terça-feira, 29 de julho de 2008

Histórias para depois do sono II

Acredite seu moço, olhando assim ninguém diz, mas ela tem coisa estranha. Usa espelho de água e penteia os cabelos com os capins venenosos na estrada. Sentada estava na minha cama, quando aconteceu de esticar seus olhos e eles foram tão longe que o céu pipocou anil, as árvores choraram passarinhos e as pedras estiveram mais duras. Quando ela prometeu me fazer gente, cobrou cada segundo de vida e lambeu os dedos. Olha moço, pode ser que eu esteja enganado, mas acho que ela ficou com alguma coisa minha... sei não, parece que minha carne, minha altura ou meu nome por completo. J.M.N

Histórias para depois do sono I

Faz escuro no meu dentro e lambarizinhos espreitam meus abandonos todos. No meu quarto de existir, onde acontece de luz fraquejar para dormir, acredito em poesias pois encontrado estou num suspense de recém-amor. Apesar disso, ainda remonto, quando em quando, os brinquedos de inexistir e neles vagueio louco, como as minalbas que engravidam de céu azul e dão filhos branquinhos, branquinhos. Dei de encontrar verdes-piscina, fincar fura-fura no pé do tempo passado e estou propenso a criar as terras em que eu me encontre perfeito, olhos mirando os teus, pele aquecida e lenta. No abraço que dei naquele homem mofino, que se envergonhara de tanto querer, deixei teu nome num papelzinho roxo, cor que te procria, apenas para que ele possa saber que existes e assim, quando derramar lágrima que valha, saber que não está só. J.M.N

segunda-feira, 28 de julho de 2008

[...]

Hoje senti saudades das suas costas. Tomei um banho longo e abandonado. Não havia intensão de limpeza apenas, muito antes a de esquecimento. Mas este não veio. Não desceu por meu corpo molhado. Não encontrou o caminho do ralo. Ao contrário. Valeu-me o tempo da espera. A mistura de lágrimas e banho, o cheiro antiséptico do sabonete de que você tanto gostava, tudo convergiu para os minutos eternos em que você se dispunha a dividir as águas comigo. Seus pulos de frio. A hesitação em molhar os cabelos, seus olhos fechados quando minhas mãos lhe tocavam molhadas. Os sons engraçados que seus movimentos produziam em partes específicas do seu belo corpo. Tudo me lembrou de você. Queria que me escutasse ao menos uma vez. Que lembrasse de Vinicius a cantar Tomara e de mim a cantar tantas coisas antes do seu sono. Queria que soubesse que tudo não passou de um engano. Que seus espiões estavam errados. Tomei o mais longo dos banhos num dos mais longos dias dessa existência depois de nós. Precisei como nunca de suas mãos me enxugando. Não era para ser outro cuidado. Era para ser o seu cuidado. Aquele que me fez reviver, que me fez atravessar o mar de esquecimento em que me perdi ao longo dos anos. Minha pele limpa da poeira do mundo e minha alma ainda clamando pela limpeza do destino. Talvez eu consiga. Talvez eu continue procurando. Meus afazeres diários não são mais os mesmos. Tento desfazer essas marcas, mas a água que lhe atiçava o aconchego não dá sequer para acalmar o insuportável calor que minha solidão produz. J.M.N

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 8

   

... e na oportunidade, não deixem seus filhos, sobrinhos, filhos da vizinha, crianças que você chama de minhas, sem escutar também.

Como fui feliz na minha infância!

Tive as casas de meus avós. Quintais. Tive dúvidas e discuti com meu irmão mais velho. Quebrei o calcanhar, vi os peitinhos da empregada do Bruno, corri atrás de papagaio, roubei bombom no minibox (como o Renato e o Joel)... Ademais, tive Vinícius de Moraes, Chico Buarque de Hollanda, Milton Nascimento, Toquinho, Clara Nunes, Walter Franco e Bebel Gilberto, todos reunidos em dois espetaculares trabalhos: A Arca de Noé 1 e 2.

É muito difícil ser criança. Imagina sem essas coisas (discos maravilhosos) para acalentar sonhos, substituir os embalos da mãe, descobrir que podemos ou não ser os filhos ideais, mas que no fim o que importa é amar, despertar paixões, dentre muitos outros ensinamentos?

Os dois discos A Arca de Noé são essenciais. São obras-primas. Falam de amor, de meninice, falam de ficar juntos para que o trabalho seja melhor, falam de injustiças sociais, das dificuldades de ser, falam de esperanças, de espiritualidade, do desejo de que o tempo não passe para que nossas crianças - as de dentro e as de fora - permaneçam no tempo infinito de poder tudo, de querer (e, às vezes ter) tudo.

É simplesmente lindo ouvir as aberturas, cujas orquestrações magníficas preparam o terreno dos ouvidos e do corpo para uma experiência única, um misto de enlevo e deboche, com caricatura de circo, com referência a úteros, amores pueris, aulas de vida, enfim. Além disso, cada disco tem uma canção final que é pura entrega, amor paterno no melhor estado: menininha e o filho que eu quero ter.

Ouvir A Arca de Noé é transportar-se para um tempo que pode não ser mais este - o presente com sua dureza - mas é, sem dúvida um tempo que não nos abandona, mesmo que algumas vezes façamos de tudo para o negar.

Para lembrar:

A Arca de Noé 1:
1. A Arca de Noé
2. O Pato
3. Corujinha
4. A Foca
5. As Abelhas
6. A Pulga
7. Aula de Piano
8. A Porta
9. A Casa
10. São Francisco
11. O Gato
12. O Relógio
13. Menininha
14. Final (Orquestrado)

A Arca de Noé 2:
1. Abertura
2. O Leão
3. O Pingüim
4. O Pintinho
5. A Cachorrinha
6. O Girassol
7. O Ar (O Vento)
8. O Peru
9. O Porquinho
10. A Galinha D'Angola
11. A Formiga
12. Os Bichinhos e o Homem
13. O Filho que Eu Quero Ter

J.M.N

Quando voltas

Quando voltas o beijo da água é diferente, as sedes secam, as fomes dormem. O mar revolto me toma a língua e as hecatombes de meus desejos cessam por completo. Meu corpo existe e se torna mais jovem, como por encanto, como por te enfronhares nele. Quando voltas, atualizas as coisas sem lugar que espalhei pelos quatro cantos da casa e pedes notícias sobre os crimes do bairro. Arrumas as roupas, ocupas os espaços mínimos deixados por minha bagunça. Quando voltas, teus chinelos percorrem meus caminhos e é comum encontrá-los embaixo dos meus pés, protegendo meus passos. Há uma luz estranha que envolve todas as coisas que fazes e percebo que jamais fui tão feliz em qualquer outra presença. És capaz de deixar teus filmes de lado para que eu possa ver os documentários mais estúpidos. Contas meus cabelos brancos dando-lhe nomes de personagens famosos. Brincamos de acordar com os olhos fechados para que a suavidade do sono não nos abandone e quando acontece de eu abrir meus olhos, não raro encontro os teus bem abertos, já me olhando, e no teu olhar sinto a proteção perdida pelos anos. Estou inteiro. Um ser, enfim. Quando voltas, é como se eu próprio voltasse do lugar mais longínquo, das paragens impossíveis em que me abandono quando estou longe de ti. J.M.N

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Algumas coisas sobre Lívia (ou “devolva-me”)

Quando encontrei a forma neutra de lhe dizer que amava, sua arguta sinceridade me estancou e ela disse – então não te quero! Não devem existir gabaritos para esses emblemas, nem entrelinhas para as minhas veleidades. Gosto por inteira e intimamente, e se digo que estou pronta para morrer por ti, é bom que acredites!

Não houve susto ou diatribes. Não houve intento ou criação e ainda assim fui destroçado (retirado do meu centro), expropriado de algo intangível e constitutivo de cuja existência só dei conta quando subtraído, e isso logo assim que ela pousou seus olhos famintos e me pediu para que mudasse sua vida. Num instante estava encontrado, um tanto expropriado, açoitado talvez, noutro abandonado à modelagem de nossa entrega instantânea, efusiva.

Não vejo as horas como de costume. Como já te disse parece que, longe de ti, as coisas ganham densidades improváveis, duplicam, matam a razão. Nunca a espera foi tão longa, nem os dias tão obsoletos. Quero estar contigo a toda hora. Criando coisas, risadas, lugares comuns e incomuns... Estar. Tudo se tornou atenção a ela. Minha existência consignada.

Um pouco das lembranças…

“Ao longo da praia o vento se interessou por seus cabelos. Era estranho vê-la tocada por um ente sem corpo que a fazia sorrir e mover-se de maneira específica para se livrar dos cabelos nos olhos e da areia dos braços. Havia qualquer coisa de egoísta na forma como eu a queria. Estudava maneiras de lhe dizer que suas ancas estavam me querendo, que sua pele adormecida estava esperando que eu acordasse para saudá-la, no meio da noite e com exaspero de antanho. E quando achava que tinha respostas, ela me vinha sempre com outras perguntas, estranhando que eu não soubesse dos astros, do horóscopo do dia. Estranhando.”

Depois, talvez, o tempo passe, as tardes fiquem mais longas e abatidas – nem lembro de quando comecei a sentir desse jeito. Ainda penso nela, fresca naqueles seus trajes adoráveis à porta de casa, pedindo para entrar. Ainda penso nos olhos dela, quando alguém me olha por mais de cinco segundos, fazendo-me acreditar que existo. Pergunto, quase exaurido, se ela espera por um grande acontecimento ou se suas esquisitices seriam coisas normais. E nesses momentos secretos em que me endivido com o tempo, acontece algo estranho nos confins do meu ser. Às vezes acho que é a idade chegando. Talvez seja ela, acordando da sesta da tarde, amarrando seus longos cabelos negros e me chamando para deitar ao seu lado, aninhado na quentura que é própria de seu corpo.

Quem sabe meu ritmo cardíaco ainda seja seu maior troféu. Penso nisso como se fosse obrigado. Como se fosse um costume de tribo e acabo dormindo em seus braços, com a fome acumulada do dia, seco por um gole de água, destituído das certezas todas... mas isso, apenas dentro de mim. Apenas por dentro.

Seu gosto reside na culminância de minha alegria, na insurgência de meu tédio. Insinua-se ainda sua pretensão de ter tudo e nada entregar e quando o vento sopra, longe de nossas praias imaginárias, ainda há o cheiro de sua intimidade a aturdir meus sentidos, assaltando minhas reservas e decorando meus pudores com palavras sujas e hieróglifos em nossas peles. Ardor de entrega absoluta, inconsciente. Talvez indevida, talvez necessária.

Ontem me peguei passando pela portaria do teu prédio, apenas para sentir que meus caminhos mais adorados ainda existem. Não tem graça. A cidade fica triste. As madrugadas então... Volta logo. Acaba com esse mês indevido. Senta comigo e diz que me precisas como antes... Como nunca... Como jamais...

Não sei se ela ainda passará por aqui. O caminho é o mesmo, mas os sinais da estrada mudaram. Nunca antes as manhãs foram tão violentas ou desnecessárias, ou quem sabe simplesmente monótonas – não há estribilhos, acordes dissonantes. Não há música sequer. Sem sentido mesmo. Iluminado por um sol medonho sento à beira do caminho. Minhas pernas esqueceram da viagem. Enquanto aguardo o desespero de meu corpo ganhar forma e eu ter uma paralisia – ou sentir fome –, escrevo uma carta de amor. O conteúdo ela já conhece. A tinta no papel muito branco, as vírgulas, os pontos de exclamação. Apenas o desfecho é novo.

Nunca mais escreverei cartas de amor.

Sinto que tudo se resume em estar ou continuar. Estou, mas não sou. Continuo, mas não sei como. Minha outra pessoa reclama da tua ausência. Como não tenho respostas, por enquanto, digo apenas que um dia ela poderá te ouvir chegando novamente e enquanto isso, a fisiologia deste ente que se me habita cuida de tudo, pois não há vida deste lado de mim.

Estivemos entregues aos nossos limites. O meu: não desistir de ser inesquecível; o dela: esquecer-se de que foi esquecida. Talvez as mesmas ilusões em corpos distintos. Houve cumplicidade em todas as loucuras, em todas as razões. Houve espetáculo, grito, virtudes esquecidas e achaques, numa troca que certamente ensejava pactos oníricos, ancestralidades.

Nunca haverá de se repetir!

Esta é a certeza que me consome agora e apesar de ter sofrido igualmente pelo terror dos curdos, é a infinidade desse momento que me assombra, pois se o tempo passa rápido para o meu esquecimento, o espaço que ocupa meu sentimento é como uma supernova eclodindo, um universo a nascer dentro de mim enquanto ela se despede para nunca mais voltar. Isso deveria me dizer alguma coisa.

                                         Belo Horizonte, 03 de julho de 2008.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

Quando vais

 

Por que quando vais levas a essência da casa? Levas aquilo que faz da casa casa, e não rua ou prédio ou bar. Aquilo que transcende a simples construção de tijolos, cimento e telhas. Lar mesmo. Abrigo. Lugar de partir e de chegar. Levas o beijo insone durante a madrugada. O despertar de duas horas. O banho a três. Levas a pressa pra ir pro trabalho e o já esperado aborrecimento do marido. Levas o grito diante da barata e a risada do marido. Levas o pedido de desculpas pela aridez das palavras e o sossego do marido. Levas o ficar de conchinha no sofá da sala e a felicidade do marido. Tudo transformado em um lugar estrangeiro, estranho. Mas o quintal ainda está lá, e nele as cachorras dormem ao sol. A televisão está desligada. A sala está desligada. A janela entreaberta olha tristonha a casa da vizinha fofoqueira. Espera um movimento qualquer que indique que ainda existimos pra alguém. A porta espera ansiosa uma chave que não é a minha. O quarto rosa espera as mãozinhas que voltarão com adesivos novos da Barbie. Ele a envolverá com sua mão de pelúcia, não importa se ela vem com catarro no nariz. O carro também espera, ele espera mais que todos a hora de ser ligado e partir, coração disparado, em direção à praia onde estão as risadas desbragadas e o sono com quem se ama.

sábado, 12 de julho de 2008

Do que fizeram com o teu coração

O roçar monótono da vassoura sobre o chão empoeirado lembrou-me o teu bigode grisalho e a preocupação em tingi-lo todos os sábados, assim o tempo não te causaria mais danos. O cheiro de nicotina insistia em te acompanhar discreto, sobretudo às seis, quando sentavas na porta pra colocar apelidos nos vizinhos e fazer funcionar o teu relógio automático. Havia uma linha que nos unia, uma das pontas permanecia amarrada no meu dente mole, a outra no meio dos teus dedos cotós. O momento era efêmero e fundante. Logo puxavas com força, levando dentes que nunca viravam moedas. Ao final do rito vinha a mulher curar as feridas deixadas, enxugar o sangue e as lágrimas. E isso dizia muito sobre nós: a necessidade da tua violência, a minha submissão e a presença apaziguadora da mulher entre os dois homens. Um dia vi no teu caderno de anotações o nome completo do Zeca escrito com a tua letra de calígrafo. Me deu vontade de perguntar se o mais velho foi feito com amor. Calei. Sabia que ias responder algo do tipo Fazer mulher é fácil, quero ver é fazer homem... eu fiz logo 5. Eu sou profissional. E se afastaria borrifando veneno nos caminhos que os cupins construíam na parede da nossa casa. Quanto a mim, ficaria ali parado me perguntando se realmente o teu sêmen encerrava uma alquimia qualquer. O que sei é que nem os médicos deram conta do teu hermético coração. Fizeram pontes onde havia paredes. Cortaram pedaços podres. Adiaram a tua morte, mas não te fizeram amar mais que os teus cachorros e netos. Aos sete filhos restaram as lições tácitas que nem todos aprenderam: pagar as contas em dia, ajudar a quem se gosta, não negar trabalho, falar o que tem que ser falado. Nesse sábado com o sol já alto, recuso a vício fácil da televisão e as palavras elegantes do velho Freud pra fazer o nosso melhor programa: vestir uma bermuda velha, posicionar a cadeira de frente pra rua, e passar a tarde toda escutando o teu silêncio.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Resposta

Ela me disse que eu tinha partido. Foi através daquelas palavras que não sei como saíram que me dei conta do que percorri. Cansei dos oceanos e das coisas baratas. Queria o peito dela de novo. Sua voz carcomida cantando para eu desistir. Um pouco do apego que aprendi por lá também me incomoda. Fica difícil construir estranhamentos diante de coisas que nos são tão íntimas. Através da porta eu lhe disse até logo. Eu menti. Eu fui sacana de novo. Mantive meus objetos estranhos do lado de dentro. As meninas que agora conheço acham que eu sou de verdade. Nunca ninguém me ensinou a abraçar. Aprendi as coisas da vida, inexistindo. Qualquer coisa que eu venha a dizer nessas linhas me perdoa tá? Tenho tantos erros nos passos que o caminho já me perdeu. Talvez as bailarinas ensaiem hoje. Um amigo meu tem um filho sensacional. Eu tenho um filho que é mais do que eu jamais poderei ser. Eu quero mesmo e ser o que sou. Um pedaço de dor encrustado na distância inventada entre velhos camaradas. Lembro com certo desgosto da minha partida. Das coisas insinuadas que ficaram para trás. Os trapos de noites que eu quero de volta. Tinha um vício que era o afastamento. Bem, aqui desse lado em que me encontro, isso é um luxo que não tenho. Ela ainda me diz coisas no escuro. Percebo pouco das suas alegrias.Ele me disse que eu parti. Naquelas letrinhas sofridas eu entendi que tinha ficado. Permaneço por aqui. Dentro das coisas que me levaram. Não dói acordar. Acostumei-me com o espelho. Na caixa de madeira que ela julgava ser o seu único segredo, descobri uns troços que ela me deixaria de herança no dia do nosso fim: Contas de cristal barato, as duas cartas do nosso amor e um pedaço de mim que eu não sei como ela conseguiu. J.M.N

O sal das lágrimas

Vou chorar agora. Entregar-me ao desespero de nunca mais levantar ao teu lado. Abandonado na compulsão do choro. Queria te levar para Paris e afundar meu rosto no teu seio contraído de frio. Ter com força, te machucar um pouco, como de costume. Começo a pensar que sou egoísta e que tudo o que fiz e faço é apenas para estar neste estado latente, como num precipício constitutivo, perto da morte, sempre. Meu choro comove a todos menos a mim. Estou tão cansado destas lágrimas que as desfaço com gritos de ódio. E sempre na frente do espelho. Plantei algumas árvores, tenho um livro à espera, viajei o mundo e me destruo pouco a pouco nessas inconsistências divinais de paixão e gozo. E tu que nada tens e tanto tiras dos outros, o que és? Por que me deténs? Que claustro é esse que me aninha? E quando sinto a hora derradeira me partindo ao meio, meus estertores são para aquele menino que nunca me abandonou, mas que foi imensamente abandonado. À própria sorte recorreu às mamas secretas, aos frascos de odores proibidos. Ainda que queiras sou demasiado antigo para que me destruas. Andei muito tempo nos jardins do éden, sem ter o direito, sem saber de paraísos, cantando as melodias dos banidos, dos mequetrefes da longa noite. Estive em Vênus. Andei por Tebas e ao fim dos dias de infância, já estava metido nas coxas graúdas, despojado de mim, entregue à ruminância da carne pela carne. Um aventureiro sem rumo, sem pudor, cujo menor pedido foi ter tudo. Acho que a morte me cai bem. Corrija-me se eu estiver errado a respeito das coisas nas quais acreditas:

  1. amor demais não é bom!
  2. nunca ter é sempre ter!
  3. juro que quero a normalidade, mas sabe do que mais, por que tê-la se não faz mal algum?

Um dia sento à beira do caminho. Vou para Lagash comer tâmaras perfumadas. Compro-lhe uma encharpe de seda pura e talvez passe em tua casa apenas para mostrar que, afinal, morrer também faz bem às vezes e aquilo que nasce com o choro de desespero, de abandono, não deve jamais ser esquecido.