terça-feira, 29 de abril de 2008

Minha Senhora

                                                           Para Florbela Espanca

A dor de agora faz hora e senta. Descansa amarga na varanda triste.
De pernas pro ar, divaga coisas sobre mim: meus primeiros anos, minhas notas escolares. Atreve-se nas memórias mais felizes.
A dor de agora carrega um fardo. Ter de arrancar-me as entranhas, pois é dor e só faz isso. E de tentar intensamente se cansa. Está antiga. Dor velha que me acompanha.
Uma dama sem pudores, constante e intensa, como uma paixão.
A dor que me segue por onde quer que eu ande é uma náusea escarlate e persistente.
Já foi a Igreja, já namorou comigo, já fez troça dos meus assanhamentos.
É quase um ente, tem peso, um corpo duro, olhos até.
De onde veio eu não sei, não trás referências.
Sei que está lá, na poltrona, descansando, para mais tarde me servir o café com leite ou a janta.
Ah se eu fosse mais que um.
Tomava-a no braço e punha pra fora do meu alpendre. Mas dessa força minha, dessa raiva eterna, ela se alimenta.
Dor desfecho dos meus ódios, dos meus sorrisos.
Um amor perfeito que se perdeu
Um poema negro que se esforçou à vida
Um cântico morno, meus dias de domingo.
Dor, senhora dos meus desatinos.
Uma dama indiscreta em meio aos meus desejos. J.M.N

domingo, 27 de abril de 2008

Os meus motivos

Porque já não há escombros, nem verdades inventadas. Já não há dívidas ou mensagens de amor. Não existem pedidos, ou ajudas com os botões do vestido. Sem paletós alinhados. Meus medos e os teus unidos. Não há quase nada para lembrar. Nem os domingos de sol, quando ir passear no parque era apenas mais um motivo para ficarmos aflitos, eu com tua demora e tu com meus erros de caminho. Não existem abraços, porque os braços definharam. Não há estrada, porque não existe lugar para chegar. Uma casa ou um muro alto. Não há vertigens. Mãos abanando despedidas pelos vidros do aeroporto, nem aquilo das partidas. Não há malícia. Dor. Cansaço. Não há sequer o espaço dos livros e as reconquistas nervosas depois de uma semana distantes. Por Deus, não há culpas. Não há hóstias. Meus olhos ou os teus. Minhas mãos e preces, sequer. Eu era um adito. Tu, tampouco, salvavas-te. Não há razão para isto. Vendo bem, não há razão para nada. Por isso eu levanto e amanheço com essas palavras enterradas tão fundo, que nem sequer as reconheço como sendo minhas. Não há mais nada por trás desses gritos, apenas uma voz estéril que altissonante, insiste em te dar explicações. J.M.N

sábado, 26 de abril de 2008

Eu e a tarde

eduardjahelka

Foto: Eduard Jahelka

 

ESTA TARDE EU TE ESPEREI. Te esperei porque tinha certeza que vinhas. Que vinhas com aquele sorriso de garoto que fez arte. Que chegarias contando piadas ao porteiro, perguntando sobre o cachorro da vizinha, jogando-lhe elogios mentirosos – pequeno itinerário que percorrias antes de tornar-se meu dono.

Estava esperando que me desses um susto, pois nada anunciava a tua chegada. Não usas perfume e andas como se não pisasses no chão. Lembra que um dia te falei de meu desejo de ter um assoalho de madeira que rangesse? Fizeste pouco caso. A mim restou apenas o sexto sentido feminino.

Lembro que és bem diferente de mim. Não gostas de ser notado. Eu, ao mínimo telefonema teu, já penduro lençóis brancos no varal, para que quando chegues não tenhas dúvida que estou à tua espera. Largo a bolsa no sofá, forjando certa displicência para que penses que estou aprendendo contigo. Deixo pistas. Demarco o teu trajeto até meu quarto. Batons sobre a mesa, cheiro de feijão no ar, os teus cds com as capas trocadas e teus livros abertos para que fiques bravo e aperte o passo até o quarto.

Imaginei que chegarias como sempre. Sem bater. Andando bem devagar. O olhar silencioso me despindo à distância. Não me darias tempo para palavras ou suspiros. As nossas respirações se confundindo num diálogo sem nexo. A tua mão levemente no meu braço, colocando a quantidade certa de violência e amor para me preparar para aquele beijo que só tua boca tem. Aquele beijo que começa por me descobrir. Depois me decifrar. E depois de me decifrar, me traduzir. E depois de me traduzir, me deixar sem ar. E depois de me deixar sem ar, me virar do avesso como se fosse uma das tuas camisas cansadas. Nesse momento parece que morro. E te agradeço por isso, pois sei que logo depois que me tiras a vida, me tiras a roupa para me inventar novamente. Me faço então semente, para que me regues gemendo baixinho, meu jardineiro. Para que depois, observe a tarde inteira o meu lento desabrochar. Enquanto eu finjo ser a flor mais perfeita que um homem já inventou.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Reencontros

Enquanto as crianças corriam no meio fio, suas últimas esperanças estilhaçavam-se nas lembranças dos anos que nunca foram compartilhados. O calor, muito mais que a ternura de sua cria gargalhando e exalando vida aos tropeções perto dos carros, fizeram-na refém dos presságios de agonia, de perigo à vista.

Uma hora da tarde. Os mequetrefes do bar Saturno convidando as meninas para a noite, estavam. Seus vizinhos alojados na mesmice do fim da rua. Poças de lama das chuvas do ano anterior. Água parada em memória do frescor das tardes de inverno. Naquela altura, o colo jorrava as escretas de saudade, talvez de abandono.

De repente viu os olhos verdes clareando mais ainda a luz solar e teve certeza de que havia sido capturada na teia da memória. Sua respiração alcançou o ritmo da chaminé fumegante do trem das cinco. Coube-lhe um tom azulado no sentimento bruto que eclodiu como um parasita nefasto e adomercido em suas entranhas.

Olhou-o diretamente e sem medo. Como por mágica secou-se o suor de seu corpo. Tal a gravidade de sua tontura, as vigas das casas em redor moveram-se aparentando um entendimento secreto com sua euforia. E quando aconteceu de ela sentir o perfume dele, houve um silêncio alucinógeno que a deslocou do centro de sua existência e varreu suas lembranças recentes acomodando em pantufas de rei, aquele olor fascinante.

Foi quando teve certeza de que estava novamente perdida. Como nos anos antes em que nenhuma grade segurou seus ímpetos e desvarios para as fugas a dois. Sentiu-se presa da única pessoa que a deixara pra trás e num repente de raiva ilhada, desferiu um único sopapo no rosto do transeunte.

O som da sua força colidiu com um rosto macilento e verdugo, cujas proporções desafiariam até os mais corajosos. Ele, implodido pela fúria da mulher que lhe surgira do nada, vacilou um segundo em relação aos sentidos. Com a quentura ainda instalada na face, partiu para o oponente audacioso de punhos cerrados.

Ao encontrar o rosto esguiu e raivoso, ele simplesmente desejou morrer. Como fulminado pela certeza de que desapreceria da face da terra, encolheu os ombros e sorriu quase sem saber porque. Disse algo incompreensível e finalmente pediu-lhe perdão. Ela acatou e deu o indulto. Sentou-se novamente na calçada e disse-lhe quase sem pensar, sente-se tenho muita coisa para te contar, mas antes, tenho que perguntar se gostas dos nomes deles, pois, afinal, escolhi sozinha.

As atenções, finalmente, chegaram às crianças e suas coisas de brincar. J.M.N

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 3

Tom Zé é gênio... ponto! Meu pai disse e eu confirmei ouvindo, não apenas esse seu trabalho, mas muitos outros como todos os olhos, correio da estação do Brás, com defeito de fabricação e danc-ÊH-sá.

Quem não conhece nada desse baiano de Irará, por favor não conte a ninguém, pegue essa dica e trate de procurar. Não precisa ser esse espetacular espécime da discografia de Tom, basta escutar e se incluir na lista dos bons apreciadores de música.

Estudando o samba é de 1976 é traz verdadeiras pérolas originais e uma releitura fantástica de felicidade de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Rei dos andamentos estranhos, das letras inteligentíssimas, por vezes com alto grau de erudição e refinamento cômico, Tom Zé merece ser escutado, degustado e ensinado como referência da melhor MPB.

Serve-se de filosofia, de dissonâncias e de suas próprias teorias para formular trabalhos apreciados e listados entre os 10 melhores discos de 2007, por exemplo, na opinião de revistas como Billboard e Rolling Stones.

Aqui pelo Brasil, como costuma acontecer, o cara ainda não tem seu merecido reconhecimento. Mas não ficaremos calados diante disso. Não morra sem, não conte a ninguém que não conhece e se conhece e acha ruim... bem... ESCUTE NOVAMENTE!

Roteiro do estudo:

1. MÃ
2. A FELICIDADE
3. TOC (instrumental)
4. TÔ
5. VAI
6. UI!
1. DOI
2. MÃE
3. HEIN?
4. SÓ
5. SE
6. ÍNDICE

Sofia e o Jovem André

Sofia enamorou-se de um passarinho. Batizou-lhe Leonardo e depois, e definitivamente, André. Ao que tudo indica o pequeno saira do ninho antes de ter as asas suficientemente maduras pro vôo. Tanto que alçava-se pelo ar apenas em grandes pulos, não sustentando-se porém, o que facilitou a sua captura. Mas André não reclamou do doce e breve claustro no qual entrara desde então. Ganhou um pequeno ninho feito com cuidados de tecelã e alguns panos de chão. Encastelou-se reclamando, mas logo se aquietou sob o calor e a vigilância irrestrita de Sofia. Dormiu com a cabecinha quase toda virada para as costas e o bico apoiado nas asas. Sofia velou seu sono até não suportar o próprio.

Pela manhã, diante da insistente recusa em comer e beber – o que também fazia Sofia jejuar, mesmo que involuntariamente –, pedimos que o ninho e seu ilustre morador fossem deixados na garagem num lugar próximo onde fora capturado. Sofia pôs o ninho com cuidado onde indicamos, mas o caminho ficou cheio de lágrimas e lamentos. No fundo sabíamos que nossa filha estava fazendo um movimento tão doloroso e tão necessário para quem ama: deixar voar aquele a quem dedicamos o nosso zelo e os nossos sentimentos mais preciosos. Logo logo dois passarinhos maiores, um cantando e outro gritando, acercaram-se do pequeno André, levando-o, aos pulos, para longe de nossas vistas.

Uns dias depois, cheguei no final da manhã pro almoço e o pequeno pássaro encontrava-se empoleirado na grade do portão da garagem. Fazia uns sons estranhos, como quem chama alguém que está dentro da casa. Ao perceber minha presença saltou pra um ponto mais alto voando em seguida até desaparecer por cima do telhado.

– Sofia, sabe quem estava aí na frente querendo te ver? Perguntei efusivo quando vi minha filha que vinha do quarto. E ela, com uma serenidade e uma segurança incomum a uma menina de 6 anos, respondeu:

– O André.

 

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André na segurança das mãozinhas de Sofia

domingo, 20 de abril de 2008

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 2

 

Em 1974 Emílio Garrastazu Médici é substituído por Ernesto Geisel na presidência da república. A ditadura estava a mil. Neste mesmo ano, multidões lotavam os estádios e teatros para ver shows quase - ou efetivamente - clandestinos. Eram estudantes, intelectuais, chefes de família e demais pessoas incomodadas com o clima de censura e terror instalado no Brasil.

Assim nasce O importante é que nossa emoção sobreviva, ainda hoje escutado como um grito pela liberdade, encontro de coração e cicatrizes, de Paulo César Pinheiro e sua poesia e Eduardo Gudin com seu violão e mais a belíssima voz de Márcia.

A reunião não poderia ser melhor. As 10 músicas que compõem o primeiro LP são todas geniais, belas, pungentes, soturnas e absolutamente bem executadas, a despeito da precariedade da gravação ao vivo. Tinham mesmo emoção. Foram feitas com coração e gosto pela vida, contando gentilmente com o tempero da repressão, muitas vezes estopim da criatividade desenfreada.

A 5ª faixa traz resíduos, de Carlos Drumond de Andrade e uma música-homenagem com o mesmo título. O disco poderia terminar ai, mas não, traz ainda:

Veneno (Eduardo Gudin - Paulo César Pinheiro)
Consideração (Eduardo Gudin - Paulo César Pinheiro)
Tatuagem (Paulo Gesta - Guilherme de Brito - Nelson Cavaquinho)
Ingênuo (Benedito Lacerda - Pixinguinha - Paulo Cesar Pinheiro)
Marcha-rancho (Eduardo Gudin - Paulo César Pinheiro - Maurício Tapajós)
Justiça (Eduardo Gudin - Paulo César Pinheiro)
Velho casarão (Eduardo Gudin - Paulo César Pinheiro)
Refém da solidão (Baden Powell - Paulo César Pinheiro)
Cautela • Mordaça (Eduardo Gudin-Paulo César Pinheiro)

E aqui, fica o destaque para mordaça, cuja letra encerra a frase-título do disco e abrilhanta a MPB com os belos versos: [...] e a felicidade amordace essa dor secular/ pois tudo no fundo é tão singular/ é resistir ao inexorável/ o coração fica insuperável/ e pode, em vida, imortalizar.

Uma das mais belas realizações da MPB. Modesta opinião. J.M.N

Quatro coisas sobre Armando Toyèz

Ouviu o tiro lá ao longe. Lembrou naquele exato momento que não escrevera o nome dela. Sua história ficaria incompleta. Não teve tempo de reclamar como de costume. O tiro disparado fez parar seu coração. Sangue na parede de trás. O som agudo rasgou a tarde como se fosse o acorde final de uma valsa. Daí a tristeza.

Menos esperada que o fim, fora sua ausência. Não quis viver muito depois disso. Pediu, enfim aos companheiros que se retirassem pois precisava redigir uma carta. Escreveu a noite inteira e a manhã seguinte. Das doze folhas produzidas, soube-se apenas das duas últimas. As mais tristes e sozinhas.

Entrou na cidade como um herói. De fato o era. Um gigante. Havia sido traído. E logo por quem mais amara. Um fiasco sua última tentativa de invasão. Perdeu-se na chuva, fugindo sem rumo depois que soube o que ela fizera à socapa. Levou apenas seu fuzil e um cacho perfumado de cabelo.

Antes de tomar a cidade, olhou para trás e mandou-lhe um beijo. Disse a si mesmo enquanto corria em seu cavalo à batalha, que se vivesse, haveria de pedir-lhe um cacho de seu cabelo. Ainda morro por vós minha senhora, exclamou. Tomou a cidade em minutos. A resistência daqueles homens sucumbiu à certeza de que a teria naquela noite.J.M.N

Além de ser domingo

O dia de hoje é domingo. O sentimento: desamparo. Nada para ver na tv. Nenhum barulho na rua. Minha poltrona é um refúgio sem graça. Os sucrilhos me animam um pouco. Andando para lá e para cá. Encontro as teias de aranha. Conto-as. Começo a me perguntar se moro realmente aqui. Penso no trabalho. Não ajuda.. Meus afetos esquecidos. Minhas dívidas de antanho. Seu sorriso indecifrável. As coisas vão ficando cada vez mais estranhas – ou lendárias, por assim dizer. Depois de sentar, abro uma velha revista feminina esquecida dentre tantas coisas fadadas ao esquecimento. No meio das páginas um bilhete dela – nunca mais pegue meu lápis de olho para fazer a lista de compras. Isso realmente é um crime sem perdão. Não chorei nem sorri, limitei-me a reler as linhas e pedir desculpas baixinho. O domingo piorou um bocado depois disso.J.M.N

Exaspero

Havia qualquer coisa no desamparo dela que lhe acarretava uma severa displicência com sua moral, com sua austeridade e, enfim, com o seu próprio desamparo, resguardado de maneira tão talentosa por anos a fio.

Naquele dia, soube que haveria de se arrepender por essa sua fraqueza.

Ela chegou às dez. Ele já estava esperando com o jantar servido, duas taças de vinho e saudades. Jogaram-se no chão da sala, consumindo-se brutalmente. Os instintos exasperados. A poesia esquecida.

Machucaram-se.

Violentaram-se de maneira perversa. Respirando um ar intensamente poluído de idéias daninhas, de práticas malignas, de corpos deteriorados, muito usados pelo tempo e pela espera por amores nunca alcançados, sequer possíveis.

Dois outros buscando a si mesmos.

Sem saber por onde começar, começaram pelas partes fadadas a completar-se.

Como ele costumava frisar nas aventuras extremas a que se lançou, haveriam de exaurir todos os fluidos corpóreos antes da morte falsa daquele ato, antes de seus gritos de dor feliz, antes do silêncio exausto.

E assim foi. Noite adentro. Ruminando-se sem acabar com a vontade, sem ter a chance de dizer coisa qualquer. E desta forma, sem o peso das palavras, a entrega foi completa. Indistinta, sem identidades. Misturaram-se como líquidos complementares.

O dia veio e o peso dos corpos já desalmados devolveu à luz do dia um gosto ruim de incerteza. O jantar frio foi o café da manhã. O vinho, a água de despertar. O encontro inquieto dos olhares, a única conversa permitida, sem assunto específico, mas com a atenção voltada para dentro deles. Olhares que nem sequer sabiam de onde vinham ou o que procuravam. Aquele dia haveria de ser diferente, como todos os dias em que se acorda com um grande amor ao lado.J.M.N

terça-feira, 15 de abril de 2008

Depois do fim

Aqui sempre falta algo. Espelho empoeirado da condição humana, essa cidade. Não sei quanto tempo é necessário no inferno pra te esquecer.

Aqui quando chove tudo pára.

Gosto mais quando chove à noite. A companhia elétrica não faz seu trabalho e a chuva engole a luz da cidade. Nessas noites de chuva e escuridão sempre lembro a textura que a tua pele tem no frio e de como é renovador percorrer com as mãos o caminho que começa nas tuas coxas e vai até teus seios.

Certa tarde, embalado pelo lamento sempiterno de uma máquina de costura na vizinhança, fui alinhavando os estilhaços dessa história. Coisas que deixei de aprender contigo. Falar com as mãos, dobrar lençóis, acolher tempestades. Um pouco de ti que faltou em mim. O gosto por música atonal, um pouco de aversão à raça humana, o emergir da cólera e do desprezo nos momentos oportunos. Um pouco de mim que faltou em ti.

Como estava te dizendo, sempre falta algo. Falta a tua solicitude, mas sei que em quatro meses já não trocarei o teu nome com o da minha mãe. Do teu seio não jorrará literatura, música estranha ou ardências vespertinas, tenho certeza. O teu rosto alongado não vai mais pairar sobre o meu sono desenhando um gigantesco “sim” num céu de constelações vazias. Chegarei à cura enfim, quando não mais precisar do teu exaspero e da nossa concórdia.

Resolvi deixar a nossa casa, porque via que o teu lugar na cama não esfriava. O teu cio impregnou nas cortinas e nem as 10 águas postas na lua cheia não foram capazes de eliminá-lo. Me cerquei então de músicos ciganos e de falsas ironias a teu respeito. O caminho me abandonou aqui. Meus calcanhares não se dão à poeira. Os olhos dos passantes se enchem de estranheza quando me olham debruçado sobre o balcão da locadora que abri. Não entendem meu sotaque, mas se assombram ao perceberem o quanto a minha imagem se dilui na prateleira de VHS’s amarelados. Sabem que histórias de abandono criam belos fantasmas.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Poemas de óleo e luzes

The Milkmaid (1658 - 1660), Rijksmuseum, Amesterdão

Johannes Vermeer (1632 - 1675). Pintor holandês do século VII. Viveu envolto em mistério. Não porque quisesse ou buscasse as reticências para sua existência, não. O mistério sobressai, pois seu legado indiscutivelmente importante para a pintura mundial, requereu, muito tempo depois de sua morte, a busca pelo homem por detrás de impressionantes pinturas como A leiteira (acima).

Infelizmente na escala em que aqui se apresenta o quadro, não podemos ver a perfeição do retrato de uma cena cotidiana e corriqueira. Mas através da simplicidade do ato, Vermeer traça seu lustroso poema que, para muitos, figura como a encarnação da perfeição, da eternidade de um fio de leite que não para de cair jamais.

A impressionante arquitetura de cores, luzes e sombras arremata esta composição etérea em cujo fazer doméstico se torna um ícone da beleza, da plasticidade de uma cena marcadamente feminina e detalhada. Um raio de luz entrando por um vidro quebrado, a sombra de um prego que não segura nada, um azuleijo colocado ao contrário, enfim.

Ver esta pintura em seu tamanho original, talvez não cause muita impressão em um transeunte distraído, mas ao conhecer o trabalho de Vermeer, há que se impressionar com a destreza de sua mão, a suavidade de sua entrega à sublimação espectral da pintura. Olhar um Vermeer é, afinal, contemplar um poema pintado.J.M.N

domingo, 13 de abril de 2008

Lakes of Russia - Stars Decorate The Fire (2008)

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Faça uma curva e pegue uma estrada. Desacelere. Procure uma paisagem noturna e invente uma banda de rock. Retire o vocalista e o baterista. Isso, deixe só a guitarra, um baixo e um piano. Você nunca precisou de muita coisa pra se emocionar mesmo. Imagine um lugar distante que não conheça e onde você nunca imaginou estar, mas que a simples pronúncia do nome desse lugar já te traz paz. Lagos da Rússia. Ilhas de sossego em meio ao rigor do frio e à dor inescapável de um povo em transição. Perfeito. Se ainda não estiver em transe, acrescente sons reticentes de violino e violoncelo. Agora pense na pessoa com quem você quer envelhecer e aponte a sua nau de sonho para esse lugar. Não se furte à percepção da beleza das coisas feias. De árvores mortas e de um céu carregado. Abandone-se pelo menos uma vez e você estará no clima do álbum de estréia da banda Lakes of Russia.

Eles são de Melbourne, Austrália. Seu post-rock outonal é feito sem vocais ou bateria. A base é construída com instrumentos de cordas elétricos (guitarra e baixo) e acústicos (piano, violoncelo e violino). O som lembra paisagens frias e desoladas. Ao mesmo tempo melancólico e reflexivo. De uma tristeza mansa, de quem sabe o ritmo que um luto deve ser atravessado.

Tracklist:

01. Flight Pattern

02. Like Silver Rain

03. Dead Trees

04. (......)

05. Watch The Silhouette Fade

06. Fireflies

07. Black Sky, Burning Cloud

sábado, 12 de abril de 2008

Não cometa a gafe de morrer sem escutar 1

Ai de quem não teve Noel, Cartola, Pixinguinha ou Orestes Barbosa a embalar o sono. Ai de quem não ouviu Dolores Duran e seus versos apaixonados: ai a rua escura/ o vento frio/ essa saudade/ esse vazio/ essa vontade de chorar.

E Clara Nunes, cantando Portela? E Paulo Gracindo, como Odorico Paraguassu?

Eles dois estiveram juntos num dos momentos mais emocionantes de nossos registros audiográficos... Brasileiro Profissão Esperança... Um disco de 1974 que reuniu o melhor de nosso canto e de nossa interpretação.

Some-se a isso o devastador estilo de Antônio Maria Araújo de Morais e temos uma pérola da cultura popular brasileira recente. Tudo corre bem nesse disco. Dolores e suas músicas cantadas por Clara, Paulo Gracindo lendo Antônio e no meio desse cristal o monstruoso Cântico Negro de José Régio em cujos versos finais proclama:

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Audição essencial para todo bom brasileiro! J.M.N

à moda de Manoel de Barros, talvez

Da mesma feita que se mistura o barro da parede que abriga uma dezena de bocas, minhas mãos misturam cantos de amor nascente para enredar esculturas e dar vida aos meus sentimentos mais absurdos.

Enquanto reina em mim a solidão divina, tenho o sumo do afazer sossegado, cujo destino é sempre te servir. Sorrir de lado. Abrir uma porta. Fatiar carambolas. Antever tuas tristezas para desfazê-las antes do teu fim. Tudo isso são tarefas das tardes.

Antes quando sonhava com frutas que não haviam no pomar, as perguntas estranhas eram apenas quando, onde e como?

Hoje com teu gosto inscrito e meus sentidos tendo experimentado teu sabor de paraiso, as questões que me abordam são menos suaves: respiro, insisto ou desespero?

Na água, meus pés fazem ondas imensas. Mosntruosas como Krakens antigos. No espaço lanço meu riso completo. Aterriso no escuro da linha. Na teia de aranha me engendro novinho. Uma pupa capturada. Uma criatura recém criada.

Tem gente que enverga o vento da noite para se refrescar do trabalho. Consumam seus dias a usurpar naturezas. E há outras pessoas, tais como você, que simplesmente nos fazem existir.

J.M.N

A vida inteira...

Quando uma alma inventa de chamar aos outros de Roberto e divaga sobre o corpo em que eventualmente habita falando sempre na 3ª pessoa, criando uma atmosfera múltipla de múltiplos entendimentos sobre a vida de uma alma... de um corpo que jaz em coma... sobre como são fúteis as exigências do amor... enfim, sobre a vida inteira, tem-se, certamente, um bom livro.

O livro não é novo, foi publicado em 1995 pela Assírio e Alvim. Seu autor, já esteve por aqui. O português Miguel Esteves Cardoso é genial para falar de amor e outras maldades de nossas almas... Ou quem sabe falar da alma de nossas maldades, dando voz a um ser que mesmo sem peso algum, nos move a todos feito marionetes.

É elegante seu estilo, no melhor português lusitano moderno, o que por si só, já nos salienta uma áura de boa pronúncia de belas construções frasais. Por vezes arredias ao nosso coloquialismo brasileiro, mas nem por isso intangível. Com palavras exatas e aforismas inquietantes, Miguel nos dá a oportunidade de saborear a língua... Que também é nossa, mas que do lado de lá ainda soa intocada, apesar de não o ser.

Não há como não se encantar com assertivas tais como: As pessoas têm todas uma costela alfandegária - querem sempre saber o que trazemos dentro de nós. Põem o nariz entre a roupa suja, à procura de diamantes ou de droga, como se estivéssemos a esconder qualquer coisa. De preferência, espectacular. Como, por exemplo, a nossa razão de ser. (p.105)

A vida inteira já nasceu um clássico pop, já nasceu fácil de se apegar. Tem um caráter inato de doidivanas, mas não comporta só a loucura de uma alma indômita, incomodada com a paralisia de seu casco. Traz em suas linhas a possibilidade de uma escrita contemporânea com gosto de ancestralidade e transcendência.J.M.N

Desejo

Pediu perdão como se fosse o ato extremo, a primeira e última palavra de uma vida de silêncios. Ancorou seus olhos numa distância inexistente e lá vagou com os braços dormentes enlaçados às costas de quem se ia. Um tempo imenso a esperar que a convivência findasse e resvalasse para uma terra de campos abertos onde o pesar do ar de seus pulmões não pudesse contaminar o cheiro das fresas.J.M.N

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Mon Coer

Ela se encantou pois ele dizia seu afeto em línguas estrangeiras, sempre com uma das mãos em lugares diferentes de seu corpo. Riu-se sozinha, muitas vezes, por ter percebido a intimidade instantânea que se instalara entre eles. Ela sempre cuidara muito bem da distância e chocou-se ao saber que ele a encantava com tão poucas palavras e beijos intensamente planejados. Nunca haveria de saber as suas razões para o fim, mas afinal, causou-lhe espanto que a noite escolhida tenha sido justamente aquela em que ela diria eu te amo. Ficou aguardando na sala. As pernas balançavam para lá e para cá. Depois de muito tempo, lembrou que o vinho ainda estava na pia, com água pelo gargalo. Tirou. Voltou à sala. Esperou e esperou. Quando ele chegou as coisas aconteceram muito rápido. Eu tenho uma coisa para conversar com você/eu também… Fala você/fala você. Depois dele ter dito tudo nublou. Ainda com a porta aberta ela completou sua frase e a noite arrebentou em seus olhos azuis como o pior manto noturno que jamais existiria. E chorou ao som das lembranças auditivas e dos encantamentos em línguas de além mar. Jamais saberia se ele dizia a verdade, mas isso já não importava. J.M.N

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Memória Austral

Silêncio! Vê? Ele se deitará depois dela e quando chegar a hora de a respiração atravessar para o lado do sono, ela sairá correndo dele, como se fosse necessário fugir para sempre. Isso não significa desamor ou traição, não. Significa que suas lembranças já não dão conta de seus desejos e enquanto isso a atormentar. Suas noites acontecerão na baixa, onde se vai de mão em mão. Lembro-me dela quando era mais moça e dele quando ainda era vivo. Veja, ela está voltando. Vem andando mais lenta. Não traz nos olhos a comoção da fuga. Desenvolve-se pelo caminho feito uma lesma. Seu rastro não é lá muito puro, mas afinal suas lembranças também não. J.M.N

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Emília

Há quatro anos atuei como psicólogo do então programa Sentinela. O objetivo era prestar apoio psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de abuso e exploração sexual. A riqueza trágica das histórias para as quais eu dei escuta durante um ano deixou sulcos profundos no profissional que fui depois. Por isso, ao sair do programa me vi na obrigação de deixar algo de mim para os técnicos; uma produção técnica, um relato, um qualquer coisa. Saiu o texto que se segue e que, depois de muito tempo, recebe um título, Emília.

 

TENHO CERTEZA, ele ainda me ama. Tudo que aconteceu aquele dia parece ter sido provocado por mim. Mamãe tinha viajado e eu era a mulher da casa, vai ver que foi por isso. Gostei quando ele se aproximou da minha cama. Ele nunca fazia aquilo. Ele ia me contar estórias, tinha certeza. Ia me fazer acreditar. Ia inventar reviravoltas em fábulas conhecidas. Ia forjar absurdos nas passagens que esquecia, só pra estória ficar mais longa. Ia ser aquele pai que sempre desejei. Acho que gritei ou reclamei quando aqueles calos tocaram as minhas pernas. Quando aqueles dedos que acostumei a ver fazendo nós com tamanha destreza, começaram a entrar em mim, me explorar, me revirar por dentro. Doeu, doeu muito. E doeu mais ainda quando ele me abraçou. Um abraço longo, que nos fez um só...

Ao final de tudo ele goteja branco e eu, vermelho. Doeu o carinho que papai me deu. Aquela noite, naqueles minutos eternos, ele me deu um amor diferente, dilacerante, quase querendo dizer que me amava e, por isso, me punia.

domingo, 6 de abril de 2008

Portishead, Third: Resenha Onírica

front 

 

O grotesco e o lírico estão, confundindo-se, nos tambores esmurrados como quem se vinga. A carcaça de um helicóptero serve da mesma forma como percussão daqueles jazzistas desempregados e sem esperanças. No canto, à luz vacilante do poste, uma mulher é violentada por quatro homens. Sua lascívia e seu exaspero nos fazem acreditar que é ela quem comete a violência... e a vítima é quem vê. Os gritos, os urros, versos de um amor de sarjeta, o som metálico, o som de tambores, a noite e a lua, tudo parece se encontrar nalgum ponto de uma partitura proibida, gotejando uma melodia sem lugar ou tempo. Estrangeira e atemporal. Parte selvageria, parte tristeza.

Tracklist:

  1. "Silence"
  2. "Hunter"
  3. "Nylon Smile"
  4. "The Rip"
  5. "Plastic"
  6. "We Carry On"
  7. "Deep Water"
  8. "Machine Gun"
  9. "Small" – 6:45
  10. "Magic Doors"
  11. "Threads"

Lançamento oficial: 28 de Abril de 2008

sábado, 5 de abril de 2008

E quando lembrar dela...

Agora que sei o que se passou posso dizer que estiveste certa sobre tudo. Aqui e ali meus pensamentos angariam as lembranças das tuas posições, das tuas certezas. Mais e mais me convenço de que cometi a pior das bobagens, o maior dos enganos. Mas, enfim, já não há o que fazer. Estou aqui em minha prisão e tu estás... Onde te encontras?

Até as horas passadas retornam para que eu repita minha senteça diariamente. Estavas certa sobre tudo. Sobre eu ser um tolo, sobre eu ser inseguro, sobre minhas dívidas de jogo, sobre meu ódio aos seres que te amaram mais que eu. Estavas certa sobre tudo. Quando lembro de teu rosto e tuas formas a única coisa de que me arrependo é não ter te deixado viver. Afinal, é por isso que me encontro aqui e tu... Já não mais.J.M.N

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Ela

Ó flor que denuncia
a existência de meu corpo,
dá-me outra vida.
Estrela benquista,
de minha pena,
de minha sorte.

Porquanto haja
o vigor noturno,
as valsas serenas,
as quietudes lunares.
Enquanto oceanos
azularem minha Terra

Reclamo a honra
da tua vinda.
Austrais cantigas
à tua fronte.
Recorro a fontes e missais.
Em reza, peço tua mão.

E nunca esqueço
da primavera,
estampa viva dos teus tecidos
e teu sorriso abrindo mundos,
repetindo os meus.
Peço que estejas.

Peço por ti.

Que já não há
razão de ser
sem te ter por perto.

(Cantídio)

Volta

Para os eventos do dia 08/11/97.

Ontem deixei contigo muito mais que um adeus. Deixei minha terceira pessoa. No singular, inscrita sem jeito naqueles meus ditos tão absurdos. Ele, a quem chamo de tolo, de estúpido não teve piedade. Olhei teu olho irrigado e tive a impressão de que passei por lá. Há tempos. Talvez tenha deixado lembranças. Uma imagem bem sucedida, o entendimento de que meu sorriso era sincero, não sei.

Queria suprimir minha angústia de modo a perdoar minhas faltas e não repetir os gestos como lamentos ou indelicadezas.

A uma da manhã tudo virou do avesso e eu decidi partir sem resolver a questão, mas dando um ponto final e talvez tenha sido essa atitude que a deixou tão triste. De minha parte, um devastador sentimento de insuficiência, inadequação, como sempre imaginei que seriam os momentos em que deixamos o grande amor congelado no tempo, por completa falta de coragem, de dureza.

Afinal, do que se trata? Em resposta o tempo, e apenas ele para recompor os trajetos absurdos de outros tempos e reduzir o peso das aflições através de pequenos reencontros com nossas próprias pessoas. Uma história que se extingue. Um mistério que se instala.

Inalo tuas memórias recentes e percebo que minha pele resseca sem teu toque. Disse-te que era uma fase e talvez em um ano ou dois, estaríamos novamente juntos. Quero acreditar nisso, mas não devo. Anteontem encontrei um outro ser morando no espelho. No susto dei-lhe o meu nome. Fiz mal. Agora, todos os dias, tenho a impressão de que muitos outros estão presentes naquela imagem desgastada. Eu e minhas pessoas sucessivas. Um saldo acumulado daquilo que deveria ter sido deixado para trás, mas que de maneira irrestrita veio junto comigo por todos esses anos.

Então, quando noutra existência estiveres satisfeita com teus cremes e literatura ou eu próprio me encontre são, sem seqüelas, falaremos do maldito dia em que te disse adeus. Até lá, talvez tenhamos forças para viagens, recordações, coleções de selos, imagens de gnomos, imãs de geladeira e todas as porcarias que consumimos quando estamos sozinhos esperando encontrar alguém.J.M.N

Quando já não há o que dizer

Queria escrever um modesto romance que não me valesse prêmios ou reconhecimento. Que fosse o avesso do meu íntimo, um caminho meu que todos pudessem usar às suas próprias conveniências. Como a cartografia de um continente inexplorado. Queria estar em apuros para que o socorro estancasse a busca e minha vida valesse mais do que no minuto anterior. Olharia para ela como num clarão e com esse deslumbramento dos que eminentemente encontrarão a morte, poderia, quem sabe, engendrar uma nova existência. Queria que meus anos corressem ao contrário, para que o meu nascimento fosse a derradeira experiência de minha vida. Como se fosse possível ter mais vida no minuto final – ou, naquela perspectiva - no minuto primeiro. Queria ter tido mais tempo para encontrar as pessoas, para perdê-las de novo, para tornar a encontrá-las e fazer desse vício de reconhecimentos, minha sincera vivência da saudade, dos bons quereres. Queria estar nalgum lugar desconhecido, impenetrável, onde a primavera fosse marcadamente violeta e as coisas de amanhecer estivessem sempre a um centímetro dos teus olhos. Lá naquela região em que me perco. Onde me anulo e escravizado temo perder a força de quem me escraviza. Queria sentir o peso dos anos como se fosse meu esforço de lida, minhas ações voltadas todas para a construção de meu teto. E no meio disso tudo, queria, de novo, regressar ao dia em que te pedi para dar à luz um filho meu. Fazer brotar de ti a carne de minha carne, o sangue de meu sangue, num caminho que talvez me reconciliasse com Deus. Faria tudo diferente, de modo vario daquele que nos destruiu e por Deus, estaria na instância intermediária entre ser humano e ser divino. Hoje tenho os anos debruçados nos meus olhos, esperando, quem sabe o momento certo de escapar, de correr atrás daquilo que nunca foi, daquilo que nunca tive. Aguardo intransigente a chegada do escuro universal, da noite fim de tudo. Mas sem tristeza ou desarmonia. Acomodado nos ramos suspensos das grandes castanheiras de minha terra. Queria ter feito esta carta enquanto podia. Para não perder a oportunidade de entregá-la a ti e, chorando, à beira do abismo daquele imenso desejo te pedir para jamais sair dali.J.M.N

Sobre ratos, medos e lágrimas

Esteve preso tempo demais. Umas duas décadas segundo contam. Adquiriu uma doença misteriosa e morreu naquele fim de mundo. Quando o acharam ele tinha um sorriso no rosto e lágrimas que caiam sem parar. Nenhum perito conseguiu desfazer a risada final ou deter o choro alegre do morto. Debaixo de seu colchão encontraram mil cartas escritas para Florinda. Nunca enviou nenhuma. Quem era? Existia? Nunca se soube. Passou vinte anos contando para um ente suposto sobre sua vida na prisão, seus desencantos e relembrando um passado talvez em comum. A última linha trazia uma paz que custou muito para lhe tomar definitivamente, mas esteve com ele no fim. Muito além dos horrores que passou.

"Sabe Florinda, confesso que matei, mas não fui pior dos que nunca cometeram crime algum, afinal o mundo também é um claustro enorme e todos estão cumprindo suas penas. Não é mesmo? Coisa que nunca quis foi ter dito o que disse naquele dia. Perdoe-me. Por aqui os ratos transitam como nas ruas trafegam os automóveis. Muitos param para conversar sobre a vida e Rommel, o mais esperto deles tem um plano para sairmos juntos daqui. Talvez eu recuse. A cada dia entro mais e mais nos meus pensamentos e estou certo de que isso me salvará. Olha, está chovendo. O cheiro da chuva é forte nesta época do ano. Queria apenas um cacho de teu cabelo, deitar mais uma vez sob o carvalho da fazenda e morrer calmamente como naquele dia quando te disse o que não devia. Aqui já não posso ser nada". J.M.N

Corações da Ciência Negra?

driverlights

2007 foi recheado de surpresas musicais. Especialmente aquelas que me chegaram, digamos, à moda de rateio gratuito. Havia muito não parava para escutar coisas novas, preso que estava na paranóia de cultuar o que já tinha sido feito antes mesmo de eu nascer ou escutar música estrangeira.

The Ghost You Left Behind é uma pérola! A ostra? Hearts of Black Science numa estréia pra lá de simpática, bem feita, bem tudo. Eletrônico na medida, enfeitado na medida, cantado num clima altivo, etéreo e, sobretudo, mesclando com competência escuridão, luz e até, arrisco - pista de dança.

Fica assim:

Snowfall (melhor abertura não poderia haver); Miles (ponha na sua festa cult, vai agradar com certeza); Revolvers (séria candidata à melhor para curtir uma saudade); Walking With The Sun (clima de tarde morrendo e escritos saindo); To Kill The Ghost You Left Behind (Épica - para curtas-metragens sobre a vida nas grandes cidades); Empty City Lights (Chama o Dream Academy no começo, mas fica bem melhor depois); In a Park (Ok... tudo de novo!); Fading Evening Stars (Killing Stars, Portishead, Echo and The Bunnyman etc, etc); Driverlights (Podia ter servido para os Gregorianos em seus cantos); Serene (Wolfgang Flür e Karl Bartos devem ter ficado orgulhosos), Silver (Potencial climatizador de campanhas publicitárias).J.M.N

O Amor é Fodido

Roubo o título desse post do romance homônimo de Miguel Esteves Cardoso, cujo parágrafo inicial contém a pergunta que às vezes fazemos à beira do abismo: Alguma vez pensaste no que isso representou na minha vida miserável? anunciando com veemência aquilo que vem depois do fim de um grande amor.

Vai mais além o autor que já foi candidato à presidência de Portugal, arrematando a pergunta com a demolidora sentença: Agora apetece-me matar-te de verdade. É indecente que já estejas morta. É indecente também que não tenhamos uma publicação nacional deste livro em língua portuguesa de Portugal.

Quem nunca cometeu um assassinato subjetivo? Ou armou frases bem feitas para acabar com as dores do fim? A isso se refere o autor. Afinal, o amor é fodido mesmo e Miguel sabe bem como falar a respeito, como quando se vai construindo entrelinhas para explicar o inexplicável... um fim que não devia ter chegado nunca. Ou um assassinato que deveria ter sido consumado no início. J.M.N

quarta-feira, 2 de abril de 2008

VICENÇA

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Sea Serpents IV, Gustav Klimt

VICENÇA entretinha-se recolhendo as peças de seus tabuleiros de seduzir. Encheram-se de desutilidade quando seu eleito partira. Na prateleira mais alta quase não se via o perfume caro, presente de dois anos desse enlaçamento que ela nunca conseguiu nomear. No cesto de lixo ainda gritava vermelho o batom que ele tanto adorava. Devagar, como se seu dedo indicador pesasse mais que o corpo inteiro, foi deletando as mensagens que há anos guardava no celular. “Tô chegando”; “posso sim”; “to t esperando”; “Tb t amo”. Desejou com força apagar de sua memória olfativa o insistente cheiro domingueiro de mato recém cortado. Desejou apagar também essa impressão constante de que todas as lâmpadas da casa precisavam ser trocadas. Desejou apagar das velhas agendas esses cinco anos de sobressaltos e de visitas não anunciadas. O que Vicença queria de verdade era acabar com essa impressão de que ele retornará. Não, ele não volta mais. Dessa vez ele se despediu.

terça-feira, 1 de abril de 2008

O Rosto

Outrora esquecido. O rosto antigo me assalta em cores. Como pudesse estar vivo. Não sei que entornos nele se restringem. Nunca mais o sorriso esteve. Uma ruga, talvez impertinente. Nenhuma maquiagem. Rosto nu. Meu passado que regressa em pessoa. Mas pessoa é esse rosto algum. Onde esteve? Quais seus sinais? De onde me invade retém igualmente minha vaidade. Refletido, está do outro lado do que sou, do que fui, do que nunca serei. J.M.N.


SUDÁRIO

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La Memoire, René Magritte

 

São poucos dias, mas o bastante para encharcar de memória essa terra que há muito se faz árida. Esse meu coração, esse Vesúvio que tenta suportar o crescimento manso das orquídeas no seu entorno.

Morre mais uma hora insone. Claro que mais uma vez, revivi tudo. As claudicações primeiras, as precipitações de depois. O embalar silencioso ao final de uma noite de fuga. O traçar e retraçar de estradas impossíveis. O aparar de asas. O chão coberto de penas. A voracidade dos recomeços. O chão coberto de roupas. A pressa em vesti-las. Os amores urgentes. A boca suja de estrelas. O dia em que, nus no banheiro, acreditei que tudo era meu, e que eu era merecedor. Toda a tensão de uma biografia compartilhada desenhando um rastro e um lastro nas nossas carnes.

Por ora, quero dar-te o abraço último, o último calor. Ser teu sudário. Talvez o que eu queira mesmo seja isso, matar-te. De uma morte que te faça viver externamente e que se dê só dentro de mim, deixando apenas o mistério da tua marca, como um retrato de agonia, paixão e entrega.

The Young Republic - 12 Tales From Winter City (2008)

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O grupo The Young Republic é de Boston, mas já tem morada no canto mais iluminado do folk norte americano. Com base em belos arranjos pop, acolhe nos braços de cada canção um violino quase onipresente que vai fraseando uma poesia paralela ora lembrando as origens country da música local (Excuses To See You), ora pondo um tom de lamento em harmonias inicialmente alegres (She Come and Goes). Há também a cintilância discreta de flautas. Há delicadeza de vocais femininos se contrapondo ao masculino marcadamente folk. O lançamento finaliza com Goodbye Town que nos remete aos shows de moças interioranas que vieram tentar a vida nos grandes centros dos Estados Unidos.

Pra quem gosta do clima de frescor das coletâneas acústicas tão disseminadas nos anos 90, 12 Tales... é perfeito. Só acho que a banda poderia ousar mais nos arranjos. Não sei, talvez o The Young Republic tenha me deixado com sede. Isso é bom.

Tracklist

01. Girl In A Tree

02. Modern Plays

03. Excuses To See You

04. Girl From The Northern States

05. Everybody Looks Better In Black And White (A Reference To Film)

06. She's Not Waiting Here This Time

07. She Comes And Goes

08. Real Love (At The End)

09. Paper Ships

10. When I See Your Eyes I Swear To God That World Collided

11. Blue Skies

12. Goodbye Town