber o que se foi de tua parte. O que ficou congelado naquelas horas que passamos juntos e onde tudo parecia estar caminhando bem. Mas essa também não é uma dúvida urgente, pois entendo que no fundo, muito do que questiono deverias estar perguntando a si mesma. Sei que não o fazes por não estares pronta. Quem sou eu para abreviar a beleza do encontro que em breve terás consigo mesma. Tens um expectador envolvido. Ocupado em ver-se nascido e em te ver nascer. Olharei de longe estes teus novos passos que virão com a força demolidora de tanques de guerra em fila. E não te negarei um olhar de direção. Não deixarei que o fogo cruzado te esmague antes de contemplares o óbvio de tuas ações anteriores. Quero apenas terminar meu dia, agora que já estás a caminho de tua casa. Sabendo que o que te contei era demasiado envolvente para que escapulisses. O que fiz cumpriu a sentença. Sei que aquelas palavras dividem as meninas das mulheres. Umas não dão conta da enorme soma de coisas que provocaram, e fogem. Outras sabem que as tais palavras são apenas o começo das trocas. O caminho adiante para o centro de uma onda gigante que um dia nos tomará a todos. Fugindo ou ficando é de ti que se ocupa agora minha saudade. Venha como vier, enquanto o meu tempo apontar que assim deve acontecer, serei aquele que está pronto a te perguntar se queres colo ou um longo beijo de amor. J.M.N.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Confirmação

Ela tem razão. Tem razão sobre tantas coisas que não acho mais argumentos para conter as lágrimas. As bravatas sumiram de meus olhos e gestos. Estou reduzido aos meus instintos e ainda preso à identidade que me onera e cumpre de um jeito que eu já não queria mais, porquanto gasto. Porém é justamente esta medida do que sou que perfaz o sentimento que a inclui e a torna exclusiva. Sou isso que se apresenta. Requintado de dobradiças, passagens secretas e porões. Sou apenas mais um neste rebanho de condenados. Buscando. Tateando o eterno aprendizado de existir. Ela, e apenas ela, chegou ao ponto, me deteve a carne e as linhas. Tomou o centro nervoso de meu engenho. E tem tantas questões viáveis, corretas, que seria injusto arrumar artifícios aos seus por quês. As dúvidas, as perguntas que materializam seu desespero agora têm fundamento, concluo. Pois foram as mesmas que me fiz tantas vezes, acreditando que as respostas estavam ao longe. Em torres isoladas, em campos floridos, no alto mar dos desencontros. Na mais nociva ação que ela gerou. Lembro agora dos antigos sábios que revelaram suas verdades em cânticos e esconderijos. Em poemas e dialetos obscuros. Todos eles, em certo momento, voltaram a si e tentaram refazer as perguntas. Lembro deles, sendo muito menos, mas encontrado neste mesmo destino de refazer as interrogações. O que descubro, devastado, mas esperançoso, é que tudo o que quero saber dorme bem ao meu lado e sairá de seu silêncio de vida inteira, tão logo eu aprenda a perguntar e aceitar as respostas. Pois tudo sobre o que me interrogo, encontra-se do avesso nas mesmas e doídas perguntas. J.M.N.

Num banco qualquer

Neste exato momento sinto tua falta. Um gosto de relógio emperrado na boca. E quase não teve graça os encantos que despertei, que tranqüilos disseram a mim que eu fazia diferença, era querido. Sentado neste banco de praça apenas as horas entendem o que me passa no externo dos olhos. Um ofício de repetir incansavelmente as contagens até que se acabe a razão da história. Neste exato momento uma camurça macia ao tato, mas de intratável gosto, me silencia. Termina de esfriar meu alimento, que por sua vez, finge nutrir um organismo sem espetáculo. E o negro do asfalto contradiz a fome do quintal de ontem com seu colorido, quando tudo era mais simples, como brinquedos perdidos nos cantos lá de trás. Sinto falta dos verões naquele lugar distante, onde aprendi a esperar por ti, mesmo antes de saber quem era. Mesmo antes de entender minhas limitações. E aceitá-las. Hoje, sentado neste banco esquecido de tão antigo, quero apenas que o dia acabe e que me venha aos borbotões tua imagem sacrificada, extirpada em meus esforços de sanidade. Contemplada com tanta fascinação, na mais profunda estação de meu funcionamento humano. J.M.N.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Ao meu semelhante, uma noite.

Pro Zeca

A precisão do convite residia na simplicidade desconcertante de sua natureza: Vocês querem saber o que é o amor? Talvez as minhas amigas não estivessem prontas pra ver que esse sentimento tão desesperadamente buscado pudesse estar tão perto, à distância de um telefonema que atravessa a madrugada. Eu sabia que estavas acordado e onde estavas. Conheço teus itinerários, tanto quanto conheces os meus. Isso sempre me exasperou, saber que quanto mais eu tentei ser único, mais me parecia contigo. Quanto mais deixava o meu cabelo crescer, mais os meus pensamentos eram os teus. Quanto mais coloridos eram os meus sapatos, mais os meus caminhos eram os teus. Quanto mais usava camisetas, mais o que preenchia o meu peito era o que preenchia o teu. Cheguei no boteco como um náufrago que vê estrelas. Em volta de ti, todo o contexto noturno que transforma qualquer ocasião em uma reprodução de nossa velha e confortável casa: a mulher que te aceitou com todas as tuas consequências, os amigos que recusastes a abandonar, os novos, e mais uma dessas figuras hilárias que parece que tiras de filmes dos irmãos Cohen. Aportei naquela mesa enfeitada de cervejas e histórias, e foi como se eu estivesse chegado naquele nosso quarto pendurado no alto de casa. Seguro e arejado. Leve, como se sustentado pelo ar. Fazias o de costume, contavas, com a cara mais séria, umas histórias absurdas. Esse realismo fantástico, passado de papai pra ti e ti pros outros seis filhos, foi a herança que cada um vive ao seu modo: tu pra aproximar, eu pra escrever, outro pra amar, outro ainda pra ser amado, um pra se encontrar, outro pra se perder. No entanto, nenhum escapou do veneno da ficção imiscuído em nosso sangue pelo vovô Alcides. Era uma noite pra se lembrar dos testamentos de vida. O cinto, que pra gente tinha uma função moral quando estava na cintura e um objetivo pedagógico quando era tirado dela, nunca tivestes que usá-lo pra nos remeter à retidão que sempre pregastes. A tua coleção de biografias com capa dura e letra dourada, da qual escolhi a de Winstom Churchill pra ser o meu primeiro livro, aos nove anos. Nem precisa dizer que não entendi patavinas e que cheguei à conclusão que ser igual a ti iria dar muito trabalho. Os livros. Deixaste-os pra gente depois da tua grande viagem. Lembro que tive um ataque de fúria quando soube que deixarias a nossa casa pra sempre. Te persegui pela casa inteira. Te odiei aquele dia, mimado que eu era por ti e pelos demais. Essas recordações vinham acompanhadas de uma felicidade tão indisfarçável quanto o orgulho que sentes de mim, mesmo que não precises falar isso. Sei-o quando ligas pras tuas filhas pra dizer-lhes de minha presença naquela noite, sei-o quando falas do meu blog pros teus amigos, sei-o quando perguntas de minhas últimas descobertas. Com jazz, foi assim que terminou essa noite gloriosa cujo relato levou às lágrimas o nosso mais novo irmão. Faltou alguma coisa? Faltou a Michele cantar I’ve Got You Under My Skin, de Cole Porter. Seria perfeito mesmo, abaixo de peles tão diferentes, duas criaturas portadoras de semelhanças tão inapeláveis que chegamos a acreditar que não há linearidade no tempo, e que o amor também é feito de retornos.WDC